segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Crianças fazendo “arrastões” em São Paulo



Em entrevistas recentes é preocupante a filosofia de algumas autoridades sobre qual a reação mais recomendável da sociedade contra os freqüentes “arrastões” compostos de meninos e meninas de pouquíssima idade, principalmente na cidade de São Paulo.

A maior parte das altas autoridades encarregadas de lidar com o assunto encara o problema com excessiva tolerância filosófica. Enxergam apenas um dos lados do problema. Argumentam que tais crianças não passam de vítimas da sociedade; elas não têm culpa nenhuma quando invadem lojas para furtar o que bem entendem e reagem com agressividade quando apreendidas. São infelizes frutos do meio. Por isso — prosseguem —, sendo apenas vítimas, não devem nem podem, legalmente, sofrer qualquer tipo de repressão, contenção ou constrangimento como, por exemplo, a internação forçada em órgão estatal para educação, cura de dependência química, alimentação sadia e formação do caráter. Produtos de lares desfeitos, vivendo ao Deus dará — muitas delas drogadas —, não poderiam — insistem — ser diferentes. E suas mães, que não as controlam, são tão desamparadas — por vezes drogadas — e infelizes quanto os pequenos infratores. Em suma, concluem, produtos humanos da miséria não podem ser salvos com repressão. “É preciso cuidar das causa, não dos efeitos”. E como a lei não autoriza qualquer internação contra tais crianças o jeito seria deixar tudo como está, à semelhança dos pequenos macacos da índia que vivem soltos em cidades, ameaçando turistas que se negam a lhes entregar o que comem no momento.

Para tais filósofos sociais — sempre bem intencionados, frise-se — o problema está na inércia do Estado, na injustiça da economia, na indiferença ou egoísmo da sociedade, na falta de adequada estrutura governamental, tanto em termos de alojamento quanto de eficácia burocrática. Assim, prosseguem, enquanto não corrigida a verdadeira e remota origem do problema — que explica a pobreza, a ignorância e tudo o mais —, não há muito o que fazer. Ponderam, finalmente — desta vez com razão — que mandar prender os pais relapsos, agravaria mais o problema. Jogada a mãe no cárcere, só aumentaria o abandono dos filhos, mesmo que tais mães decidam fazer um esforço extra para colocar a criançada no bom caminho.

Já para as “medianas autoridades” — leia-se polícia — o máximo permitido pela legislação é levar tais mini-infratores — “minis”, mas não minimamente temidos — para entidades referidas pela lei, mesmo sabendo que ali não permanecerão mais que algumas horas.

Dominam-se, os policiais, com elogiável paciência — e assim devem continuar —, para não dar umas palmadas pedagógicos, bem merecidas, nos moleques mais agressivos que, quando contrariados, totalmente cientes da impunidade, depredam móveis e arquivos de repartição pública. Até mesmo ameaçam policiais. Convencem-se de que são “reizinhos intocáveis”. Como são cem vezes mais inteligentes que os referidos macacos indianos — e desconhecedores absolutos do alto potencial moral e intelectual deles mesmos —, o perigo de nossa inércia em enfrentar o problema dos menores infratores não tem apenas um interesse folclórico, como no caso indiano. Com nossa omissão, em termos práticos, estragamos — na verdade corrompemos —, ainda mais os menores abandonados, transformando-os em futuros delinqüentes adultos, totalmente isentos da sensação de culpa quando cometem delitos, cada vez mais pesados. Afinal, foram induzidos a pensar que “criminosa é sempre a sociedade, nunca nós mesmos”.

Há, também, nesse descaso, um problema imediato: inexistindo qualquer tipo de força estatal contrária à prática do “Pegue o que quiser e corra!”, logo, logo, centenas ou milhares de menores passarão a fazer o que antes temiam. Verificado o potencial de algum lucro nessa nova forma de criminalidade desorganizada— mas indiretamente incentivada por nossa omissão —, é previsível que os arrastões se multipliquem, até mesmo orientados por marmanjos, que sentem no ar o lucro potencial. Mães que já perderam todo o estímulo de lutar por uma vida melhor talvez vejam essas pequenas pilhagens com alguma simpatia, pois só assim podem comer bombons recheados, iguaria para elas usualmente inacessível.

E a população, cada vez mais assustada, já não sabe como proceder. O comerciante se pergunta: — “Fecho a loja ou contrato seguranças? E o que eles poderão fazer? Nada! Uns dias depois as meninas estarão de volta! Podem até incendiar minha loja, porque reagi!”. Se, tentando impedir, fisicamente, o saque de mercadorias, o comerciante ou o segurança machucar — mesmo de leve e involuntariamente —, os desinibidos infratores, corre o risco de um processo criminal por lesões corporais leves.

Como resolver o problema?

Lendo-se algumas entrevistas das altas autoridades, tem-se a impressão de que a solução do problema — ou melhor, a falta dela — sofre dupla influência: a da referida “abrangente compreensão sócio-filosófica do problema” e o pavor do “politicamente incorreto”. Medo de parecer “duro demais”, “nazista”. — “O que a imprensa dirá de mim se eu for filmado ou entrevistado dizendo que tais crianças, quando reincidentes, devem ser levadas e mantidas à força em instituições do governo?”. A impressão que tenho é de que o medo do politicamente incorreto prepondera sobejamente sobre o enfoque meramente filosófico.

Longe de microfones e de repórteres, as opiniões são, com freqüência, diferentes. Comparam, na imaginação, os modos de educar crianças, inclusive seus próprios filhos, e concluem que a velha e “chata” disciplina, embora desagradável, é necessária. Lembram-se do que disse um filósofo: “Cada nova geração é uma invasão de bárbaros”. Selvagens por natureza, embora engraçadinhos, sejam eles frutos de lares ricos ou pobres. Que o digam os casos de “bullying”, na meninice, transformados depois em assédio moral, na idade adulta. Constatada a fraqueza de alguém, surge, instintivamente, em grande parte dos seres humanos, de qualquer idade, o desejo de esmagar, ridicularizar, enganar, inferiorizar, uma espécie de herança, congênita e maldita, ainda não erradicada da espécie humana.

Todos conhecem famílias, bem numerosas e de origem humilde, em que nenhum dos filhos e filhas se tornou marginal. Moças corretas que cresceram e estudaram com muito sacrifício, nunca lhes passando pela cabeça a mera hipótese de vender o corpo para subir na vida. Um sadio “medo da desonra”. Mesmo o adultério — fruto de paixão sincera, com sua “santificação romântica”, não entrava facilmente em cogitação. Suas mães, criadas também “às antigas”, como que vacinaram as filhas contra essas tentações, mesmo sem fazerem eruditas preleções a respeito. A religião também exercia papel importante nessa luta. Não estou aqui acusando as garotas de programa, nem suas mães, porque cada caso é um caso, e a honestidade — quando absoluta — é quase receita infalível de pobreza, em um mundo corroído pela ganância e todos os seus subprodutos.

O ideal, claro, é que os próprios pais criem e orientem seus filhos. Quando, porém, as mães já atingiram o fundo do poço, físico, econômico, social e moral — talvez drogadas e praticamente irrecuperáveis —, a única solução, sábia e corajosa, é o Estado reconhecer sua omissão passada e, pondo-se logo em ação, redimir-se, colocando tais crianças em famílias de boa formação, que as aceitem, ou — ou, ou — colocando essas crianças, mesmo contra a vontade delas, em instituições estatais de onde não possam escapar facilmente pulando o muro. De crianças de rua que nunca experimentaram qualquer disciplina, só conhecendo a linguagem do medo de marginais mais fortes, não se pode esperar que aceitem facilmente aquelas disciplinas “chatas” a que as crianças de boas famílias se habituaram, mesmo sob protesto: tomar banho, alimentação balanceada, horas certas para estudo, brincadeira e sono. Se, inicialmente, recolhidas em instituições estatais, depredarem ou incendiarem as camas, que durmam no chão. Com o tempo, acharão mais confortável uma cama que o cimento frio.

Essa “moleza filosófica” — embora bem intencionada, de nunca dizer “não!” a uma criança viciada na indisciplina—, não é coisa recente nem apenas do Brasil. Exatamente dezenove anos atrás, estando estive em Londres, fazendo um curso rápido de inglês, li uma notícia local que já revelava uma tolerância irracional no encarar os caprichos de crianças.

Em uma escola, não me lembro se pública ou particular, o professor de Ciências Naturais dava sua aula à garotada. A certo momento o bedel abriu a porta da sala de aulas e avisou ao professor que o diretor queria falar com ele. O professor, que nesse momento segurava uma peça de metal, largou o objeto em cima da mesa e saiu da sala, dizendo que voltaria. Um dos meninos aproveitou a ausência do mestre e segurou, com algum pano, o objeto na chama permanente, um “bico de Bunsen”, muito comum nessas aulas. O menino sabia que o professor, quando voltasse à sala, iria continuar a explicação, pegando de volta objeto, queimando-se. Dito e feito. O professor pegou a peça quase em brasa, gritou, contorceu-se e a cena provocou risos deliciados da garotada. Indignado, ele pressionou, de imediato, os meninos e logo descobriu quem tinha sido o “engraçadinho”. Um tanto fora de si deu um tapa na cara do promissor sádico adulto. O menino queixou-se ao pai, o pai procurou a direção do colégio e o professor perdeu o emprego, além de responder a inquérito que não sei em que resultou porque eu não lia jornais locais regularmente.

Seria interessante saber, hoje, se a punição do professor injustiçado foi boa ou ruim para a formação moral do menor. Será que não se gabava, com os amigos, de ter queimando a mão do professor além de expulsa-lo do magistério? Fosse eu o diretor da escola, teria, no máximo, aplicado uma pena de advertência no “esquentado” mestre e criticado vivamente o pai do moleque por não educar o filho. “Monstros” pequenos, quando não corrigidos, tornam-se frequentemente “monstros grandes” na idade adulta.

Voltando aos dias atuais, no Brasil, espera-se que a opinião pública pressione os governos no sentido de exigir as alterações necessárias na legislação, de modo a retirar das ruas crianças que pratiquem arrastões, ou frutos freqüentes, colocando-as em instituições governamentais ou particulares que aceitem essa incumbência em troca de um pagamento mensal. Deixá-las à vontade, cheirando cola e praticando delitos, é agir de forma irresponsável, incentivadora da criminalidade e até inimiga dessas crianças. O vasto problema tem que ser atacado nas duas pontas: nas causas ( miséria e ignorância) e nos efeitos ( crianças soltas cometendo infrações).

Consertar as causas remotas, políticas e econômicas, é tarefa demorada, complexa. Enquanto não corrigida a causa, que se cuide, já, agora, dos efeitos, recolhendo essas crianças mesmo contra vontade delas e de seus pais — quando constatado que estes não conseguem dominar seus filhos. Ninguém pode garantir que entre essas crianças que entram nas lojas para furtar não está um potencial futuro cientista nuclear, um jurista, um grande atleta, um genial escritor ou um ótimo eletricista ou encanador que só realizará seu potencial genético se receber boa alimentação, estudo e disciplina, nas doses certas e sem agressões físicas.

Que os governos acordem enquanto é tempo.

(29-8-2011)


website: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
Blog in English: http://francepiroenglish.blogspot.com/
Blog em Português: http://francepiro.blogspot.com/


















































































































































Crianças fazendo “arrastões” em São Paulo.

Em entrevistas recentes é preocupante a filosofia de algumas autoridades sobre qual a reação mais recomendável da sociedade contra os freqüentes “arrastões” compostos de meninos e meninas de pouquíssima idade, principalmente na cidade de São Paulo.

A maior parte das altas autoridades encarregadas de lidar com o assunto encara o problema com excessiva tolerância filosófica. Enxergam apenas um dos lados do problema. Argumentam que tais crianças não passam de vítimas da sociedade; elas não têm culpa nenhuma quando invadem lojas para furtar o que bem entendem e reagem com agressividade quando apreendidas. São infelizes frutos do meio. Por isso — prosseguem —, sendo apenas vítimas, não devem nem podem, legalmente, sofrer qualquer tipo de repressão, contenção ou constrangimento como, por exemplo, a internação forçada em órgão estatal para educação, cura de dependência química, alimentação sadia e formação do caráter. Produtos de lares desfeitos, vivendo ao Deus dará — muitas delas drogadas —, não poderiam — insistem — ser diferentes. E suas mães, que não as controlam, são tão desamparadas — por vezes drogadas — e infelizes quanto os pequenos infratores. Em suma, concluem, produtos humanos da miséria não podem ser salvos com repressão. “É preciso cuidar das causa, não dos efeitos”. E como a lei não autoriza qualquer internação contra tais crianças o jeito seria deixar tudo como está, à semelhança dos pequenos macacos da índia que vivem soltos em cidades, ameaçando turistas que se negam a lhes entregar o que comem no momento.

Para tais filósofos sociais — sempre bem intencionados, frise-se — o problema está na inércia do Estado, na injustiça da economia, na indiferença ou egoísmo da sociedade, na falta de adequada estrutura governamental, tanto em termos de alojamento quanto de eficácia burocrática. Assim, prosseguem, enquanto não corrigida a verdadeira e remota origem do problema — que explica a pobreza, a ignorância e tudo o mais —, não há muito o que fazer. Ponderam, finalmente — desta vez com razão — que mandar prender os pais relapsos, agravaria mais o problema. Jogada a mãe no cárcere, só aumentaria o abandono dos filhos, mesmo que tais mães decidam fazer um esforço extra para colocar a criançada no bom caminho.

Já para as “medianas autoridades” — leia-se polícia — o máximo permitido pela legislação é levar tais mini-infratores — “minis”, mas não minimamente temidos — para entidades referidas pela lei, mesmo sabendo que ali não permanecerão mais que algumas horas.

Dominam-se, os policiais, com elogiável paciência — e assim devem continuar —, para não dar umas palmadas pedagógicos, bem merecidas, nos moleques mais agressivos que, quando contrariados, totalmente cientes da impunidade, depredam móveis e arquivos de repartição pública. Até mesmo ameaçam policiais. Convencem-se de que são “reizinhos intocáveis”. Como são cem vezes mais inteligentes que os referidos macacos indianos — e desconhecedores absolutos do alto potencial moral e intelectual deles mesmos —, o perigo de nossa inércia em enfrentar o problema dos menores infratores não tem apenas um interesse folclórico, como no caso indiano. Com nossa omissão, em termos práticos, estragamos — na verdade corrompemos —, ainda mais os menores abandonados, transformando-os em futuros delinqüentes adultos, totalmente isentos da sensação de culpa quando cometem delitos, cada vez mais pesados. Afinal, foram induzidos a pensar que “criminosa é sempre a sociedade, nunca nós mesmos”.

Há, também, nesse descaso, um problema imediato: inexistindo qualquer tipo de força estatal contrária à prática do “Pegue o que quiser e corra!”, logo, logo, centenas ou milhares de menores passarão a fazer o que antes temiam. Verificado o potencial de algum lucro nessa nova forma de criminalidade desorganizada— mas indiretamente incentivada por nossa omissão —, é previsível que os arrastões se multipliquem, até mesmo orientados por marmanjos, que sentem no ar o lucro potencial. Mães que já perderam todo o estímulo de lutar por uma vida melhor talvez vejam essas pequenas pilhagens com alguma simpatia, pois só assim podem comer bombons recheados, iguaria para elas usualmente inacessível.

E a população, cada vez mais assustada, já não sabe como proceder. O comerciante se pergunta: — “Fecho a loja ou contrato seguranças? E o que eles poderão fazer? Nada! Uns dias depois as meninas estarão de volta! Podem até incendiar minha loja, porque reagi!”. Se, tentando impedir, fisicamente, o saque de mercadorias, o comerciante ou o segurança machucar — mesmo de leve e involuntariamente —, os desinibidos infratores, corre o risco de um processo criminal por lesões corporais leves.

Como resolver o problema?

Lendo-se algumas entrevistas das altas autoridades, tem-se a impressão de que a solução do problema — ou melhor, a falta dela — sofre dupla influência: a da referida “abrangente compreensão sócio-filosófica do problema” e o pavor do “politicamente incorreto”. Medo de parecer “duro demais”, “nazista”. — “O que a imprensa dirá de mim se eu for filmado ou entrevistado dizendo que tais crianças, quando reincidentes, devem ser levadas e mantidas à força em instituições do governo?”. A impressão que tenho é de que o medo do politicamente incorreto prepondera sobejamente sobre o enfoque meramente filosófico.

Longe de microfones e de repórteres, as opiniões são, com freqüência, diferentes. Comparam, na imaginação, os modos de educar crianças, inclusive seus próprios filhos, e concluem que a velha e “chata” disciplina, embora desagradável, é necessária. Lembram-se do que disse um filósofo: “Cada nova geração é uma invasão de bárbaros”. Selvagens por natureza, embora engraçadinhos, sejam eles frutos de lares ricos ou pobres. Que o digam os casos de “bullying”, na meninice, transformados depois em assédio moral, na idade adulta. Constatada a fraqueza de alguém, surge, instintivamente, em grande parte dos seres humanos, de qualquer idade, o desejo de esmagar, ridicularizar, enganar, inferiorizar, uma espécie de herança, congênita e maldita, ainda não erradicada da espécie humana.

Todos conhecem famílias, bem numerosas e de origem humilde, em que nenhum dos filhos e filhas se tornou marginal. Moças corretas que cresceram e estudaram com muito sacrifício, nunca lhes passando pela cabeça a mera hipótese de vender o corpo para subir na vida. Um sadio “medo da desonra”. Mesmo o adultério — fruto de paixão sincera, com sua “santificação romântica”, não entrava facilmente em cogitação. Suas mães, criadas também “às antigas”, como que vacinaram as filhas contra essas tentações, mesmo sem fazerem eruditas preleções a respeito. A religião também exercia papel importante nessa luta. Não estou aqui acusando as garotas de programa, nem suas mães, porque cada caso é um caso, e a honestidade — quando absoluta — é quase receita infalível de pobreza, em um mundo corroído pela ganância e todos os seus subprodutos.

O ideal, claro, é que os próprios pais criem e orientem seus filhos. Quando, porém, as mães já atingiram o fundo do poço, físico, econômico, social e moral — talvez drogadas e praticamente irrecuperáveis —, a única solução, sábia e corajosa, é o Estado reconhecer sua omissão passada e, pondo-se logo em ação, redimir-se, colocando tais crianças em famílias de boa formação, que as aceitem, ou — ou, ou — colocando essas crianças, mesmo contra a vontade delas, em instituições estatais de onde não possam escapar facilmente pulando o muro. De crianças de rua que nunca experimentaram qualquer disciplina, só conhecendo a linguagem do medo de marginais mais fortes, não se pode esperar que aceitem facilmente aquelas disciplinas “chatas” a que as crianças de boas famílias se habituaram, mesmo sob protesto: tomar banho, alimentação balanceada, horas certas para estudo, brincadeira e sono. Se, inicialmente, recolhidas em instituições estatais, depredarem ou incendiarem as camas, que durmam no chão. Com o tempo, acharão mais confortável uma cama que o cimento frio.

Essa “moleza filosófica” — embora bem intencionada, de nunca dizer “não!” a uma criança viciada na indisciplina—, não é coisa recente nem apenas do Brasil. Exatamente dezenove anos atrás, estando estive em Londres, fazendo um curso rápido de inglês, li uma notícia local que já revelava uma tolerância irracional no encarar os caprichos de crianças.

Em uma escola, não me lembro se pública ou particular, o professor de Ciências Naturais dava sua aula à garotada. A certo momento o bedel abriu a porta da sala de aulas e avisou ao professor que o diretor queria falar com ele. O professor, que nesse momento segurava uma peça de metal, largou o objeto em cima da mesa e saiu da sala, dizendo que voltaria. Um dos meninos aproveitou a ausência do mestre e segurou, com algum pano, o objeto na chama permanente, um “bico de Bunsen”, muito comum nessas aulas. O menino sabia que o professor, quando voltasse à sala, iria continuar a explicação, pegando de volta objeto, queimando-se. Dito e feito. O professor pegou a peça quase em brasa, gritou, contorceu-se e a cena provocou risos deliciados da garotada. Indignado, ele pressionou, de imediato, os meninos e logo descobriu quem tinha sido o “engraçadinho”. Um tanto fora de si deu um tapa na cara do promissor sádico adulto. O menino queixou-se ao pai, o pai procurou a direção do colégio e o professor perdeu o emprego, além de responder a inquérito que não sei em que resultou porque eu não lia jornais locais regularmente.

Seria interessante saber, hoje, se a punição do professor injustiçado foi boa ou ruim para a formação moral do menor. Será que não se gabava, com os amigos, de ter queimando a mão do professor além de expulsa-lo do magistério? Fosse eu o diretor da escola, teria, no máximo, aplicado uma pena de advertência no “esquentado” mestre e criticado vivamente o pai do moleque por não educar o filho. “Monstros” pequenos, quando não corrigidos, tornam-se frequentemente “monstros grandes” na idade adulta.

Voltando aos dias atuais, no Brasil, espera-se que a opinião pública pressione os governos no sentido de exigir as alterações necessárias na legislação, de modo a retirar das ruas crianças que pratiquem arrastões, ou frutos freqüentes, colocando-as em instituições governamentais ou particulares que aceitem essa incumbência em troca de um pagamento mensal. Deixá-las à vontade, cheirando cola e praticando delitos, é agir de forma irresponsável, incentivadora da criminalidade e até inimiga dessas crianças. O vasto problema tem que ser atacado nas duas pontas: nas causas ( miséria e ignorância) e nos efeitos ( crianças soltas cometendo infrações).

Consertar as causas remotas, políticas e econômicas, é tarefa demorada, complexa. Enquanto não corrigida a causa, que se cuide, já, agora, dos efeitos, recolhendo essas crianças mesmo contra vontade delas e de seus pais — quando constatado que estes não conseguem dominar seus filhos. Ninguém pode garantir que entre essas crianças que entram nas lojas para furtar não está um potencial futuro cientista nuclear, um jurista, um grande atleta, um genial escritor ou um ótimo eletricista ou encanador que só realizará seu potencial genético se receber boa alimentação, estudo e disciplina, nas doses certas e sem agressões físicas.

Que os governos acordem enquanto é tempo.

(29-8-2011)

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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A discutível “censura” de “O Estado de S.Paulo”

Para início de conversa, deixo explícito que sou assinante desse jornal há, provavelmente, mais de quinze anos. Assíduo e fiel leitor, sim, mas sem o fanatismo do apoio cego, automático, a todas as suas posições. Se equívocos de avaliação, ou “enquadramento legal”, podem ocorrer em todas as atividades humanas — mesmo as mais nobremente intencionadas —, os grandes jornais não estão excluídos dessa eventualidade, o mesmo ocorrendo com competentes e honrados jornalistas e juristas que neles se manifestam, como ocorreu na publicação do caderno especial “Sob Censura”, publicado na edição dominical de 31-72011.

Justamente por admirar, no geral, a forma de trabalhar desse jornal, possivelmente o mais corajoso e completo do país — no noticiário internacional, sem dúvida — é que atrevo-me a fazer alguns reparos sobre algumas opiniões a respeito do, a meu modesto entender, super-dimensionado conceito de “censura prévia”, materializado no litígio envolvendo o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado. Digo assim porque é exagerada a assertiva do jornal de que a imprensa vive sob censura no Brasil.

Quando o inciso IX – do art. 5º da Constituição Federal diz que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, esse valioso comando de liberdade é dirigido aos governos com práticas ditatoriais, não aos juízes e tribunais que, na suas atividades rotineiras, examinam pedidos de liminares — de toda ordem —, de pessoas ou firmas que se julgam — com ou seu razão — vítimas de calúnias, difamações ou distorções informativas que as desmoralizem.

Diariamente, escândalos de todos os tamanhos são apontados na mídia. As disposições legais e a própria noção do que seja “censura prévia” pressupõem aquela censura estatal genérica, global, em que jornais são proibidos de publicar notícias que desagradem ao governo; não aquele tipo de censura — melhor dizer “restrição provisória” — que protege tal ou qual indivíduo que busca a defesa do seu direito individual. A “censura prévia” — condenada, com razão, pelas organizações internacionais — é aquela direcionada contra a totalidade da mídia, exercida quase sempre pelo Poder Executivo, embora, em remotíssima possibilidade, possa ocorrer tal censura por iniciativa do Legislativo ou do Judiciário, o que não é o caso brasileiro do momento.

Houvesse, no Brasil, hoje, essa genérica e suposta “censura prévia” decretada por um Judiciário totalmente submisso ao Executivo, sentiríamos sua presença, bastando não sermos cegos nem surdos. Magistrados brasileiros emitem suas opiniões em entrevistas e decisões as mais opostas e livres, sobre todos os temas, incluindo a “censura”, como se pode ler, exemplificativamente, nas considerações do Min. Carlos Ayres Britto, expressas no caderno especial do “Estado”. Discussões até mesmo “esquentadas” ocorrem entre magistrados, nas sessões dos Tribunais, assistidas ao vivo e transmitidas pela televisão. Houvesse essa genérica “mordaça” — tão criticada, com razão — , ela seria facilmente perceptível. Tudo hoje está sujeito a discussão. Na imprensa e fora dela.

O que houve, no caso, foi um singelo e individual pedido de uma pessoa física que se julgou lesada em seu direito de privacidade — expressamente assegurado pela Constituição. Assim como a Lei Maior assegura a liberdade de imprensa, garante também o acesso aos tribunais de qualquer pessoa que se considere prejudicada, com ou sem real fundamento. Cada caso é um caso. Trata-se de um direito individual, expresso no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal assegurando, essencialmente, que “nenhuma lesão ou ameaça de direito” pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Com base nesse direito individual, constitucional e legal — há também uma lei a respeito, permitindo o “grampo” mas impondo, em compensação, o sigilo —, Fernando Sarney, sentindo-se prejudicado em sua reputação, requereu que o jornal não continuasse a publicar notícias contra sua pessoa, na investigação em andamento denominada “Operação Boi Barrica”.

O digno magistrado de primeira instância, Daniel Felipe Machado, a quem foi distribuído o processo, examinou o pedido e entendeu, livremente — segundo seu juízo, sem pedir permissão de qualquer censor —, que não era o caso de deferir o pedido de censura, certamente porque havia nas escutas gravadas uma mistura do interesse público com o privado, devendo, a seu ver, prevalecer o primeiro. Nesse indeferimento, técnico,“sem drama”, já há uma prova de que não existe a tal genérica “censura prévia” no Brasil. Há apenas divergências de opiniões entre juízes. Fernando Sarney, inconformado com essa decisão, recorreu para o Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Nesse Tribunal, o processo foi distribuído ao Des. Dácio Vieira, que pensou diferentemente do juiz de primeira instância e proibiu o jornal de difundir as notícias da referida investigação em andamento. Certamente, não concedeu a liminar apenas por favoritismo, ou por ter sido convidado para uma festa de casamento ( cada vez mais me convenço que os juízes na ativa devem se isolar socialmente...). Valorizou mais a proteção constitucional da intimidade do que o valor da informação geral. Cumpriu, também — ressalte-se — a Lei 9.296, de 24-7-96, cujo art. 8° obriga, nos casos de “grampo”, o sigilo das diligências, gravações e transcrições.

Diz expressamente o mencionado artigo 8º que “ A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Frise-se o “preservando-se o sigilo das diligências”.

Observe-se que o despacho do Des. Dácio Vieira não “trancou”, não proibiu o prosseguimento das investigações policiais. Proibiu apenas a difusão, na mídia, do que estava sendo apurado em decorrência das escutas telefônicas autorizadas pela justiça e que, pela lei vigente, repito, deveriam ser apenas do conhecimento do próprio juiz, claro, das partes em litígio, do cartório, dos advogados e dos membros do Ministério Público. Em reforço de sua opinião, mesmo eventualmente discutível, havia a proteção difusa da Constituição, que valoriza também — a meu ver igualmente —, a privacidade das pessoas quando conversam ao telefone com seus familiares e conhecidos. No caso, pai e filho conversavam, entre outras coisas, sobre a contratação de pessoa para trabalhar no Senado, sem concurso — prática muito comum no país; não ilegal mas vista com reservas porque pode significar “cabide de emprego”.

O jornal não se conformou com a manutenção do sigilo das investigações e vem lutando, até agora sem sucesso, para contornar a proibição prevista na referida Lei 9.296/96, insistindo, aparentemente — baseio-me no que vem sendo publicado na mídia — no direito da imprensa de publicar o que bem entenda, “doa a quem doer”, cabendo ao eventual prejudicado depois — só depois! muito depois! — uma indenização financeira ao jornal, ou até mesmo cadeia contra o jornalista ou repórter que escreveu alguma calúnia. Esse entendimento é apoiado pelo ilustre Ministro Ayres Brito, que frisa, em certo ponto de sua entrevista — no Suplemento Especial, pág. H5 —, que qualquer censura prévia da imprensa é inconstitucional. Diz até mesmo que “Quem quer que seja pode dizer o que quer que seja. A imprensa tem que ter precedência.”

Não é possível, “data vênia”, concordar com tão ilimitada e tirânica “precedência”. Repórteres e jornalistas não estão acima do bem e do mal; não são anjos, todos eles. Um anônimo espirituoso chegou a dizer, exagerando, que “If you saw a man drowning and you could either save him or photograph the event... what kind of film would you use?” (em tradução livre: “se você visse um homem se afogando e tivesse que escolher entre salvá-lo ou fotografar o fato, que tipo de filme você usaria?”).

Jornais podem destruir, para sempre, a reputação de uma pessoa. É pertinente, sim, na discussão do problema, a invocação do caso da “Escola Básica”, em que um estabelecimento de ensino foi descrito pela mídia como um antro de pedofilia. Teve que fechar, seus donos sofreram imensos vexames — poderiam ter sido linchados — e não sei se conseguiram recuperar suas reputações. Alguma resíduo permanece. Reputações manchadas não se recuperam depois do escândalo. É a velha história do saco de penas que o vento espalhou e depois não há como recolher todas elas.

O leitor já deve ter ouvido falar de William Randolph Hearst, magnata de imprensa, falecido em 1951. No auge de seu poder era proprietário de 28 jornais e 18 revistas, além de cadeias de rádio. Foi também produtor de cinema. Só para ajudar a lembrar, sua filha, Patty Hearst, foi seqüestrada por uma organização terrorista denominada “Exército Simbionês de Libertação”, sendo posteriormente liberada mas frisando que tinha aderido às convicções dos seqüestradores. Posteriormente, seus advogados alegaram que ela sofrera uma “lavagem cerebral”. Pois bem, Randolph Hearst, que entendia como poucos o poder da imprensa — era praticamente o dono dela —, dizia que “Você pode esmagar um homem com o jornalismo”. Daí a delicadeza do tema no que se refere à tênue linha de separação entre os dois valores teóricos em jogo: por um lado, o direito à vida privada e à honorabilidade; por outro, a necessária liberdade de informar.

É fácil dizer que “a posteriori” tudo voltará a seu lugar, em termos de reputação e danos financeiros. A vítima de calúnias e difamações terá que mover uma demorada demanda, buscando indenização— após o igualmente lento litígio anterior, criminal ou cível — para receber o prejuízo econômico. No Brasil uma ação dessa — aliás, duas — pode demorar talvez uma década, a continuar o atual permissivo sistema recursal, com inúmeras e demoradas instâncias. Além disso, o jornal leviano — ou vingativo — pode não ter patrimônio capaz de suportar o pagamento da indenização, eventualmente fixada. Não haverá, nesses casos, qualquer indenização. E, de qualquer forma, a honra perdida nunca é totalmente recuperada, porque o povo em geral não tem tempo nem interesse em pesquisas históricas.

No caso em exame, do prestigiado jornal, seu patrimônio suportaria qualquer eventual indenização, mas estamos aqui falando em tese, e considerando que há no país centenas de pequenas publicações difundindo notícias diariamente. Deve-se dar a ela uma carta branca para desmoralizar qualquer um? Levando até ao exagero a exemplificação — uma forma violenta, grosseira, mas eficaz, de se comprovar um argumento — se um jornalista sem caráter, movido pelo ódio, publicasse artigos caluniosos contra algum ministro de tribunal superior, dizendo, por exemplo, que o magistrado vendeu seu voto em determinado julgamento, é absolutamente previsível que o ministro caluniado procuraria, indignado — com razão —, a Justiça para impor a censura contra o jornal caluniador. Não deixaria, impassível, para um vago e distante futuro a correção da injustiça. E o jornalista mentiroso poderia se escusar de culpa alegando que não mentiu mas não poderia revelar quem lhe contou o fato porque ele, jornalista, lhe prometera sigilo. E jornalistas têm, em tese, o direito de preservar a fonte de sua informação.

Já que citamos um magnata do jornalismo, podemos citar também a opinião de um grande estadista e guerreiro, inteligentíssimo, que dominou o panorama europeu no início do século XIX, Napoleão Bonaparte. Dizia ele temer mais três jornais do que cem mil baionetas.

Um argumento, abordado no Suplemento do “Estado de S. Paulo”, com o qual discordo, é afirmar que o segredo de justiça, o sigilo, “é só do juiz”. Isto é, se o conteúdo dos “grampos” se tornou conhecido da imprensa, esta pode difundir as informações colhidas sob sigilo. Quem diz isso, embora de boa-fé, ignora a vida real. É praticamente impossível que o conteúdo desse tipo de prova permaneça longe da imprensa investigativa. Repórteres, principalmente, estão sempre à cata de “notícias-bomba”. E têm bom faro, do contrário não seriam bons repórteres. Com elas, podem até ganhar prêmios. O “furo” de um “foca” projeta seu nome deste para o topo da profissão.

É impossível um sigilo total, mesmo que o juiz se esforce nesse sentido. O magistrado não pode dar o seu despacho e, ciumentamente, sentar em cima dos autos, para que ninguém o leia. Dado o despacho, que deve ser fundamentado, os autos retornam ao cartório e a decisão é lida pelo escrivão e, provavelmente, por um ou outro funcionário, para algum registro, talvez “xérox”, intimação dos advogados e , eventualmente, de um membro do Ministério Público. As partes, isto é, os clientes dos advogados, também ficam conhecendo o conteúdo da investigação. Nos escritórios dos advogados trabalham auxiliares que podem ceder ao sentimento natural de curiosidade pelos “casos eletrizantes”. Como poderá o juiz, que não é Deus onipresente, controlar tanta gente? Como saber quem “vazou” a informação? Os “focas”, virtuosamente abelhudos, sedentos de novidade, tudo farão para se inteirar do conteúdo do despacho e do material probatório relacionado com o despacho. Justificam-se, perante sua própria consciência, com a nobreza essencial da imprensa, completamente esquecidos do sigilo legal imposto pela lei.

Ou o sigilo, previsto em lei, prevalece, é obedecido — mesmo que um ou outro curioso tenha tido conhecimento do despacho —, ou mude-se a legislação, cancelando-se qualquer sigilo. Se, mantida a obrigatoriedade da lei vigente, houve, irregularmente, alguma difusão dos informes, essa difusão será bem mais restrita, com menor dano à reputação do investigado sob sigilo. O medo de um processo criminal diminuirá a amplitude da difusão de uma informação que, legalmente, só poderia ser do conhecimento de alguns profissionais e das partes envolvidas.

Meses atrás, ou poucos anos — o tempo voa —, houve uma grita generalizada de advogados contra a prática da difusão, pela mídia, das investigações da Polícia Federal, nos casos criminais de “colarinho branco”. Alegava-se que empresários e banqueiros de grande projeção estavam sendo vítimas da difusão, pela mídia, de algo que deveria aguardar o fim longínquo dos processos, o trânsito em julgado da condenação no STF. Isso porque “às vezes, a verdade custa a aparecer”. Aí veio a lei 9.296/96, que disse, síntese: “pode ‘grampear’, sim, mas que a prova permaneça em sigilo para não manchar, antecipadamente, a reputação de pessoas de presumida honorabilidade”. Agora, conforme a pessoa visada, alguns pensam que nunca, jamais, pode haver censura, mesmo em casos individuais. É uma interpretação conforme a simpatia ou antipatia da pessoa visada, ou alguém por trás dela.

Um item final: a questão do pedido de desistência de Fernando Sarney, com o qual o jornal não concordou. Alegou que só concordaria se o queixoso renunciasse ao suposto direito invocado. Sem tal renúncia formal, argumentou, Fernando Sarney poderia voltar à carga, tentando impedir a revelação de novos fatos sob investigação.

Com a devida vênia, exigir essa total renúncia do queixoso seria o mesmo que pedir a ele o direito de não protestar jamais contra coisa alguma, contra qualquer nova acusação futura, mesmo eventualmente caluniosa. Seria entregar-se de joelhos, com mãos atadas, à mercê da misericórdia da parte contrária. Ninguém, em juízo perfeito concordaria em renunciar antecipadamente ao seu direito de se defender de eventuais injustiças futuras. Esse tipo de suicídio processual seria uma estranha novidade.

Se o pedido de desistência, formulado por Fernando Saney tivesse sido acatado pelo jornal, este teria feito mais, pelo bem geral, de difusão da verdade, do que insistindo em prosseguir numa ação incompreensivelmente “emperrada” pela demora exagerada de alguns magistrados, que já poderiam ter julgado o mérito da ação. O “caso” não é, aparentemente, tão complicado assim. Se não existe, ainda, uma nova lei de imprensa, existe a constituição e uma lei em vigor. Não cabe “decidir”, em abstrato, qual valor é superior: o direito de informar ou o direito de alguém procurar a Justiça para defender sua reputação.

Com as considerações acima, não quero dizer que o jornal deva parar de investigar os bastidores dos governos. O que seria do Brasil sem o jornalismo investigativo? Quando Charles Darwin esteve no Brasil, escreveu em seu diário que aqui todos roubam. Uma generalização injusta, evidentemente, apenas um desabafo, cabível somente num diário pessoal mas que constatou uma velha tendência nacional. Somente uma imensa “faxina”, provocada em grande parte pela imprensa mais corajosa — e o “Estado” mostra-se campeão nisso — é que pode sanear o governo deste país. Os “focas abelhudos”, referidos neste artigo, merecem boa parte do reconhecimento pelos bons serviços prestados à nação. Podem estar pensando, também, em auto-promoção, mas esse sentimento não prejudica o bom resultado, em geral, de suas diligências buscando a verdade, ou pelo menos aquilo que pareça tal. Somente o medo da notícia publicada é que ainda inibe um pouco as falcatruas que são diariamente publicadas nos jornais, quase todas realmente falcatruas.

O que merece alguma crítica não é o fato de um magistrado deferir, ou indeferir, um pedido de bloqueio de uma prova obtida sob segredo de justiça. O que preocupa, “data vênia”, é a demora da decisão de mérito, demora que propicia a equivocada conclusão de que há censura de imprensa no Brasil. Não há.

(5-8-2011)