sexta-feira, 26 de março de 2010

“A Lula o que é de Lula’. Preconceito feroz

Nunca votei no Lula e provavelmente não votarei na Dilma Roussef porque não conheço sua cabeça. Mas um pouco de justiça no julgamento das pessoas, até mesmo de presidentes, não faria mal a ninguém. É natural que os partidos e seus seguidores — todos eles, sem exceção —, anseiem o poder, com suas irresistíveis benesses. Querem coisas bem variáveis: cargos, sensação de importância, relacionamentos úteis, riquezas, proteção da prole já adulta e seus cônjuges (nomeações) e, por vezes, até mesmo o bem da comunidade; ou daquele segmento com o qual se sente mais identificado. Por que não? Seria a união do agradável ao útil. Em um patamar bem mais alto, frio e quase deserto, estão algumas poucas almas penadas, mordidas por puro idealismo, dispostas a penetrar no arriscado serpentário com botas de cano alto mas sabendo que, mesmo assim, não estarão livres das picadas venenosas da calúnia e falsas interpretações. Como disse, aves raras, atormentadas por um sentimento de justiça que nasceu com eles e nunca morrerá. Uma espécie de doença moral incurável.

Nenhum Presidente da República escapou, escapa ou escapará da crítica, seja ela mentalmente honesta ou desonesta. Não é que os críticos sejam monstros morais, jararacas de duas pernas. São pessoas normais, “incapazes de matar uma mosca” mas ansiosas de ver o “maldito obstáculo”, digo, o presidente, preso ou desmoralizado; ou, pelo menos, humilhado pelo insucesso. Isso ocorre porque entre a gula mental de todo político de alto coturno e a ambicionada cadeira de ouro existe um “sujeitinho insignificante”, ou “grandalhão desengonçado” — Lincoln, de alta estatura, era chamado de “macaco” por alguns americanos, proprietários de escravo. Como, no geral, presidentes não têm pressa em morrer no cargo — seria uma mão na roda... — e além disso podem fazer seu sucessor, o jeito é caprichar na crítica para que qualquer mancha que nele grude diminua, futuramente, o número de votos no candidato de sua escolha . Como não é possível a existência simultânea de dezenas de presidentes da república — só aí todos ficariam satisfeitos (a contragosto ...) —, não há como escapar à necessidade de fustigar o “arrogante”, ou “mole”, ou “imbecil”, ou “ignorante” ocupante da ambicionada cadeira.

O presidente Lula não é exceção na sua posição de alvo no campeonato de flechadas, algumas envenenadas por interpretações tendenciosas. E é sobre esse pequeno detalhe — as distorções — que aqui conversaremos. Não há espaço, claro, para uma análise minuciosa de sua atuação como presidente. Limitar-me-ei às conclusões; as minhas, claro, que ninguém será obrigado a aceitar.

Nada a opor quanto ao direito de crítica contra presidentes da república, governadores e prefeitos, desde que fundamentadas na verdade, isto é, na interpretação honesta da realidade. Alguém poderá argumentar que não tem sentido — na dura realidade de nosso mundo — membros de um partido, tradicionalmente contrário ao partido do presidente, ficar elogiando o adversário. De acordo, mas uma coisa é deixar de aplaudir os acertos do inimigo político; outra, criticá-lo de má-fé, distorcendo os fatos ou o contexto de declarações.

Por que tanto furor contra Lula, na imprensa, na internet e nas conversas particulares? Por muitas razões, mais e menos respeitáveis. Entre estas últimas, sua figura e seu estado de origem: baixinho, nordestino, rechonchudo. Uma senhora, minha conhecida, por sinal inteligente e culta mas incapaz de dominar seu pétreo preconceito, diz que nunca confiou no Lula porque não só ele não estudou, quando adulto (teve oportunidade), como também porque “tem um olhar de demônio de pintura de igreja”. Não suporta suas metáforas futebolísticas, seu habitual “a gente...”, “nunca antes na história deste país...” e sua vocação de humorista amador, usando bonés e deixando-se filmar fazendo gracinhas. Acha que, sendo presidente, seria preciso uma compostura “à altura do cargo”. E não aprova, nem um pouco, a tendência dele de improvisar em seus discursos. Revolta-se com a ampliação de bolsas-famílias e ajudas similares, que, no entender dela, “fornecem o peixe mas não ensinam o pobre a pescar”. Considera que essa política de amparo “excessivo” estimula a ociosidade do pobre e o aumento do número de filhos. Acha, finalmente, que ele tem a intenção secreta — “pero no mucho” — de empurrar o Brasil rumo a um socialismo estilo Fidel Castro. Entende, ainda, que o presidente gosta demais da pinga e iguala presos políticos cubanos, em greve de fome, com marginais cumprindo pena em prisões brasileiras. Finalmente, censura a “megalomaníaca pretensão” de Lula em querer fazer o que ninguém ainda conseguiu, nem os EUA: a paz entre israelenses e palestinos. Finalmente, revolta-se contra a prática presidencial de não ler jornais, como já confessou.

Analisemos, não a “vôo de pássaro”, como se dizia antigamente, mas a “vôo de jato”, os argumentos da referida senhora, que chamaremos, hipoteticamente de “Dna. Helena”. O que ela diz, é o que dizem, mais extensamente, os jornais de oposição.

Quanto à figura física de Lula, nada o que dizer porque ninguém pode escolher as características que herdou. Quanto às metáforas futebolísticas, em matéria de gosto estou com Dna. Helena. Nunca gostei de futebol, embora goste de esportes bem mais brutais, como “vale-tudo” no “octagon”; lutas que assisto com viva curiosidade quando os dois lutadores estão equilibrados em força, técnica e agressividade. Quando um dos lutadores só apanha, mudo um pouco de canal, porque gosto de lutas, mas não de torturas e humilhações. Como disse, se não gosto de futebol — e consequentemente de suas metáforas — a falha deve ser minha, porque é um esporte admirado por milhões. E sendo admirada por milhões não é de surpreender que as metáforas presidenciais agradem e atraiam votos do sofrido “povão”, que não teve oportunidade de estudar mais, adquirindo gosto por metáforas mais intelectualizadas.

Ressalte-se que uma coisa é inteligência e bom senso: outra, a freqüência às escolas. Há pessoas, sem instrução regular, com muito mais bom-senso que outras, de formação superior. Por vezes, uma espécie de loucura branda aloja-se, sutilmente, na mente de um Ph.D. Inicialmente, ele impressiona, mas com o tempo seus colegas de profissão percebem que o evidente “brilho” não passa de um sintoma de que algo vai mal, queima a mente do admirado. Evidentemente, a loucura branda pode se alojar também na mente do ignorante. Por outro lado, sempre me impressiona a rapidez com que simples “manobristas”, que nem possuem automóveis, aprendem rapidamente como movimentar, com habilidade, todos os carros que chegam ao estacionamento. Finalmente, como a finalidade principal da democracia é amparar o maior número de cidadãos, é dever de todo presidente se preocupar mais com os pobres do que com os abonados, que sabem se defender perfeitamente, desde que não escravizados por um socialismo tipo stalinista.

Lula teve — está em fim de governo — a intenção de transformar o Brasil em um país comunista? Não, porque procurou beneficiar as camadas mais empobrecidas e, fazendo isso, tornou o socialismo “puro” menos viável e atraente. Pessoas das classes “C” ou “D” que sobem de categoria, tornando-se proprietárias — seja do que for —, tornam-se automaticamente, no geral, mais “conservadoras” — querem “conservar” os seus bens. Não teria havido a revolução socialista de 1917, na Rússia, se a maioria da população tivesse casa própria e um bom padrão de vida. Como, no Brasil, a classe média foi ampliada, com ajuda governamental, o país ficou menos receptivo à causa socialista.

Quanto à alegada propensão de Lula para o aguardente, parece-me que a crítica é exagerada, interessada em prejudicar. Se ele fosse um alcoólatra, isso já estaria bem provado, tendo em vista a constante vigilância da mídia. Ele não cambaleava em cerimônias, como Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo da era pós-comunismo. Winston Churchill, político inglês de imenso prestígio, Prêmio Nobel de Literatura, que ousou enfrentar Hitler quando toda a Europa se agachava, apavorada com o poderio nazista — poucos sabem que foi a Grã-Bretanha que declarou guerra contra a Alemanha, não o contrário — bebia muito mais (e fumava charutos) que Lula, sem que isso afetasse sua lucidez. Pelo contrário, entre suas frases selecionadas está — cito literalmente para que não se alegue que distorço suas palavras —: “All I can say is that I have taken more out of alcohol than it has taken out of me” —, isto é, “Tudo o que posso dizer é que eu extraí mais do álcool do que ele extraiu de mim”, ou tradução assemelhada (“The Wit &Wisdom of Winston Churchill”, de James C.Humes).

Quanto à pretensão de Lula, de apressar um acordo entre israelenses e palestinos, e provocar um abrandamento nas posições de Ahmadinejad, não há nada de “megalomaníaco” nisso, porque o mundo árabe e persa vê com simpatia o atual presidente brasileiro. E essa simpatia pessoal, por mais que se pretenda o contrário, exerce uma forte influência nas decisões políticas. Lula trabalha com o que tem, com o bom-senso e a boa-vontade; não com a cultura clássica, e geral, que não tem. A grande crítica da oposição e de alguns eruditos vem do medo de que ele consiga o que pretende: impulsionar a conciliação e levar mais paz ao Oriente Médio. Eruditos dessa área sentirão uma certa sensação de injustiça pessoal se um cidadão de pouca instrução conseguir, com base na mais “simplória” argumentação, conseguiu algo ainda não alcançado por brilhantes especialistas da política internacional.

Quanto a Lula não ler jornais — nem, suponho, internet —, isso é verdade e, particularmente, me sinto prejudicado. Vários meses atrás sugeri, em sites da internet, que o atual governo — se fosse do PSDB eu faria o mesmo — criasse, no hemisfério sul, no Brasil, um centro de estudos de Direito e Relações Internacionais que, à semelhança de uma Sorbonne, ensinasse não só o Direito Internacional tradicional, mas desse alguma ênfase ao estudo da criação de um governo mundial, em forma obviamente democrática e federativa. Um centro de estudos dessa natureza, no Brasil, atrairia não só a mocidade brasileira mas também a mocidade da América Latina que, falando espanhol, teria mais facilidade de acompanhar as aulas do que estudando essa matéria em universidades de língua inglesa ou francesa. E muitas aulas seria dadas em francês e inglês, com acompanhamento de professores brasileiros, para que profissionais — advogados, por exemplo — pudessem, depois de aqui formados, trabalhar em tribunais internacionais, de onde estão quase ausentes por falta de uma razão prática para isso e também porque não estão preparados para argumentar nas duas línguas oficiais nesses tribunais. Essa sugestão foi, pelo que fui informado por um jornalista , encaminhada ao governo Lula mas não houve qualquer resposta. Espero que eventual ciúme de algum assessor de Lula não seja a explicação de porque essa proposta não chegou aos ouvidos presidenciais. De qualquer forma, agora é tarde para seu governo iniciar um estudo a respeito. Quem sabe o próximo governo — federal ou estadual — terá interesse pelo assunto. Uma universidade desse tipo projetaria o Brasil, em termos acadêmicos.

Quanto à tendência de Lula de abandonar a leitura de seus discursos, passando a fazer considerações próprias, no fundo isso é bom, embora menos elegante, para o país. Fica-se sabendo o que realmente pensa e sente seu presidente, não o que pensa e redige seu “speechwriter”, ou escritor-fantasma, os habituais autores de discursos presidenciais.

Finalmente, a distorção relacionada com a falsa equiparação de presos políticos, em greve de fome em Cuba, com marginais de prisões. Parece-me evidente que Lula não quis igualar tais situações. Seria politicamente suicida uma equivalência desse tipo por parte de um político que esteve preso por motivos políticos, quando líder sindical. O que ele quis dizer — com sua conhecida e por vezes canhestra tendência de fazer “comparações elucidativas” — foi que a greve de fome não obriga os governantes a obedecer cegamente a quem se abstém de comer para conseguir impor a sua vontade. Para dar um exemplo “máximo” de um possível abuso na utilização da greve de fome, mencionou a hipótese de tal recurso ser usado por criminosos comuns. Margaret Thatcher, quando primeira-ministra da Inglaterra, não cedeu à vontade de um mineiro líder sindical que se opunha à privatização da extração do carvão. O mineiro morreu de inanição mas nem por isso a Grã-Bretanha se ergueu em revolta contra a combativa política. Há, portanto, um deliberada distorção da intenção na fala do Lula, obviamente visando proveitos políticos.

É isso, resumidamente, o que posso responder à “Dna. Helena”, que certamente não vai gostar do que leu mas, como dama inteligente e culta que é, saberá que julgar governantes é — e sempre será —, uma tarefa inacessível à unanimidade.

(25-3-10)

quarta-feira, 17 de março de 2010

A salvação está no átomo

Vou mais além: tanto para fins pacíficos quanto militares. Se a afirmação acima parece quase criminosa, ou frase de efeito, trata-se de mera aparência, como verá o leitor se tiver paciência de ler até o fim e pensar com a própria cabeça. Algo nem sempre fácil: — “O que pensarão de mim, os “bem pensantes”, se eu concordar que mesmo o “repulsivo” perigo nuclear é, em última análise, benéfico, quase indispensável para a humanidade tomar juízo?”

Quando se pensa, hoje, em usina atômica para fins estritamente civis, pacíficos, o receio de sua construção e funcionamento está imensamente reduzido. O medo de acidentes já não paralisa o cidadão comum, como ocorreu quando do vazamento de material radioativo da usina de Chernobyl. E há a dura realidade da escassez de energia limpa. Com o consumo excessivo e inevitável de combustível fóssil — petróleo, gás e carvão — produzindo o efeito estufa — leia-se degelo polar, aumento do nível do mar, instabilidade climática violenta, insalubridade do ar, etc. — a humanidade preocupa-se com o futuro energético, considerando-se as insuficientes alternativas de substituição das velhas fontes de energia que nos aquecem e fazem funcionar as máquinas indispensáveis à indústria, consumo, locomoção e tudo o mais.

A energia eólica e a solar ajudam, mas não resolvem basicamente o problema porque exigem áreas imensas destinadas a captação de suas respectivas forças. O álcool, substituindo a gasolina, também auxilia, mas não é isento de poluição. Além do mais, rouba precioso espaço, no solo, que poderia produzir alimentos. E a humanidade sonha, toda ela, não só em comer mais e melhor como também locomover-se no conforto de um veículo próprio. Com o aumento da “democracia econômica” — já não nos satisfaz a democracia jurídico-formal —, todos os povos, mesmo os hoje mais deficitários, querem gozar do padrão de vida americano. Não desanimarão enquanto não o alcançarem. Imagine-se a China com um bilhão de automóveis emitindo CO2. E o mesmo diga-se da Índia. Mesmo um “intocável” indiano — sua classificação, socialmente aceita, é uma vergonha para a humanidade —, se ainda não calejado, psicologicamente, pelo longo hábito da humilhação, deve acalentar um sonho de igualdade no conforto.

Quanto à energia hidráulica, ela não está disponível a todos os povos. Podem-se represar rios, mas não cria-los à vontade. A própria geografia justifica e recomenda a progressiva nuclearização do Oriente Médio, região pobre em recursos hidráulicos. E quando secarem os poços de petróleo? Árabes e persas vão viver do que, habitando um solo que é mais pedra e areia do que terra arável? Daí, a necessidade de maior tolerância geral quando países da região voltam-se para o desenvolvimento nuclear. Será o única oportunidade de escapar da futura, extrema e inevitável pobreza.

Dá para imaginar a objeção do leitor: — “Mas se o país, conhecedor da manipulação do átomo, passar a produzir também armas nucleares?” A resposta é que não há como evitar essa possibilidade, por sinal já aproveitada, há anos, por Israel que, além de poderosamente armado, convencionalmente, dispõe de ogivas nucleares. Todo mundo sabe e seu governo não nega esse poder, porque isso reforça a segurança do país, intimida os vizinhos árabes, ressentidos com o afluxo em massa de judeus e conseqüente expulsão de palestinos.

O mesmo hipotético leitor insistirá: “Muito bem! Concedamos que Israel possui armas nucleares, mas a proliferação atômica é, por acaso, algo desejável?! Deixando de lado o privilégio israelense, já meio antigo e consolidado — como ocorre com os demais componentes do fechado “clube atômico — conviria, por acaso, que mais e mais países dominassem a técnica de fabricar bombas atômicas? Quanto menos gente conhecer essa perigosíssima arma, melhor! Einstein dizia, sabiamente, que se houver uma Terceira Guerra Mundial, a Quarta será travada com pedras e porretes”. Um chavão que o próprio Einstein, se milagrosamente ressuscitado, reexaminaria, no atual contexto, grande amante da paz que era. Quando ele emitiu a famosa sentença, a situação no Oriente Médio não havia atingido o nível crítico atual. Quem conhece a biografia de Einstein sabe que ele jamais seria um eleitor de Benjamin Netanyahu.

É claro que quanto menos governos conhecerem os perigosos segredos atômicos, menor a probabilidade de uma guerra nuclear. Por outro lado, quanto mais sem peias o uso político do poder nuclear, por parte dos atuais privilegiados, maior sua tentação — às vezes meio inconsciente, enganando-se com o argumento de que apenas se defende — de prepotência contra países mais fracos e de poder nuclear zero. O abuso, vocação universal do bicho homem — animal especialmente perigoso porque inteligente —, sempre gera ressentimento do abusado. Se este não se sente em condições de atacar, frontalmente, o orgulhoso dono da força, ataca-o de forma oblíqua, via terrorismo.

Em suma, paz não teremos com a atual desigualdade. Além do mais, qualquer entendido em física nuclear concorda que, mais cedo ou mais tarde, novos países estarão em condições de fabricar armas nucleares, às claras ou furtivamente. Dominando a elogiável técnica de utilização pacífica do átomo — direito de todos os países — é quase impossível impedir que haja, em um momento qualquer, um redirecionamento desse conhecimento também para fins bélicos. Mesmo que os “atomicamente ignorantes” não disponham do conhecimento nuclear, tais armas poderão ser compradas, por terroristas, no mercado negro oriundo do desmoronamento da União Soviética. Não é impossível que um artefato nuclear seja detonado em uma grande capital do mundo ocidental, se o ódio for suficientemente forte para justificar tanto investimento em tempo e dinheiro, além da auto-destruição do próprio terrorista.

Disse, no início deste ensaio, que mesmo o conhecimento nuclear para fins bélicos é, paradoxalmente, benéfico à humanidade. Ouço a objeção: — “Como é possível dizer isso, contrariando o que afirmam todos os estadistas e o próprio Einstein?”. Digo, porque, primeiro, a humanidade está à beira de uma possível catástrofe, que seria desencadeada com um ataque israelense, ou ocidental, contra as instalações nucleares iranianas, com a desculpa esfarrapada de se tratar de um “ataque preventivo” contra um país capaz de produzir a bomba daqui a alguns anos. Segundo, porque o próprio Einstein, essa jóia moral humana, um judeu, em certo momento, reconheceu que a humanidade precisa ainda ser contida pelo medo.

No livro “Assim falou Einstein”, compilação de Alice Calaprice ( editora Civilização Brasileira, pág. 139), diz o grande gênio matemático — e moral — que: “Uma vez que não vejo a energia atômica como uma grande dádiva em futuro próximo, preciso dizer que no presente ela é uma ameaça. E talvez isso seja um fato positivo. Quem sabe, poderá forçar a raça humana a organizar suas relações internacionais, coisa que ela não fará sem a pressão do medo”.

À época de tais palavras, não havia preocupação com meio ambiente, e outros problemas relacionados, que hoje nos afligem. O que preocupava era a possibilidade de uma guerra nuclear entre EUA e União Soviética. Daí a dúvida do grande sábio quanto à utilidade, para fins pacíficos, da energia atômica. Mas não escapou à sua percepção a indispensabilidade da ferramenta do medo — “fato positivo”, nas palavras dele — para que o planeta ordenasse melhor suas relações internacionais. E este, agora, é o momento oportuno para melhor organizar o mundo, tendo em vista a possibilidade de um ataque contra instalações nucleares do Irã, com inevitável declaração de mais uma guerra, desta vez mais complicada que as duas outras, ainda pendentes, no Iraque e no Afeganistão.

Por onde iniciaríamos a reorganização do mundo, impedindo guerras e os abusos que conduzem às guerras? Pela ampliação da jurisdição e competência do Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia, Holanda, obrigando todos os países filiados à Organização das Nações Unidas a aceitar as demandas — ou permanecer revel, com todas suas conseqüências — contra eles movidas por estados e mesmo por coletividades reunindo centenas de milhares de pessoas, como é o caso dos palestinos, ainda carentes do status de “Estado”. Não tem o mais remoto cabimento moral, jurídico ou intelectual um país, representado na ONU, se conceder o “luxo soberano” de não aceitar ser demandado na justiça internacional. Se o país sabe estar errado é evidente que não aceitará ser julgado. E com isso se perpetuam situações de injustiça que incentivam o terrorismo. Se revel, ou não revel, terá que cumprir a decisão. Tal e qual acontece com o sistema de justiça interna de todos os países civilizados. A menos que o país se retire da ONU, privado, consequentemente, de se manifestar no grande centro de discussão do planeta.

A propósito, no mesmo livro anteriormente citado, a pág.138, Einstein censura o exagerado, quase doentio conceito de soberania: — “Enquanto as nações exigirem irrestrita soberania, teremos de nos defrontar, sem dúvida, com guerras ainda maiores, que usarão armas maiores e tecnologicamente mais avançadas”. Não chegou a mencionar, claro, o que aconteceria pouco depois, com a invenção e detonação da bomba de hidrogênio, na pequena ilha do Pacífico, Elugelab, em 1º de novembro de 1952. Seu poder explosivo foi de (...)“10 milhões de toneladas de potentes explosivos convencionais. A equivalência da bomba de Hiroshima foi de meras 12.500 toneladas de explosivos.”(P.D.Smith, “Os homens do fim do mundo”, pág.33, Ed. Companhia das Letras). E armas ainda mais potentes estão sendo estudadas, com utilização dos raios laser.

Como se vê, as nações não podem sentir-se à vontade para, baseadas na força, fabricar armas poderosíssimas, enquanto impõem proibições totais a nações mais fracas. Mesmo quando Barack Obama, um homem de valor — e espero que continue assim, resistindo às pressões... — fala em diminuição de estoques nucleares de seu país, não promete mais do que uma limitação delas, jamais sua proibição. Teme a China e esta teme a ainda poderosa e eficiente nação que lidera o mundo ocidental. O planeta caminha impulsionado pelo medo recíproco e competição entre as nações. Para gáudio da indústria armamentista que suga uma riqueza que, usada de outro modo, tornaria coisa ultrapassada a existência de uma única criança subnutrida na face da Terra.

As sugestões acima conduzem a um governo mundial? Quem dera assim fosse. Por sinal, o mesmo Einstein, nunca escondeu sua preferência por um governo mundial. No mesmo livro de seus pensamentos, pág. 148, deixou expresso que “A única salvação para a civilização e a raça humana é a criação de um governo mundial, com a segurança das nações baseada na lei” – New York Times, 15 de setembro de 1945.

Se Israel teme, realmente, a besteira de ser “varrido do mapa”, deveria dar todo apoio à idéia de um governo mundial democrático que, só ele, teria o monopólio do uso da força nas relações internacionais. Tal governo daria total segurança a Israel, Irã e todo o resto. E não me venham com a ignorância de que um governo mundial significa, inevitavelmente, ditadura.

Não basta limitar as armas atômicas. As convencionais também precisariam ser limitadas. Elas também matam, em larga escala, embora com menos brilho, calor e cogumelos. Com uma agravante: são “democráticas”, disponíveis a qualquer governo, por mais louco que seja seu titular.

(15-3-10)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Desonestidade mental + arrogância = condenação do Irã

Quem se dignar a estudar, mesmo não extensamente, a astuta campanha internacional que se faz contra o desenvolvimento nuclear iraniano só pode ficar pasmo com a tremenda parcialidade da mídia impressa contra o único país, o Irã, que teve a coragem de oferecer firme solidariedade aos palestinos, expulsos de terras ocupadas por quase dois milênios. É aí que está o foco do problema do Oriente Médio. O Irã é mero desdobramento, propício à distorções interpretativas na complexa política internacional, porque imagens de cogumelos atômicos impressionam mais que humilhações do dia-a-dia contra populações indefesas, no caso, os palestinos.

Solidariedade, a iraniana, que pode vir a custar, a seu povo, o bombardeio de suas instalações nucleares e não-nucleares, seguindo-se guerra defensiva — que será tortuosamente batizada de “ofensiva” — com conseqüente massacre de sua população. “Estadistas” envenenados de ódio, estupidez ou interesses escusos, encontram-se excitados com o cheiro de sangue e petróleo de um país fraco, se comparado com Israel e seus acólitos, inclusive os EUA.

Qual o “fundamento” para o cerco àquele país? A possibilidade, ainda remota, de que ele venha a desenvolver armas atômicas, as quais poderiam, em tese, ser arremessadas contra seu feroz inimigo, Israel, um inimigo figadal que jamais negou ser potência nuclear e desfruta do privilégio de nunca ter sido incomodado por isso. Aliás, nem mesmo se deu ao trabalho de assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. E não o tendo assinado, não está sujeito à inspeções, podendo fabricar armas nucleares à vontade. Conseqüência jurídica tecnicamente perfeita mas moralmente aberrante para o mundo globalizado. Algo que precisa ser urgentemente corrigido pela Organização das Nações Desunidas, digo, Unidas, se tiver lucidez e coragem suficiente para isso. O que se afigura duvidoso, porque carneiros mentais, até com Ph.D., existem em toda parte.

Alguém poderá argumentar que, cerca de quarenta anos atrás, o Irã assinou o Tratado de Não-Proliferação e nele ficou prevista a possibilidade de qualquer país dele se retirar — bastando alegar que assim o faz por questão de segurança, sem maiores explicações. Pelo referido acordo, decorrido o prazo de três meses, a partir da informação de que se retira do Tratado, o Irã ficaria “livre” para fabricar armas nucleares, igualando-se juridicamente a Israel. Ocorre que se o Irã, hoje, pedir sua retirada do tratado, seus inimigos soltariam foguetes de euforia dizendo que esse afastamento seria autêntica “confissão” de que pretende desenvolver armas nucleares, precisando ser contido e, se necessário, destruído. É espantoso que o Irã não tenha se lembrado de simplesmente se retirar, formalmente, do TNP, escapando da acusação de que está violando normas internacionais. Esclareça-se que não existem “normas internacionais”. Existem tratados internacionais.

A mídia, quase toda ela inimiga do Irã, repete o tempo todo que o presidente iraniano, Ahmadinejad, prometeu, anos atrás, “varrer Israel do mapa” e uma bomba atômica — interpretam seus inimigos — seria a vassoura previsível para essa tarefa. Um arroubo retórico não só tolo como também de impossível realização e que só não foi renegado, formalmente, por seu emissor, por medo de parecer fraco. Sem mencionar, aqui, sua falta de astúcia. Qualquer outro presidente, mais esperto, diria, no microfone — talvez recorrendo à mentira —, que a promessa da “vassoura” foi proferida em um momento de indignação contra os abusos cometidos contra os palestinos e que jamais pensou seriamente em destruir um país de sete ou oito milhões de habitantes. Diria também que seu não reconhecimento do Holocausto também foi um exagero de sua parte e que jamais iniciaria uma guerra nuclear porque nela não haveria vencedores. Com esse “recuo”, sincero ou verdadeiro, veria melhorada, pelo menos ligeiramente, sua imagem no plano internacional. Talvez não tenha voltado atrás por saber que não seria acreditado e ainda pareceria covarde. De qualquer forma, tais sentenças bombásticas não justificam o que se pretende fazer agora contra o Irã, castigando todo o povo por causa de frases tolas de uma única pessoa, embora presidente da república.

Ahmadinejad deve saber, perfeitamente, que na remota hipótese de um ataque nuclear contra Israel, Teerã seria reduzido a cinzas quase imediatamente. E o Mossad, a eficientíssima inteligência israelense, saberia quase imediatamente do plano de ataque iraniano, tomando rápidas providências.

É evidente que o presidente iraniano, com suas “indiretas’ de futuro poder nuclear bélico, quer muito mais “impor respeito” do que fabricar armas atômicas que possam ser efetivamente usadas, neste ano ou no próximo. Especialistas da área atômica frequentemente externam a opinião de que serão necessários alguns anos para que o Irã possa fabricar e remessar armas atômicas para Israel. Não esquecer que países que fabricam armas nucleares precisam realizar testes, antes de utilizá-las. E qualquer teste atômico iraniano seria detectado por Israel e seus incontáveis aliados, solidários quando deveriam ser apenas justos, separando o joio do trigo. Nessa metáfora, Ahmadinejad, com suas bravatas, representa o joio.

Como todos sabem, Israel é portador de imensa superioridade em armas convencionais, no Oriente Médio. Para manter a hegemonia bélica não precisa de armas nucleares mas, “por via das dúvidas”, reforça seu poder com a subentendida força nuclear, jamais inspecionada. Quer continuar assim, o que lhe permitirá prolongar, indefinidamente, o impasse com os palestinos na criação de dois Estados. Tudo indica que Benyamin Netanyahu não tem intenção de concluir um acordo, apesar de dizer o contrário. Ganha tempo e, com a oportuna e “bendita” ameaça nuclear iraniana, encontra bom pretexto para esticar o impasse enquanto prolonga e amplia a ocupação na Cisjordânia. Além disso, dispõe de imbatível lobby internacional, capaz até de vergar um Barack Obama. Concede-se o direito de ser arrogante, até mesmo pressionando presidentes de países, como o do Brasil, para que não vá visitar o Irã.

A mídia internacional é tão aberrantemente parcial que chega a considerar como “desafio ao Ocidente” o fato de Teerã exigir troca simultânea, em território iraniano, de seu urânio levemente enriquecido (a 3,5%) por material enriquecido a 20%, vindo do exterior e necessário para fins medicinais. As potências ocidentais pretendem — parece piada... — que o material nuclear uraniano seja entregue, “em confiança”, à Rússia, e depois à França, para só depois, anos depois, ser devolvido ao Irã. Esquema que não impede que esse material seja “confiscado” ou retido na Europa, com tais ou quais pretextos, por forças políticas interessadas em manter total hegemonia israelense no Oriente Médio. Que autoridade moral têm os países ocidentais, useiros e vezeiros em duplicidade, para exigir tanta confiança, neles, de um país comparativamente fraco e sem aliados fortes?

A China, com poder de veto no Conselho de Segurança, tem mantido uma discreta resistência à pressão quanto a novas sanções contra o Irã. Quinze por cento do petróleo consumido na China vem do Irã. Daí a resistência chinesa ao pedido de novas sanções mais sérias. No entanto, como na área internacional não existe ética, apenas interesses, não está afastada a hipótese dos inimigos do Irã acertarem um esquema de fornecer petróleo, em condições mais favoráveis, à China, desde que ela não vete, no Conselho de Segurança, sanções mais fortes, inclusive bombardeios, contra o Irã. Isso ocorrendo, o Irã pagará caro pela solidariedade ao povo palestino.

Vejam também o que ocorre com a Rússia: inicialmente, ela se mostrava firme contra novas sanções contra Teerã. Como, agora, está precisando comprar aviões de transporte franceses e Sarkosy “condiciona” a venda de tais aviões “ao voto russo na ONU”, isto é, na questão das sanções — é o que diz a Associated Press, citada no jornal “Estado de S.Paulo, de 2-3-10, pág. A-14 — o presidente russo já aceita “sanções inteligentes”, a demonstrar que chefes de estado “ajeitam” a própria consciência conforme exigem as circunstâncias.

Dirá alguém que a postura de Ahmadinejad não se explica pela solidaridade para com os palestinos. Dirá que ele quer é exercer maior domínio na conturbada região. Concedamos que exista também essa motivação, porque é comuníssimo, na política, uma mistura habilidosa de motivações. De qualquer forma, existindo essa pretensão de poder regional, sua realização será muito problemática, porque vários países árabes não vêem com bons olhos a submissão a um país que nem árabe é, e sim persa. Ahmadinejad, como presidente, passará, cedo ou tarde. Será sucedido, tudo indica, por um governo menos “fanático” e mais cuidadoso com as palavras. Sairá do poder antes que esteja “maduro” o fruto bélico nuclear, com respectivo teste. E se conseguir fabricar a bomba, no seu mandato, não a utilizará porque não é doido para ignorar que o revide seria imediato e mortal, inclusive carbonizando o próprio presidente.

Agora, o que me impressionou, pelo inusitado, provocando minha óbvia ira, é o atrevimento de certas autoridades norte-americanas ameaçando o presidente brasileiro, quase “proibindo-o” de visitar o Irã, na excursão que fará em maio ao Oriente Médio. Arturo Valenzuela, americano, secretário-assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, deixou um recado ameaçador: “Queremos que os brasileiros sejam mais enérgicos com os iranianos”. E, segundo a imprensa, Hillary Clinton vai subir o tom quando vier conversar com Lula, por esses dias. Felizmente, para os brasileiros, o presidente já respondeu à altura, dizendo que conversa com quem bem entende. Lição de altivez de um simples ex-operário a muitos engravatados incapazes de não “seguir a onda”.

Por que o desespero dos políticos israelenses contra a visita de Lula ao Oriente Médio, inclusive ao Irã? A meu ver, não é porque o Brasil tenha peso nas deliberações do Conselho de Segurança. O perigo está em Lula acalmar Ahmadinejad, convencê-lo a abrandar seu discurso, retirar a intenção da “varredura”, a negação do Holocausto e a promessa de que poderá fabricar armas nucleares. E um Ahmadinejad mais brando, não ameaçador, é tudo o que os “falcões” israelenses não querem, porque com essa calma o problema da criação dos dois Estados, na Palestina, teria que ser retomado.

Povos, em geral, são assemelhados, feitos do mesmo barro. Há gente mais e menos inteligente, mais e menos culta, mais e menos inclinada à solidariedade humana. Sua felicidade, ou desgraça, depende da sorte ou o do azar na escolha de seus governantes. O mesmo ocorre com israelenses e iranianos, ambos, no momento, em maré de azar. Boa parte dos judeus, bons judeus, ótimos judeus, gostaria de viver sem apreensão, mas esta origina-se, essencialmente, do impasse com os palestinos. Enquanto não resolvida a questão, por acordo entre as partes — quase impossível —, ou por imposição do Tribunal Internacional de Justiça — feitas as modificações na Carta da ONU — viveremos à beira de uma guerra, que pode se generalizar, ou virar uma nova forma de guerrilha. Se o Irã for bombardeado, não é impossível que diplomatas israelenses sejam assassinados em variados pontos do globo, e vice-versa, porque a violência estimula a violência. Quem se sente injustiçado, e tem o temperamento forte, sempre se concede o “direito” de reagir segundo o próprio critério de justiça, mandando a lei às favas.

O mundo aplaudiria a imensa sorte de ver surgir, em Israel, um líder excepcional, à altura dos bons judeus que tanto enriqueceram a civilização. Ele já deve estar lá, mais moço que velho, um tanto anônimo e sem poder. Um político de grande envergadura moral e intelectual. Uma mistura de Baruch Spinoza, Einstein e inúmeros outros intelectuais de corajosa honestidade mental, que sabem o que seria melhor para seu país e também para os palestinos — com ou sem Hamas, mero efeito colateral de uma ferida profunda. Um novo Moisés, com nova função: a de estender a mão, sem truques, aos palestinos, primos semitas que, por viverem séculos separados, esqueceram-se, no reencontro, que continuam parentes.

(2-3-10)

''Bolões" lotéricos e outros azares

"Bolões” lotéricos e outros azares

Poucos não souberam, no Brasil, o que aconteceu em uma casa lotérica na cidade de Novo Hamburgo-RS, no dia 20-2-10. O prêmio máximo da Mega-Sena era de 53 milhões de reais. Os quarenta “felizes” sorteados no “bolão” — organizado, particularmente, pela casa lotérica, sem responsabilidade da Caixa Econômica Federal — passaram, em poucas horas, da imensa euforia à “cava depressão”, como diria Nelson Rodrigues, ao saber que tais apostas não tinham sido registradas na entidade oficial. Em suma, como não houve aposta, os “azarados-felizardos” não têm direito a um só centavo, restando-lhes apenas processar civilmente a casa lotérica, ou pedir ao Ministério Público que processe criminalmente, por estelionato, as pessoas da lotérica, se constatada a má-fé.

Obviamente, não é consolo, para os frustrados apostadores, o mero “direito” de processar civilmente a casa lotérica. A demanda será longa, com longo arsenal de recursos disponíveis para ambas as partes e se, finalmente, como é provável, for reconhecida a responsabilidade cível da casa lotérica (o patrão responde pelos prejuízos causados pelo empregado) o dono da empresa certamente não terá um patrimônio em condições de indenizar os prejudicados.

Pelo vídeo da câmara de segurança existente na loja, com imagem transmitida nos canais de televisão, a impressão que se tem é de que houve apenas uma falha humana. A funcionária esqueceu de registrar a aposta dos referidos “bolões”. No entanto, a polícia, até mesmo por dever de ofício, não pretende se contentar com a filmagem porque, em tese — apenas em tese —, infratores costumam ser muito habilidosos em se defender. E quanto maior o valor econômico em jogo, maior o talento dramático para encobrir faltas. Mas, no caso em exame, como já disse, os discretos — e por isso mesmo convincentes — gestos da funcionária ao perceber a própria falha, não me parecem uma representação teatral. Tudo indica que houve mesmo um esquecimento. E falhas humanas ocorrem em todas as atividades, sem exceção.

Como o prêmio não saiu para ninguém, muito menos para a casa lotérica, o interesse da polícia é saber se a loja era useira e vezeira em recolher o dinheiro dos apostadores (em “bolões”), deixando de registrar tais apostas, confiante na raridade de se ganhar o primeiro prêmio na Mega-Sena. Não é impossível que algumas casas lotéricas, vez por outra, em situação de aperto financeiro do dono, deixem de registrar tais apostas, arriscando na quase certeza de que os apostadores do “bolão” não vão ganhar o prêmio máximo.

Lê-se, na mídia, que os revoltados “ganhadores” estudam processar a Caixa Econômica Federal porque ela, sabedora dessa prática, muito comum, nada fez para proibi-la. De um ponto de vista legal, essa pretensão não teria a menor possibilidade de êxito na justiça, se aplicada sem demagogia. Se os clientes das casas lotéricas nelas confiam, a Caixa não pode impedir essa confiança, assim como não pode impedir que apostadores particulares combinem fazer “bolões” particulares, entre amigos e parentes, prática também usual. Se o portador, particular, do comprovante da aposta eventualmente recebe o dinheiro e desaparece, lesando os amigos, a Caixa não tem nada com isso. É um caso de polícia, mas sem responsabilidade da instituição financeira oficial.

O mesmo ocorre com os “bolões” das casas lotéricas. E, no caso concreto do Rio Grande do Sul, já ouvi, na televisão, alguns apostadores habituais, ainda não lesados, afirmando que é gosto e direito deles jogar em “bolões”, tendo em vista a maior chance de “ganhar alguma coisa”. São contrários à proibição dessa prática. No entanto, é elogiável a preocupação da Caixa no sentido de desestimular esse “jeitinho” brasileiro do apostador “ganhar pelo menos uma fatia”. Desconheço se já ocorreu, no Brasil, a hipótese do dono da casa lotérica fugir do país, com o prêmio máximo de uma Mega-Sena, obtido via “bolão”. Isso, no entanto, não é impossível de ocorrer, tendo em vista a força magnética do dinheiro, capaz de causar curtos-circuitos na sistema elétrico cerebral, travando qualquer conselho do super-ego, no caso muito mais ego do que super.

Tempos atrás, a imprensa relatou — poucos leram isso — o que ocorreu nos bastidores do “jogo do bicho”. Uma determinada mulher começou a ganhar, com freqüência impressionante, o primeiro prêmio, religiosamente pago, como é usual nesse tipo de jogo que subsiste apenas baseado na confiança. A “cúpula” da contravenção, desconfiada da milagrosa felicidade no jogo, encarregou alguém de investigar a vida da “sortuda”. Descobriu que era amante de um “executivo” da contravenção, justamente o cidadão responsável pelo sorteio das apostas. Aprofundando as investigações — talvez usando métodos persuasivos não previstos em lei — foi descoberto o segredo de tanta “coincidência”: determinadas bolinhas numeradas eram colocadas no refrigerador e, depois de bem geladas, colocadas, disfarçadamente, em um saco escuro, misturadas com as outras bolinhas de temperatura ambiente. A pessoa, cúmplice no esquema, encarregada de “pescar”, “ao acaso”, o número vencedor, selecionava, pelo tato, as peças geladas que comporiam o cobiçado prêmio. Isso explicava a “sorte imensa” daquela mulher, amante do “espertinho” que vinha lesando seus companheiros de contravenção. Houve uma “convenção” dos “cardiais” para decidir a sorte do “malandro” e o veredicto foi de pena de morte, com utilização de um pistoleiro. Como, entretanto, o “réu” era parente de um dos membros da cúpula, esse parente cobriu o prejuízo. A pena de morte foi transformada em “degredo”, isto é, em expulsão da atividade, com devolução do que ainda estava em seu poder.

Essa notícia puxa outra lembrança; no caso, mera suspeita, mas que mereceria ser investigada, pela verossimilhança dos argumentos e probabilidade estatística de uma fraude capaz de derrubar governos, se constatada sua realidade.

Alguns poucos anos atrás, no jornal “O Estado de S. Paulo”, um leitor, engenheiro, A. F. Guimarães (talvez ele prefira não ver mencionado seu nome por inteiro), na seção de cartas, externou sua suspeita quanto à lisura no sorteio dos prêmios da Mega-Sena. Informou que o prêmio se acumulava e depois saía com, invulgar freqüência, para apostadores situados em perdidos rincões no nordeste e norte do país, afrontando todas as leis da probabilidade. Salientou que era raríssimo o prêmio sair para São Paulo e Rio, como seria o mais provável, considerando que nestas cidades é enorme a quantidade de apostas. Lendo e pensando no que ele dissera, até escrevi, na época, um artigo, que pouquíssimos leram, sugerindo que o assunto fosse examinado pela polícia e Ministério Público. Não sei se os argumentos do referido engenheiro estão corretos porque jamais me interessei por saber quais as cidades beneficiadas pela grande sorte.

Penso que, aproveitando a repercussão do caso do “bolão”, seria oportuno que a Polícia Federal, hoje mais auto-confiante, prestigiada e bem remunerada, examinasse o assunto da eventual fraude na Mega Sena, de alguns anos para cá. Até mesmo para tranqüilizar aqueles que nela apostam mas sem total certeza de que não está sendo iludidos, juntamente com milhões de brasileiros. Com alguns bons matemáticos, conhecedores do cálculo de probabilidades, seriam examinados os resultados dos últimos dois ou três anos de premiação. Se constatada a estranhável preferência da sorte, beneficiando exageradamente pequenas cidades, essa bofetada na lógica dos números aconselharia a investigação do percurso do dinheiro posto nas mãos dos ganhadores, talvez meros “laranjas”.

Voltando ao assunto da funcionária que esqueceu de registrar as apostas no “bolão”, cito um precedente assemelhado que ocorreu quando existia apenas a Loteria Esportiva. Quem me contou foi o advogado do apreensivo dono de uma casa lotérica situada no ABC paulista. Naquela época, as apostas na Loteria Esportiva só podiam ser feitas na Capital do Estado. Apostadores do interior, faziam suas previsões de resultado e as entregavam, em confiança, às casas lotéricas de suas cidades. Os donos de tais estabelecimentos deveriam encaminhar os palpites e registrá-los na Caixa, em São Paulo, até, no máximo, as sextas-feiras. Ocorre que, passado o prazo, o dono da lotérica, ao abrir uma gaveta, que supunha vazia, verificou que a mesma estava repleta de apostas. Falha de um funcionário. O que fazer? Apavorado, procurou o advogado. Este lhe explicou que a melhor solução seria levar à Delegacia de Polícia, imediatamente, antes dos jogos, as apostas e o dinheiro correspondente, comprovando que não houvera má-fé. Com isso, livrava o cliente de qualquer acusação criminal. “E quanto à parte cível” — perguntou o cliente —, “a indenização que terei de pagar aos apostadores, caso tenham acertado?”. A resposta foi, aproximadamente, a de que só lhe restaria rezar bastante para escapar da imensa indenização. E, de fato, nenhum dos apostadores acertou.

Pensei, à época, em escrever um conto que mereceria o título de “Guerra de Rezas”. De um lado, o dono da lotérica, ajoelhado, aflito, olhando para um céu imaginário e pedindo fervorosamente que todos os apostadores esquecidos na gaveta não acertassem nos resultados. De outro lado seria fácil imaginar vários apostadores rezando em sentido contrário

Certamente o incidente contribuiu muito para fortalecer a fé do dono da lotérica. Sem diminuição da fé dos esquecidos na gaveta, que sabem que jogo é jogo e Deus não chuta seus desígnios.

(27-2-10)