segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ban Ki-Moon e sua reeleição

O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas foi reeleito para mais um período de cinco anos. Candidato único ao mais importante cargo do mais importante organismo internacional, não poderia ser outro o resultado.

Mesmo cientes de que não podem influir em “assuntos estratosféricos”, as pessoas mais idealistas e lúcidas, interessadas apenas na solução efetiva dos problemas mundiais, gostariam que os secretários-gerais da ONU fossem uma espécie de “super-presidente”. Mais influentes — nessa área externa, de inter-relacionamento — que os presidentes dos países mais poderosos do mundo.

“Muitos discursos, tudo debatido e nada resolvido...” — é a queixa preponderante sobre boa parte do trabalho das Nações Unidas. “Congressos, cúpulas, Fóruns e até pancadarias — regadas com gás lacrimogêneo — mas os conflitos mais graves continuam sem solução. Ou esta é adiada para um vago futuro ou para otimista data exata em que o impasse continuará sob o argumento de que o quadro político “agora” mudou inteiramente. “Razões imperiosas” ou incidentes mínimos são alegadas por chefes de estado para não cumprir o prometido na reunião anterior, quando a demora é mais vantajosa que a solução. Isso é muito comum no eterno conflito entre Israel e os palestinos.

O Oriente Médio é hoje, sem dúvida, a maior fonte de inquietação. Se assumir dimensão radioativa, a indústria bélica mundial esfregará as mãos, feliz. Isto é, caso a família da diretoria resida bem longe dos cogumelos. Não se sabe o que resultará da revolta populacional contra os ditadores locais e do Norte da África. Nem mesmo se sabe se os atuais revoltosos são, ou não, maioria em seus países. Se eventualmente são minoria, como fica a questão da soberania? Teoricamente, pelos conceitos vigentes, um povo teria o “direito soberano” de viver conforme sua preferência. Até mesmo sob uma ditadura ou sob uma monarquia inútil, que não governa mas é vista com simpatia pelo povo.

“O povo é quem manda!”, diz a teoria política. Caso os revoltosos sejam, de fato, minorias não teria validade jurídica internacional o apoio bélico externo aos revoltosos que poderiam representar percentual mínimo da população. Mas na realidade ninguém está ligando para esse “detalhe insignificante”. A postura implícita das potências que apoiam os revoltosos é a de que “se o governante é um ditador, que caia fóra, seja ou não estimado ou apoiado pela maioria da população”. Como essa “filosofia política” está sendo aplicada numa região rica em petróleo e em conflitos religiosos e raciais, fica autorizada alguma especulação sobre o que está por baixo das sublevações no norte da África e no Oriente Médio, além dos celulares e outras tecnologias de comunicação em poder dos jovens.

Por outro lado, é praticamente unânime — estou de acordo, na substância, mas nem sempre no método — a opinião de que os direitos humanos devem — ou apenas deveriam? — ter aplicação universal. Aí cabe a perguntra: mesmo que a legislação do país disponha o contrário? Essa pretendida universalização “automática” dos direitos humanos, defendida, de boa-fé, por juristas respeitáveis, tem o seu lado perigoso, desnorteante, porque comporta uma certa elasticidade de interpretação. Há direitos humanos facilmente identificáveis, , como, por exemplo, o direito de não ser torturado nem apedrejado até morrer. Outros “direitos humanos”, porém, são menos nítidos, de interpretação mais problemática. É o caso de não se poder prender — um mero “segurar”, para que não fuja, após um segundo julgamento — alguém enquanto não transitar em julgado sua condenação judicial. Se aplicado ao pé da letra tal direito, no Brasil, nenhum criminoso do colarinho branco será preso, porque após inúmeros recursos ele aguardará a decisão final em local conhecido apenas por seu advogado, só voltando para casa se for absolvido ou se tiver direito à prisão domiciliar.

Quantos direitos humanos foram catalogados até agora? São dezenas. Esse problema “prático” precisa ser enfrentado pelas Nações Unidas e o que nela for decidido deve ser aplicado a todos os países integrantes da Organização.

No que se refere ao “eterno” conflito entre árabes e judeus, caldo de cultura para o terrorismo e o contra-terrorismo — hoje lucrativa indústria —, as almas mais inquietas se perguntam: “ Já estamos cansados de informações, parciais e imparciais. Textos, discursos e diálogos, aos milhares, esgotaram o assunto. Falta apenas ação, decisão. E como já ficou demonstrado que as duas partes em conflito não conseguem chegar à um resultado, é urgente que a sistemática internacional seja alterada para que a solução venha “de fora”, isto é, de um respeitado órgão judicante internacional que, não obstante a notória competência de seus integrantes, só funciona, absurdamente, se as duas partes concordarem em entregar o caso às mãos da justiça.

É evidente que a parte que sabe estar errada não concorda em ser julgada. O que nos leva à conclusão de que, se as partes não chegam a um acordo, que a solução venha de um órgão judicial especializado, que já temos, a Corte Internacional de Justiça.

Como a recusa de jurisdição permite abusos inegáveis, um mínimo de realismo obrigaria “alguém” a pressionar pela solução dessa falha, ou omissão, das Nações Unidas. E que melhor “alguém”, para isso, que o próprio Secretário Geral? Se a ONU decidisse que a aceitação da jurisdição internacional, doravante, seria obrigatória, sob pena de exclusão do país da entidade, os focos teimosos de inquietação tenderiam a desaparecer. Embaixadores dos países “expulsos” da ONU não poderiam mais discursar na Assembléia Geral nem, de forma alguma, se fazer ouvir na entidade. E a ONU poderia também adotar bloqueios comerciais contra o país que, por “complexo de superioridade” — ou implícita admissão de culpa — não aceita ser julgado “por seus pares”. E, se aceita a jurisdição, que o país vencido seja obrigado a cumprir a decisão, a menos que a outra parte aceite, voluntariamente, uma compensação.

Considerando-se que as soluções dos assuntos humanas devem partir de seres humanos, e não de computadores, não seria um Secretário Geral a pessoa ideal, pela sua visão mais ampla, para impulsionar a modificação da sistemática mundial na solução de controvérsias? Note-se que em tais julgamentos ambos os países litigantes — ou “partes”, doravante incluindo grandes grupos humanos, como a Autoridade Palestina — podem argumentar da maneira mais ampla possível. E em tais julgamentos seria permitido o uso da equidade, aquela técnica de julgamento que complementa a automática aplicação do Direito quando este é rígido demais, no caso concreto, porque moldado em outros tempos, outros costumes e outras realidades.

Para esse “salto qualitativo” da Justiça Internacional é necessário, porém, certa ousadia, ainda não concedida pela Carta das Nações Unidas ao Secretário Geral. Infelizmente, a função do Secretário Geral, é a de um “super-funcionário”. “Super”, porém “funcionário”, sem muito espaço para “sugerir novidades”. — “Não ponha suas manguinhas de fora..”, é a advertência implícita e restritivas nas nomeações para o importante cargo.

Há um ditado antigo que diz mais o menos o seguinte: “O sapateiro não pode ir além dos chinelos”. Essa máxima origina-se de uma observação feita por um famoso pintor que, por curiosidade, indagou a um sapateiro o que ele achava de seu quadro. O sapateiro, sentindo-se importante, observou que o pintor cometera um erro ao desenhar o chinelo. Estimulado pelo silêncio pensativo do artista, o artesão transformou-se em crítico de artes. Pôs-se a criticar o conjunto e outros detalhes do quadro. Aí o pintor cortou a dissertação pretensiosa do artífice dizendo a frase que se tornou proverbial.

Essa mesma “filosofia”, de limitação da liberdade opinativa rege a atuação dos secretários gerais da ONU. Pouco importa, aos chefes de estado, a consideração de que o Secretário Geral, só pelo fato de ver os problemas de uma posição mais elevada, pode enxergar com maior sabedoria os pontos mais sensíveis dos problemas que ameaçam a paz mundial.

Kofi Annan, antecessor de Ban ki-Moon, era muito prestigiado pelo seu padrinho, os EUA, enquanto não se opôs às vontades de George W. Bush. No momento em que Annan, após o 11 de setembro de 2001, opinou contra a pretensão americana de invasão do Iraque,W. Bush passou a minar o prestígio do então Secretário Geral, olhando com microscópio sua atividade e também a de seu filho, que trabalhava numa agência da ONU. Nada encontrou com relação ao Koffi pai mas, com relação ao filho, achou alguma coisa que poderia justificar a falta de apoio a um terceiro mandato de Kofi Annan. E este não foi reconduzido ao cargo.

Em suma, não interessa, às grandes potências, um Secretário Geral com idéias próprias, “ousado”, capaz de “atitudes”, mesmo as mais santas e necessárias. “Necessidade” é algo muito elástico na política internacional. — “Pode ser necessário para o conjunto da humanidade, mas não para meu país, óra essa!” — é o pensamento, jamais confessado, daqueles que, preocupados com as vantagens de seus países, decidem sobre os rumos do mundo.

Igual influência, para modificações, teria um presidente dos EUA, mas o Obama de hoje — os presidentes dificilmente podem ser eles mesmos todos os dias — está amarrado pela vontade ou necessidade de ser reeleito. Sem condições, portanto, de afrontar o “status quo” da Carta das Nações Unidas nem determinados “lobbies”. Além disso, é um homem, no fundo, tímido. Se não é, assim parece; excessivamente consciente de suas origens modestas.

Uma certa “auto vigilância” é qualidade valorizada para um potencial candidato a Secretário Geral. Basta que o candidato seja honesto, estudioso, experiente e de vida privada inatacável. E nisso Ban ki-Moon é imbatível. Fala e escreve em inglês e francês, além de sua própria lingua e sempre foi um estudioso. Seus parentes lembram-se dele, quando jovem, sempre com um livro na mão, como que prevendo que um dia exerceria um papel importante.

Há, porém, na evolução dos assuntos humanos, momentos em que seria necessária uma certa dose de ousadia. “Uma pitada de meia-loucura”, no caso, sábia. E não sei se Ban ki-Moon encontrará, no seu temperamento natural, forças para um passo além, derrubando “alguns móveis e cadeiras’. Encontrando carrancas e gélida resistência nos “donos do mundo”, terá ele fibra suficiente para propor e insistir nas alterações necessárias?

Carlos Lacerda, um jornalista e político brasileiro da década que precedeu a Revolução de 1964, era famoso pela coragem e contundência de seus discursos e artigos. Paradoxalmente — segundo confessou depois — quando adolescente era tímido. Vencida a timidez, a ousadia chegou a galope. Quem sabe, Ban ki-Moon fará o mesmo. Não com a mesma liberdade, porque se “agitar as massas” em um palanque é aceitável, o mesmo não acontece com um órgão da dimensão, potência e delicadeza das Nações Unidas, a melhor ou única esperança de um planeta que sabe o que deve ser feito mas permanece travado porque ainda não surgiu alguém capaz de quebrar a tranca, com estilo, sabedoria e alguma ousadia.

Quem sabe, Ban ki-Moon nos surpreenderá, porque não lhe falta inteligência e boa-intenção. Talvez encontre inspiração em um pensamento de Andrew Jackson, ex-presidente americano: “One man with courage makes a majority” (Um homem com coragem faz uma maioria).

(26-6-2011)

domingo, 26 de junho de 2011

Um advogado invulgar: Dr. Antônio de Arruda Sampaio

Quando juiz de direito, estadual, de varas cíveis, em Santo André (cinco anos) e São Paulo-SP (oito anos), tive oportunidade de conhecer inúmeros advogados. Era uma época — anos setenta e arredores —, em que os advogados, usualmente, levavam pessoalmente suas petições mais importantes para despacho do juiz. Tal costume ensejava, frequentemente, algum diálogo respeitoso entre magistrados e advogados. Era o “tempo da paz”, quando as “machadinhas da guerra” não haviam sido desenterradas pelas duas valorosas tribos jurídicas.

Esse convívio, embora breve e não planejado, “derretia” um pouco o gelo entre duas atividades destinadas a um inevitável conflito de opiniões porque na justiça não há “empate”: uma das partes, autor ou réu — por vezes, ambas — sai perdendo e, por isso, recorre, atacando a decisão do juiz. E os ataques, por vezes, são contundentes. Pessoalmente, para evitar irresistíveis ressentimentos, raríssimas vezes eu lia as apelações, pois a tendência natural de todo ser vivo — e o juiz, embora alguns duvidem, se inclui nessa categoria — é reagir a qualquer ataque, justo ou injusto. Paradoxalmente, quanto mais justo o ataque à sentença, mais o fígado do juiz sente o golpe. Ninguém gosta de ver seu erro exposto à visitação pública, considerando que os processos em geral não correm em segredo de justiça. Um grande magistrado paulista, especialmente polêmico e capaz, o Des. Alves Braga, costumava me dizer: “Não quero que falem de mim com razão. Sem razão, podem falar mal à vontade”. Se toda crítica justa é, em tese, virtuosa, trata-se de virtude bem indigesta quando utilizada contra nós mesmos.

Entre os advogados que me causaram enorme impressão figurava o Dr. Antônio de Arruda Sampaio, agora nonagenário, que, esclareça-se, não tem parentesco conhecido com o incisivo ex-candidato a presidência da república, Plínio de Arruda Sampaio, nas eleições de 2010. Se eu tivesse que listar cinco advogados da área cível, no Estado de São Paulo, dignos de especial menção, Dr. Arruda Sampaio estaria incluído no seleto rol.

Por que o Dr. Arruda Sampaio marcou minha memória? Por causa da contundência lúcida de seus argumentos, combatividade, operosidade, minúcia, tremendo senso de responsabilidade profissional e invulgar cultura, inclusive literária, fruto da leitura atenta de centenas de livros que — com certo exagero, a meu ver —, se obrigava a ler até o fim.

Suas petições eram extensas, mas recheadas de substância e em rigoroso respeito ao vernáculo. Quando eu iniciava a leitura de suas petições, principalmente as elaboradas alegações finais, ajeitava-me inquieto na cadeira e me advertia: “Concentre-se, lá vem dinamite...” Cada processo dele era um campo de batalha em que os fatos e o direito davam as mãos empunhando a mesma espada. Não é raro que grandes conhecedores do direito, ao advogar, valorizem em excesso as elegantes e profundas considerações teóricas mas negligenciem um tanto — não era o caso de nosso entrevistado — o lado “cozinha”, terra-a-terra, do processo: a prova, o conjunto de detalhes “não brilhantes” que, interligados, permitem, mesmo a um advogado iniciante mas diligente, derrotar um luminar do Direito. Arruda Sampaio não descurava: manejava doutrina e prova com igual empenho.

Uma pessoa da área jurídica me informou — não fui conferir — que uma apelação do nosso herói chegou a trezentas páginas, um livro. Petições longas podem significar coisas opostas. Uma, ruim: incapacidade de síntese, dificuldade de redação ou tentativa de confundir a cabeça do julgador com a chamada “obscuridade brilhante”. Pode, porém, a petição longa, ter um significado bom: imenso zelo profissional, resultante da dúvida do redator sobre se o juiz compreenderá realmente todos os detalhes da causa, quando complexa. Depois de minha aposentadoria, conversando sobre isso com o Dr. Arruda Sampaio, ele me explicou que, segundo sua experiência, se o advogado acha que com vinte argumentos poderia ganhar a questão, convém que apresente não os vinte, mas trinta argumentos, pois o patrono nunca pode estar seguro de que o juiz estará totalmente concentrado na leitura dos autos. Um mero telefonema preocupante pode distrair a atenção do magistrado, levando-o a uma decisão errada porque o advogado não explicitou algo que o juiz não percebeu que estava implícito no que lera.

Outro aspecto saliente na invulgar personalidade do homenageado está na sua biografia de menino sem recursos na cidade de Aquidauana/MS. Ele ficou órfão aos nove anos. Precisando ajudar a família trabalhou como engraxate, auxiliar de balcão em loja comercial, porteiro de cinema, ajudante de farmácia, balconista de bar e finalmente empregado da Charqueada Rio Negro, onde encontrou um “segundo pai”, Antonio da Costa Rondon, que, percebendo seu grande potencial, patrocinou seu curso ginasial em Campo Grande. Àquela época, em Aquidaunana só o curso primário era fornecido pelo estado.

Daí pra frente, foi uma fileira de êxitos como rapaz determinado e estudioso. Destacou-se como orador de turmas e redator de jornais de centro acadêmico. Venceu todas as etapas graças a uma férrea força de vontade — virtude hoje pouco valorizada — e ao apoio espiritual que extraiu do Cristianismo. Mantém até hoje, uma fé católica inabalável e tremendamente lúcida. Não venham, com pouca bagagem, discutir com ele as virtudes do Cristianismo.

Não exagero ao ter a impressão de que nosso homenageado poderia ter sido o que bem quisesse na área política nacional e acadêmica. Não o quis, porém. Vá alguém tentar entender porque algumas pessoas — não obstante especialmente dotadas, inclusive na comunicação verbal — não querem participar da corrida pelo poder. Não seria isso um indício de que a política, quando adotada como profissão, obriga a certas transigências incompatíveis com a rigidez moral? Arruda Sampaio preferiu ser, sem auto-promoção, um competente e bem sucedido advogado, além de erudito e homem de fé. Conseguiu, na área cível, vencer na profissão, em todos os aspectos, embora não ligue muito para o lado financeiro de seu próprio sucesso. Nunca dirigiu seus carros, importados ou nacionais — para isso tem motorista —, e confessa, sem acanhamento, não saber nem como se levanta a tampa do motor. Nunca teve nem quis ter carteira de habilitação.

Já me estendi demais nesta breve biografia. Com ela também homenageio, de maneira simbólica, centenas de anônimos advogados brasileiros, de invulgar inteligência, caráter e cultura que não sentem vocação para o magistério nem a necessidade de “se comunicar”— como autores de livros. Como não existe ainda, um “monumento ao advogado desconhecido” — equivalente àquele dedicado aos soldados anônimos sacrificados em guerras —, sirva esta homenagem como breve reparo a essa omissão.

O Dr. Antônio de Arruda Sampaio está encerrando seu escritório, conseqüência da avançada idade. Que a presente homenagem, aceita por ele com muita relutância — eu precisava de alguns dados biográficos — sirva como um substitutivo da estátua de bronze, da qual seria merecedor.

(19-6-2011)

“Teoria conspiratória”, ou genialidade no crime?

Lendo, agora pouco, um artigo do inteligente e honesto jornalista francês, Gilles Lapouge, em jornal paulista, não resisti à tentação de opinar , pela terceira vez, sobre o já exaustivamente abordado “caso” de Dominique Strauss-Kahn. Todos já leram, “ad nauseam”, sobre o “acesso de tara” do então diretor-geral do FMI e provável futuro presidente da França que, cedendo — burrice altamente improvável — a um desejo sexual incontrolável, atacou, com a roupa com que nasceu, a camareira do hotel mal ela entrou no quarto para fazer a limpeza. Isso ocorreu em Nova York. A empregada conseguiu escapar, espavorida — talvez verdadeiramente assustada, mesmo havendo trama — do quarto e relatou o ocorrido aos funcionários do hotel. Strauss-Kahn deixou o local e dirigiu-se ao aeroporto porque voltaria à França, na parte da tarde, conforme passagens compradas alguns dias antes.

Os fatos, de tão repetidos, não precisam ser relembrados. O detalhe mais estranho estaria em o “estuprador”, no aeroporto JFK, telefonar ao hotel e, ingenuamente — para um criminoso —, pedir a um funcionário que levasse para ele seu celular, que havia esquecido no hotel. Por que não abandonou o celular? Por que tanto amor a um aparelho? O funcionário, sabendo, só então, onde se encontrava “o monstro de cabelo branco”, avisou a polícia e esta prendeu o “fugitivo”, em lance cinematográfico da série 007, quando o avião estava preste a levantar vôo. Preso e algemado, o “velho tarado” aguarda, silencioso, o seu destino.

Tal silêncio, sugerindo culpa, me parece só agora explicável, caso corresponda à verdade, como é bem provável, a hipótese mais recente sobre o que aconteceu realmente naquele “tenebroso” quarto de hotel. Essa última versão — DSK pensava que a camareira da Guiné era a garota de programa que ele encomendara e por isso a “atacou” sem qualquer trabalho prévio de tentativa de sedução — eu a li no artigo de Gilles Lapouge, que a mencionou, en passant , como mais um exemplo da atual mania de se inventar “teorias conspiratórias”.

Gilles Lapouge é um jornalista íntegro e inteligente. É até mesmo “viciante”, no bom sentido de que quem o lê uma vez, sente necessidade de lê-lo sempre. Um “cocaína” do espírito, tal como, aqui no Brasil, ocorre com alguns cronistas. Um deles é o Arnaldo Jabor, que leio impreterivelmente todas as terças-feiras, não só pelo brilho do estilo como pela coragem, quase doentia, de dizer o que pensa. Frequentemente pensamos como ele, mas não assumimos. Por comodismo ou medo. Infelizmente, as melhores verdades são quase sempre desagradáveis e perigosas. Medo de processo judicial, com despesas judiciais, risco de xilindró, ou pesada indenização por dano moral. Ou medo de um misterioso “assaltante desconhecido” que, conduzido na garupa de uma motocicleta, pode nos enviar para o além com quase certa impunidade. A moto estará sem placa, no momento.

Teorias conspiratórias, realmente, inundam a mídia, principalmente a eletrônica. A internet oferece, por ser fácil e grátis, espaço para qualquer um, mesmo ignorante e pouco inteligente. Malucos de todo gênero tentam provar que o mundo vai acabar no ano tal. Se não acabou, “não tem pobrema”. Inventa-se uma explicação pelo fracasso da profecia. Trechos da Bíblia ou outros textos sagrados; conjunções de corpos celestes; misteriosos grupos de conspiradores que pretendem dominar o mundo; extraterrestres e tudo o mais disponível à imaginações desvairadas; ou espertas, visando lucro.

No caso Strauss-Kahn, porém, há motivos sérios para especular. E a última versão me parece cair como a mais perfeita luva explicativa sobre o que realmente ocorreu. Claro que continua de pé a hipótese — embora remota e grotesca — de que o grande economista e político tenha sofrido uma anulação da inteligência, produzida por um excesso hormonal bloqueador de neurônios.

Qual, então, a explicação que mereceria, pela engenhosidade má, um “Prêmio Arapuca” — o oposto do Nobel — caso verdadeira a última hipótese explicativa do que ocorreu no quarto de hotel?

Certamente, aconteceu o seguinte: o mais tenaz e motivado inimigo de DSK, sabendo de seu passado de “mulherengo”, viu que seria por aí — fácil credibilidade — a melhor via de ataque, principalmente porque é sempre difícil se provar, depois, o que ocorreu entre duas pessoas, de sexo diferente, dentro de um ambiente fechado. Ocorrendo “o caso” nos EUA, a justiça americana estaria invulgarmente propensa a encarar com especial rigor puritano um caso envolvendo sexo de pessoa importante. Os Estados Unidos são, certamente, o país em que mais convivem os extremos da máxima liberdade sexual — na mídia e no cinema — com o máximo de puritanismo quando os envolvidos são pessoas famosas e podem render notícia.

Continuando a explicação. Pressionado por suas necessidades de vazão de libido, DSK solicitou, por telefone celular, a presença de uma garota de programa. Talvez, para não despertar suspeita, pediu que ela fosse visitá-lo, em tal hora, com roupa de camareira de quarto. Mal ela entrou, DSK já a aguardava nu, como disse depois a camareira. Pensando que a camareira era a tal garota de programa, agiu com desembaraço. Se eventualmente houve resistência, talvez DSK imaginasse que se tratava de uma forma mais violenta de jogo amoroso, ou sexual.

A camareira, não sabendo também da trama, se assustou e reagiu, fugindo do quarto, alguns minutos depois, contando o ocorrido a outros funcionários.

O plano seria perfeito. A camareira, mesmo submetendo-se a um teste de detector de mentiras, passaria com facilidade no teste porque não estaria mentindo. Teria ocorrido, realmente, o “ataque” súbito, esquisito, de um homem nu. Provas físicas, químicas, do contato sexual, estariam também presentes nas vestes, como diz a mídia. Líquidos orgânicos de DSK estão presentes, dizem, na gola da roupa da camareira.

Pergunta-se: por que DSK, no momento da prisão, permaneceu em silêncio, sem se apressar a dizer, a todo mundo em volta, que “avançou” na moça porque pensou que ela era a esperada garota de programa? Porque isso também seria desabonador de sua reputação política. A um homem casado, na sua posição, não ficaria bem — mormente nos EUA — convocar garota de programa para visitá-lo no hotel. E como essa convocação teria — provavelmente — sido feita por telefone celular — não iria, tendo inimigos, usar o telefone do hotel, eventualmente grampeado — achou melhor usar o celular. Por isso quis reavê-lo através de um funcionário do hotel. Ligações de celular talvez — não costumo usá-lo —fiquem registradas no aparelho.

Se as coisas se passaram assim, teríamos um crime perfeito de calúnia contra um homem importantíssimo. Um quase “golpe de estado” prévio, impedindo a eleição de um provável futuro presidente.

Atrevo-me a pensar que tipo de gente seria capaz de conceber tão diabólico plano. Só não digo aqui porque poderia cometer uma injustiça. Sabendo que DSK cedo ou tarde cederia a seus imperativos hormonais, antes de voltar à França, o ainda não revelado “gênio do crime” poderia — não conheço os limites técnicos da espionagem — até mesmo estar monitorando todas as ligações celulares do grande homem no hotel. Captando a chamada da garota de programa, avisaria DSK que a moça entraria em seu quarto em determinada hora e, talvez, vestida como camareira. Esta, involuntariamente, seria apenas uma das peças da ratoeira. O queijo seria o traiçoeiro instinto sexual. Quando leio propagandas de remédios anunciando efeitos revigorantes em cápsulas que dão vigor novo a homens velhos, fico imaginando quantos problemas conjugais, políticos e financeiros estarão implícitos na bula descrevendo a composição química do produto.

O leitor, ou a gentil leitora, pode estar pensando que “ninguém” chegaria a tal requinte de sutileza para inventar um plano como o acima descrito. “Seria diabólico demais!”. Mas chega, leitor, chega, se há tempo suficiente para pensar longamente a respeito e a recompensa pelo bom êxito da trama for suficientemente estimulante. Nunca duvidem da eficácia do dinheiro como propulsor da imaginação

Se eu pudesse advogar na justiça americana, de Nova York, não hesitaria, por exceção — não estou advogando —, de oferecer serviços advocatícios, gratuitamente, a DSK, integrando, modestamente, sua equipe de defesa.

Ainda não estou convencido de que ele caiu em uma armadilha apenas hormonal.

(30-5-2011)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Síntese desidratada do caso Cesare Battisti

Aconteceu, hoje de manhã, algo que há tempos não me ocorria: “cliquei” alguma tecla errada no computador — escolhi a opção errada — e com isso “deletei” um longo acréscimo redacional, de quatro horas, que digitei na mesma “página” em que estava um artigo anterior, sobre Cesare Battisti (“Como terminará o caso Cesare Battisti?” — vide www.franciscopinheirorodrigues.com.br ). O que estava escrito antes continuou firme, mas meu laborioso acréscimo — criticando a decisão final do governo brasileiro sumiu. Nem mesmo estava na tal “lixeira”, sem ofensa contra o autor deste artigo...

Chamado para o almoço, estava até disposto a não mexer mais no assunto. Muito trabalho... Resignado, pensei: “Está bem, vá lá... O governo brasileiro errou, mas Battisti, hoje, é outro homem. Esteve privado da liberdade de ir e vir durante quatro anos, esperando o desfecho do caso. Há décadas não conhece, presumo, paz de espírito, algo tão precioso a todo ser humano normal. E Battisti não é, certamente, um monstro. Está, conforme o chavão da esperança, recuperado. Não matará ninguém aqui no Brasil. Provavelmente matou, sim, na Itália — jamais admitiria isso, nas circunstâncias atuais — mas no fim da década de 1970, em que na Europa fervilhava a paixão política. Ideologias atacam o cérebro com o vigor doentio de certos vírus e bactérias. Pior que o vírus ideológico, somente o da raiva, de Pasteur, que enlouquece o cérebro inteiramente, faz babar e mata”.

Continuei pensando: “Battisti já “pagou pelo que fez” — embora informalmente, com a “pena alternativa” da sensação de insegurança —, pelos desatinos da mocidade. Teve que mudar de países para não ser preso. Que agora descanse e escreva seus livros, ganhando seu dinheirinho porque, afinal, também é filho de Deus. Leitores de vida calma sentem imensa curiosidade sobre o que acontece nos subterrâneos da sociedade. Experimentam, lendo-os, o frêmito da ação, sem o correspondente perigo. Talvez le mereça uma segunda chance. O “talvez” aqui se justifica porque não se sabe como ele utilizará seu refúgio no Brasil, concedido com evidentes contorções interpretativas pelos membros do governo que se identificaram com suas opiniões políticas. Não se sabe se será grato com o país que o acolheu. O caráter dele ainda é um mistério. Provavelmente, jamais se esquecerá da imensa sorte de ter sido preso, no Brasil, justamente quando políticos de esquerda mandavam no país. Se o governo fosse de direita, ou centro-direita, já estaria em prisão italiana há um bom tempo. Tratados internacionais — por falta de uma norma geral que discipline a ilimitada “soberania” — ainda são interpretados, por seus signatários, “ao gosto político do freguês”. Com tais pensamentos eu digeria meu fracasso informático.

Ocorre que, enquanto almoçava, assisti, casualmente, na televisão, a entrevista de dois juristas que respondiam as perguntas de uma repórter. Ouvindo um deles, que elogiava e justificava jurídica e politicamente a decisão do governo brasileiro, todo meu conformismo se evaporou. Não com o fato do jurista apoiar e permanência de Battisti no Brasil, mas com a tendenciosidade dos argumentos apresentados.

O leitor já deve ter passado por experiência semelhante: estamos dispostos a “engolir”, por mera tolerância, determinado comportamento, ou opinião contrária. Queremos apenas sossego. Quando, porém, alguém passa a insultar nossa inteligência com argumentos infantis ou desonestos aí já fica difícil calar. Uma coisa é respeitar a opinião alheia; outra, sentir que o cidadão nos considera extremamente burros. Daí minha decisão de escrever o que segue abaixo.

Para não cansar os leitores, cada vez mais avessos a “longas considerações”— reação perfeitamente compreensível em um mundo que se afoga em textos — condensarei ao máximo as informações e argumentos sobre o assunto. Talvez o leitor mais politicamente neutro concorde com minha conclusão. Se não concordar, consulte sua consciência e veja se está raciocinando friamente ou cede a impulsos ideológicos, francos ou disfarçados. Respeitarei sua opinião, seja qual for. Não travarei polêmicas, via e-mails, porque isso consome tempo precioso, além de não convencer qualquer das partes. Ainda não inventaram uma pílula capaz de anestesiar o orgulho intelectual. Se for realizado um congresso filosófico internacional sobre a tolerância, é quase certo que se formarão duas correntes que mutuamente se odiarão.

Vamos à síntese.

No fim dos anos 1970, Battisti integrava uma organização terrorista. Concluiu a justiça italiana — depois de um julgamento com direito ao contraditório —, que ele matou ou mandou matar quatro pessoas, e uma quinta ficou paraplégica quando do assalto a uma joalheria. Fugiu para a França e não se interessou minimamente em se defender no processo que corria contra ele na Itália. Nem mesmo contratou um advogado que o representasse. Simpatizantes de esquerda certamente se encarregariam dos gastos da defesa, caso ele pretendesse se defender. Justificou-se, no Brasil, anos depois, já condenado, dizendo que não confiava na justiça do seu país, e por isso não moveu uma palha. Bastaria, portanto, sua palavra imperial contra tudo o que estava nos autos do processo.

É muito cômodo a qualquer réu fugir do seu país sem se defender, e dizer depois que não confiava no sistema judiciário. Tal desculpa, porém, só seria admissível na União Soviética, nos tempos de Stalin, ou em países imensamente atrasados, com ditadores impondo a seus juízes obediência irrestrita.

A Itália pode ser acusada de muitas coisas, mas não sobre a qualidade de seu Direito e sua justiça. Nessa área, o estudo do Direito, é muito prestigiada no mundo inteiro. Inúmeras teorias jurídico-penais, aceitas por países cultos, tiveram por berço a Itália. Se ela merecer alguma restrição é por ser até “legalista” demais, isto é, ampliar de tal modo o direito de defesa que as ações demoram, o que redunda em benefício dos réus, considerando a prescrição e outras vantagens.

Quando o governo francês, declaradamente socialista, de François Mitterrand, foi substituído por um governo de centro, Battisti sentiu que sua sorte tinha mudado. Fugiu novamente, agora para o México e depois para o Brasil, onde acabou preso por uso de passaporte falso. Pediu asilo político mas este lhe foi negado pelo órgão próprio criado para cuidar do tema “refugiados”, o Conare.

Não obstante essa decisão, o então Ministro da Justiça, claramente de esquerda, concedeu o asilo. Chegou, então, o pedido de extradição da Itália. Como tais pedidos são dirigidos ao governo — Poder Executivo — do país onde está o foragido, e não ao STF, o ex-presidente Lula — que também tem simpatia pelas esquerdas —, na dúvida quanto aos complexos aspectos legais, encaminhou o assunto ao STF. Não queria se arriscar a um erro clamoroso.

O STF reconheceu que o pedido de extradição estava juridicamente perfeito mas, considerando o conceito de soberania dos países, a decisão final caberia ao chefe de estado, no caso o Presidente da República, formalidade seguida à risca. Como o conceito atual de “soberania” é ainda desregulado e mal compreendido — propiciando abusos imensos, frutos da mescla de simpatia com ignorância — o governo brasileiro desprezou o que havia sido combinado em tratado formal com a Itália e negou a esta o pedido de extradição. Disse que há um risco de o italiano ser maltratado, caso voltasse ao país. A se aceitar tal argumento, qualquer país poderia descumprir seus tratados, agindo como Hitler que dizia ser o tratado um pedaço de papel.

A desculpa do governo brasileiro para descumprir o tratado de extradição é muito fraca. Não esconde o mero desejo de proteger um irmão ideológico. Voltando Battisti à Itália, depois de tanto alvoroço midiático, o governo italiano teria o máximo interesse em não manchar sua reputação de país do Primeiro Mundo. Zelaria para que Battisti fosse tratado conforme a lei. A imprensa estaria sempre vigilante, ainda que fosse pelo mero interesse de vender jornais.

Na Itália, Battisti teria à sua disposição, para livre escolha, a nata da advocacia criminal italiana. Uma grande “vitrine” profissional. E não só de advogados socialistas. O advogado escolhido, querendo ou não, estaria continuamente nas manchetes, promovendo sua reputação profissional. Alguém acredita que o governo italiano seria suficientemente estúpido para mandar espancar ou matar um condenado famoso e seus advogados?

Se houve, eventualmente, alguma injustiça na condenação de Battisti, certamente haverá, na legislação processual italiana — como acontece no Brasil com as ações rescisórias — um meio de se restabelecer a verdade. Se provado o dolo estatal na eventual injustiça contra Battisti este poderia exigir, depois de sua absolvição, uma indenização financeira de vulto. Querer anular todo o trabalho da justiça, com a simplória alegação de que sua condenação foi arbitrária, fruto “apenas” de denúncia anônima, é caçoar da realidade.

Nenhum tribunal condena um réu somente porque alguém o apontou como culpado, e ponto final. Os depoimentos do “denunciante” são esquadrinhados e cotejados com o conjunto da prova. Na luta contra a Máfia, na Itália, a delação premiada possibilitou inúmeras condenações e prisões justas. Qualquer delator tem suas acusações esquadrinhadas pela defesa e até mesmo pela acusação, que não quer passar vexame, na corte, pela ingênua credulidade. Todos os que trabalham na área sabem disso.

Enfim, Battisti vai ficar no Brasil. Por capricho e simpatia do governo brasileiro, orientado por assessores que cederam a meros impulsos ideológicos. Poucos deles estão ligando para a reputação internacional do Brasil. Confiam excessivamente, por falta de juízo — no fundo, sabem que estão tecnicamente errados — na força do poder econômico e político, na riqueza do pré-sal, nas Copas e outros indícios de prestígio. Sabem que a Itália, economicamente, precisa mais do Brasil do que o Brasil precisa da Itália.

A Itália, no entanto, precisa recorrer à jurisdição internacional, na Corte Internacional de Justiça, na Haia. Deve fazer isso, mesmo eventualmente sem resultado prático. Ganhando a causa — ganharia, não há dúvida, havendo julgamento — o Brasil ficaria numa situação internacional bastante desconfortável, caso descumprisse a decisão.

Obviamente, se a Itália ajuizar ação na Justiça Internacional, o Brasil, formalmente citado, não será obrigado a aceitar a jurisdição — uma aberrante falha da ONU no regular o assunto; falha que, cedo ou tarde, será corrigida porque é intolerável num planeta globalizado. O Brasil pode, repito, recusar a demanda, mas isso significaria uma confissão implícita de culpa. Uma demonstração de que o Brasil decide as coisas na base da simpatia pessoal, não conforme o Direito e promessas contidas em tratados.

Quem orientou o ex-presidente Lula — não votei nele, mas reconheço-o como pessoa sentimental e de boa-fé, tanto quanto é possível em política — nesse assunto esqueceu que esclarecê-lo de que existe, nas relações internacionais, um princípio chamado “reciprocidade”. Se o governo brasileiro pode, por mera simpatia com um condenado, se dar o direito de descumprir um tratado, a outra parte contratante também fica com o direito de agir da mesma forma, “pagando na mesma moeda”. Se um brasileiro de pouco juízo —, mas juridicamente responsável por seus atos —, decidir matar, por motivação política, alguma pessoa querida do Lula e fugir para a Itália, antes de ser preso, conseguindo lá o status de refugiado político, com que autoridade o governo brasileiro vai exigir, do governo italiano, a extradição do brasileiro assassino? A Itália poderia alegar que não entrega o fugitivo porque há receio, igualmente vago, de que ele, retornando, seria maltratado ou morto por autoridades brasileiras.

Enfim, a Itália deve, até mesmo para agilizar o aperfeiçoamento do Direito Internacional Público, levar o conflito à Corte Internacional de Justiça. Se, repito, o Brasil não aceitar a ação, isso o desprestigiará internacionalmente. Se aceitar, e perder a causa — como acontecerá — e depois não cumprir o julgado, seu desprestígio será ainda maior. Mas poderá, perdendo a causa, voltar atrás e conceder a extradição, decisão que “não transita em julgado” porque concedida com fundamento estritamente político. Não haveria “vexame político” do governo brasileiro, com a entrega do fugitivo, porque apenas estaria cumprindo uma decisão do maior órgão judiciário do planeta.

Nada tenho contra Battisti, mas em certos dilemas mais vale ficar com a razão do que com o coração. E não esquecer que um futuro governo socialista italiano poderá, quem sabe, anistiar Battisti, permitindo que ele viaje, sem medo, de cabeça erguida, pelo mundo todo, fazendo palestras sobre seus livros, que certamente serão interessantes. Pretendo lê-los. Tenho certeza que aprenderei com eles.

(13-6-2011)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Indignação coletiva contra a nulidade da Satiagraha

O presente artigo é adaptação de um meu artigo anterior, “Um cochilo jurídico e arbóreo de Homero” (www.franciscopinheirorodrigues.com.br). O pitoresco adjetivo “arbóreo” tem a ver, aqui, com a suspeita teoria rotulada de “fruto da árvore envenenada”. Esta é uma engenhosa “saída mágica” para proteger, com bíblico palavreado, réus poderosos quando a prova reunida contra eles, por ser evidente demais, levaria a uma condenação judicial. A “arraia miúda”, réus de baixa categoria, nem se atreve a invocar tal preciosidade jurídica. É necessário um certo status social para poder invocá-la.

Perguntei, certa vez, a um experiente delegado de polícia, como é que eles, com tanta freqüência, conseguiam descobrir a autoria de crimes contra o patrimônio em que não houve flagrante e nulas eram as pistas deixadas na cena do crime. Ele me respondeu: “Graças às denúncias anônimas, na maioria das vezes vindas de outros criminosos”. E porque as denúncias são anônimas? Porque se forem assinadas, o delator morreria dentro de poucos dias.

Se a justiça fosse anular todas as condenações de assaltantes e sequestradores, por causa da denúncia anônima inicial — outra suposta “fruta envenenada” — alto percentual da bandidagem estaria hoje nas ruas, totalmente “recuperada”, com terço na mão e praticando obras de caridade com suas piedosas facas e revólveres. O que interessa ao país, muito mais que as firulas jurídicas, é saber se o crime ficou ou não provado, após o regular exercício do direito de defesa. Se for o caso, se houve algum sério exagero investigativo, que se puna administrativamente o funcionário que se entusiasmou demais na busca de provas. Melhor isso, mais justo, que anular o resultado de milhares de horas de trabalho, perícias e documentos visando elucidar os fatos. No caso em exame, de conhecido banqueiro, dono do Opportunity, houve extinção da ação penal. Estaca zero. Quem terá ânimo, ou coragem, na Polícia Federal, de começar tudo de novo? A prescrição garantirá o enterro de qualquer eventual culpa do réu. E por pouco o juiz que julgou o caso, Fausto De Sanctis, não foi punido. O Conselho Nacional de Justiça recusou seu castigo, solicitado por não haver soltado imediatamente o dono do banco Opportunity. O juiz alegou que não mandou soltar porque havia outra acusação.

A mencionada “saída mágica” — o fruto da árvore envenenada — conseguiu algum prestígio no direito brasileiro porque foi concebida pela respeitada justiça norte-americana. Esta tem o seu lado muito eficaz — por sua objetividade e severidade —, mas não está totalmente isenta, de vez em quando, de pressões sutis quando o réu tem poderosas ligações, como foi o caso da reeleição de George W. Bush. Não esquecer que os juízes americanos são eleitos, isto é, não se submetem a concursos de provas e títulos. Eleição e juízes eleitos não fazem boa mistura. É o caso de se dizer, no caso da Satiagraha, que se parte da raiz esteve burocraticamente envenenada — termo, convenhamos, forte demais para o caso — mas o fruto, a prova dos autos, mostrou-se revelador, não há porque inutilizar o produto final. O discutível “veneno” parcial da raiz não conseguiu afetar o tronco por inteiro nem chegar até o fruto. E este é que alimenta o prestígio da justiça.

No julgamento em exame, por maioria (3x2), da 5ª Turma do STJ, de 07-6-2011, tudo, desde o início, foi anulado — inquérito policial, processo judicial, e condenação — porque o delegado que chefiava o inquérito policial, Protógenes Queiroz, recrutou agentes da Abin para ajudar nas investigações. Participando delas, tiveram acesso a dados sigilosos e escutas. Não consta, porém, nem foi alegado, que as informações colhidas por tais agentes tenham sido usadas para outros fins, criminosos, como seria o caso, por exemplo, de chantagens.

Salvo engano, a expressão “teoria dos frutos da árvore envenenada” foi aplicada, pela primeira vez, em 1939, em um caso de contrabando, “Nardone versus United States. Como houve uma escuta ilegal do réu, tudo o que ele disse não teria valor jurídico como prova de acusação, o mesmo ocorrendo com outras provas, incontestáveis, obtidas posteriormente graças à escuta ilegal. Haveria uma cadeia de contaminações absolutas. Um prêmio para os infratores e um castigo para algum policial mais empenhado em combater o crime. Tal empenho merece elogios. O que não pode é o policial adulterar provas.

No Brasil, o exagero prevaleceu, pela primeira vez, no Habeas Corpus n.69.012/RS, em razão de uma minoria que se tornou “maioria” por mero acidente, como explico em meu artigo anterior, já referido no início. Reporto-me a ele, para brevidade do relato.
Figuremos, para comprovação do absurdo da “teoria dos frutos da árvore envenenada”, a seguinte hipótese: um policial mais pertinaz, ou o pai de uma criança desaparecida, está convicto de que um determinado cidadão — astuto e respeitado na comunidade —, seqüestrou, violentou, matou e enterrou várias crianças, ou mulheres. Não conseguindo provas testemunhais, nem autorização judicial para uma escuta, ou busca domiciliar, o policial “grampeia” o telefone do suspeito. Ouvindo sua conversa com um cúmplice, grava a confissão do “serial killer”. Inclusive a confissão deste de que filmou as cenas — para ele excitantes —, e enterrou os cadáveres em seu sítio, perto do paiol. Para reforço da confissão ouvida, o mesmo policial, ou pai vingativo, penetra na garagem do criminoso e lá descobre, escondidos num caixa, alguns DVDs com a filmagem das cenas de violação sexual praticadas por ele mesmo. Em seguida, o policial vai até o sítio do criminoso e localiza a cova coletiva onde estão suas vítimas. Aí chama a polícia, oficialmente.

No hipotético caso, a se aplicar dogmaticamente a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, toda a prova contra o suspeito seria sem valor porque os filmes em que aparece o réu abusando das vítimas, e a existência comprovada da cova com os cadáveres seriam “frutos envenenados” em decorrência da escuta clandestina e do ingresso na propriedade do criminoso sem um mandado judicial. Existe absurdo jurídico mais gritante do que este? O que deve pesar mais, a existência indiscutível de um ou mais crimes, ou a falha burocrática? Podem existir cadáveres de fato mas não de direito?

No caso em exame, o digno Ministro que funcionou como relator no habeas corpus que livrou Daniel Dantas de toda culpa — e proferiu o voto de desempate em seu favor — reconhece, segundo está na mídia, que a Abin poderia, sim, numa operação compartilhada, participar da investigação, mas só mediante prévia autorização judicial. Ora, esse detalhe foi irrelevante, em concreto, porque a autorização judicial viria, certamente, do próprio juiz De Sanctis, dado como um “inimigo” do réu em questão.

De qualquer forma, esse detalhe da falta de um ofício pedindo a autorização para utilizar agentes da Abin na investigação não tem relevo suficiente, inclusive moral, para invalidar vários anos de investigação. Que o delegado precisasse do auxílio de agentes da Abin não é estranhável porque tais agentes estão mais especificamente preparados, tecnicamente, para investigações mais complexas, principalmente envolvendo a área financeira.

Segundo a mídia, existem cerca de 1.600 funcionários na Abin. Certamente muitos deles inaproveitados porque o Brasil não vive impregnado de espiões estrangeiros, elaborando planos tenebrosos contra nossa segurança. Não há terrorismo no Brasil. Não houve prejuízo para o país, com a utilização de funcionários da Abin na investigação. O mais razoável, segundo a opinião majoritária — e sensata — dos cidadãos brasileiros, seria que a justiça examinasse o mérito das acusações contra Daniel Dantas, inclusive com auxílio de peritos auditores, para saber se ele é ou não inocente das acusações. E, frise-se: no âmbito do habeas corpus não cabe exame minucioso da prova. Por isso, sua “salvação”, simpática para algumas pessoas, estaria na evocação de uma tese genérica, que dispensasse a demonstração de sua inocência. “Arquivar” o caso, em um julgamento de cinco magistrados, por três votos contra dois, dando realce desmesurado à inexistência de um papel de ofício é por em risco, imerecidamente, a boa reputação do Superior Tribunal de Justiça. A população brasileira vai pensar que a decisão foi de todo o Tribunal, quando não foi.

Espera-se que o órgão de acusação, no caso, não se conforme com a decisão do habeas corpus. O povo brasileiro quer apenas conhecer a verdade. Se a anulação transitar em julgado ela funcionará como dose cavalar de decepção cívica. Segundo pesquisa recente sobre o prestígio das instituições brasileiras, a Justiça, numa escala de zero a dez, recebeu nota 4,5. Se mantido o habeas corpus, a nota de aprovação baixará para 2 ou 3.

Aguardemos a reação do órgão acusador.

(8-6-2011)