terça-feira, 9 de junho de 2009

O que fazer com Kim Jong-il? Nada.

A ambiciosa, inteligente e persuasiva indústria armamentista mundial deve estar excitadíssima com os desafios ou “desatinos” — como melhor classificar? — de Kim Jong-il, o ditador norte-coreano.

O cliente, em abstrato, adorado pela indústria bélica, é o medo. Sem ele, falência generalizada na indústria dos canhões. Pior do que a General Motors (“motores do general”?, involuntário trocadilho). Já o cliente reverenciado em carne e osso é qualquer chefe de estado ou de governo suficientemente inescrupuloso ou corajoso para resolver os problemas — principalmente econômicos — de seu país fugindo deles mediante excitações bélicas.

É bem o caso de Kim Jong-il, filho de outro ditador e provável pai de um terceiro. Isso só não acontecerá se o próprio filho recusar o cargo. Aí provavelmente um outro parente será nomeado “rei”. Um caso estranho de realeza, de sangue azul – no caso amarelo — em um tipo de regime cuja essência — o comunismo — reside na mais íntima identificação entre líderes e liderados. Como na Coréia do Norte não há eleições nem imprensa livres, a massa — magra, mas não por opção — apóia, sem análise, as ordens do “pai” incontrastável.

Considerando que não há qualquer sombra de democracia na Coréia do Norte e seu futuro — como o de toda a região — depende de um só homem, e este depende do que ocorre em seu cérebro, a melhor solução para o perigo atômico coreano está em aguardar, com paciência, a decisão biológica. No caso, sua saúde. Depois dele, ver-se-á o que fazer. Atacar a Coréia do Norte, só se ela atacar primeiro, mas concretamente. Nada de “ataques preventivos’, com conseqüências seríssimas em termos de destruição, mortes e contaminação radioativa.

Como não existe, ainda — isso precisa ser alterado com urgência — um governo mundial, ou quase isso, com poderes, aceitos por todos os países, de intervenção imediata para “confisco” ou “extração” — como se fosse um dente podre — de ditadores que estão pondo em variados risco outros países, e até mesmo os próprios governados — é o caso de Roberto Mugabe, no Zimbábue —, a solução mais sábia é não estimular a belicosidade de um chefe de estado que pode não estar em pleno juízo por causas físicas (AVC), ou psicológicas.

Quando Hitler, na década de 1930 — após armar a Alemanha com o maior máquina de guerra do planeta — ao exteriorizar suas intenções de dominar o mundo, tivesse sido “extraído” do poder por um governo mundial democrático, não teríamos a grande carnificina que foi a 2ª Guerra Mundial. Nem a sua conseqüência, a “Guerra Fria”, que por pouco não se transformou em atomicamente “quente’, em 1962, na “crise dos foguetes”. Só não ocorreu, então, um conflito nuclear porque Nikita Kruschev, um homem de modos simplórios — certa vez, em plena sessão da ONU tirou o sapato e começou a golpear a mesa, exigindo atenção — mas de grande visão, teve o bom senso e a coragem moral de voltar atrás, ordenando o retorno dos navios que transportavam mísseis nucleares destinados a Cuba.

Por sinal, esse gesto de corajosa prudência, se salvou a humanidade de uma guerra provavelmente nuclear, não salvou o prestígio do próprio Kruschev dentro da União Soviética. Os generais russos acharam que ele foi “mole” no incidente. Em vez de agradecerem a própria não-incineração, os estrelados “medalhentos” criticaram o recuo. Não compreenderam o alcance do gesto heróico justamente por não ser “heróico”, isto é, com rufar de tambores. Com isso Kruschev perdeu o poder em seu país. O “cartaz” internacional, com o retorno dos foguetes, ficou todo com John Kennedy. Mais um exemplo de que “dar uma de durão”, “vale mais” para o povão que agir com inteligência e prudência. É sabendo disso que os ditadores, em geral, apelam para exibições de força. E o povo é que se dana. Como foi o caso das Malvinas, uma guerrinha destinada a desviar a atenção dos problemas que então afligiam a Argentina.

Qualquer medida bélica — “outras opções”... — contra Kim Jong-il visando paralisação ou destruição de suas atividades atômicas será contraproducente. Medidas militares serão impensáveis, porque a Coréia do Norte tem um exército numeroso e poderoso. E, em situação extrema, pode lançar foguetes com ogivas nucleares. Aí será o caos. Não há garantias de que será esmagada antes de apertar os botões. E mesmo que isso ocorresse, com um fulminante e preciso ataque preventivo dos EUA, esse ataque preventivo seria um ato de covardia contra um povo que não tem culpa das asneiras de seu chefe, “dono” e arquiteto da opinião pública. Onde não há imprensa livre poucos pensam de modo diferente do chefe.

Também não funcionam “medidas econômicas duras”, aumentando a pobreza de países governados por ditadores se estes são apoiados pelo povo, certa ou erradamente. Sofrem apenas as camadas mais pobres. A comida e outros bens indispensáveis não faltarão na mesa dos governantes e seus apoiadores. E quando a fome ameaça, aumenta a proporção de “amigos do rei”, interessados em comer, mandamento primeiro embutido em todo ser vivo. A carência estomacal tem imensa força persuasiva.

Um argumento incontornável que reforça o apoio popular a Kim Jong-il tem, no entanto, um fundo de verdade: está havendo um tratamento desigual entre os países. O Conselho de Segurança da ONU exige que a Coréia do Norte encerre seu programa nuclear direcionado à produção de armas. O problema é que, para isso, teria que manter fiscais dentro das usinas, verificando constantemente se a atividade está direcionada apenas para fins pacíficos. Isso irrita o país vigiado.

Duvido, reação normal, que Israel permitisse inspetores internacionais, com sobrenome árabe, vasculhando suas instalações nucleares. No entanto, os cinco membros permanentes do referido Conselho — EUA, Reino Unido, Rússia, China e França — têm armas atômicas à vontade. Reunidas, podem destruir a Terra várias vezes. Além dos cinco referidos, Índia, Paquistão e Israel também seus arsenais nucleares, sem oposição por parte do Conselho de Segurança. Qual a conclusão que os norte-coreanos — e o mesmo ocorre com os iranianos —, extraem dessa desigualdade flagrante? Os norte-coreanos seriam de alguma forma “inferiores”, congenitamente desequilibrados? Teoricamente, os países não têm direitos iguais?

Um artigo — “Que tal a velha diplomacia?” — de Norman Dombey, Professor Emérito da física teórica da Universidade de Sussex, Grã-Bretanha, publicado no jornal “The Guardian” e reproduzido, em português, no jornal “O Estado de S.Paulo” de 31-5-09, no suplemento “Aliás”, J5, especifica algumas quebras das promessas do governo George W. Bush feitas a Kim Jong-il, desencadeando revides do ditador. A agressividade inculcada em Bush pelos conhecidos “falcões” que o cercavam contribuiu fortemente para as reações exageradas do presidente norte-coreano, um cidadão já exagerado por natureza. Ele concluiu que não dava para confiar “nos americanos”. Daí a conclusão do referido autor do artigo afirmando que Obama cometeu um “erro crasso com sanções e ameaças". Por questão de espaço, não é possível transcrever, aqui, os argumentos do artigo, mas pode ser lido no jornal. Vale a pena.

Um outro artigo, do mesmo jornal brasileiro, de 1º de junho de 2009, à pag. A12, desta vez de Seuma Milne, publicado antes no “The Guardian” — com o título de “Hipocrisia estimula proliferação” — também tece considerações sobre a hipocrisia e duplicidade de critérios, na área internacional, permitindo a alguns países fabricar armas atômicas e outros, não. Por outras palavras, os membros permanentes do Conselho de Segurança e alguns “amigos” – Israel, Índia e Paquistão — têm o “direito de ter medo”. Já a Coréia do Norte e o Irã não têm esse direito. Como explicar, “sem corar”, essa desigualdade em um planeta que reafirma a existência de algo que não existe, a igualdade? A explicação está no título do artigo mencionado: “Hipocrisia”.

Países com poder nuclear são geralmente mais respeitados que aqueles destituídos de igual poder. Isso, também, motiva Kim Jong-il. Como os EUA invadiram o Iraque, só na base da “desconfiança” — na verdade mais um pretexto — quanto às armas de destruição em massa, e Bush descumpriu acordos e afrontou a ONU, Kim considerou mais seguro garantir, com alto-falante, que tinha, mesmo, força nuclear, ainda que incipiente. Aparentemente, Kim tem medo e sabe que inimigos de países nuclearizados pensam mais antes de atacar.

É claro que quanto maior a proliferação nuclear, maior o perigo para toda a humanidade. A proliferação deve ser evitada a todo custo, mas não ao custo de uma guerra que pode se tornar nuclear. Seria uma contradição de propósitos.

Inúmeros países, mais cordatos, não se incomodam, diplomaticamente, com essa desigualdade. A Suécia, por exemplo, que já teria tecnologia para construir armas atômicas, decidiu explicitamente não construí-las. Talvez por saber que, como está, não se torna alvo de desconfianças e hostilidades. O Brasil, que poderia, dentro de poucos anos, construir tais armas, também preferiu o caminho mais pacífico. Mesmo porque não se sente ameaçado. Se nuclearizado, na área militar, isso provavelmente despertaria a rivalidade da Argentina. Já a Coréia do Norte e o Irã podem argumentar que sentem-se, sim, em possível perigo próximo, se continuarem “mais fracas” que seus vizinhos. Daí o casamento do medo com a arrogância e, no caso do Irã, a necessidade de impressionar os eleitores.

Resumindo: o que fazer para solução do impasse atual? A resposta parece simples: Obama e seus aliados trabalharem, diplomaticamente, para conquistar a confiança da Coréia do Norte, do Irã e de Israel, com assinatura urgente de um tratado garantindo que nenhum desses três países será atacado, a menos se considerados evidentes agressores por decisão majoritária do Conselho de Segurança, afastado, no caso, o direito de veto. Um tratado sem condicionantes, sem inspeções de qualquer natureza.

Por enquanto, considerando o estado de fato do mundo, não há como impedir a proliferação nuclear, fruto do medo e/ou arrogância. Entretanto, salvo manifestação de loucura, nenhum país, seja ele qual for, vai querer iniciar uma guerra nuclear, que acabaria calcinando também o próprio agressor. Assinado, esse tratado por Obama, a Coréia do Norte teria mais confiança em “pedaços de papel’. O novo presidente americano certamente não iria se desmoralizar passando por “tapeador internacional” e ainda por cima, “um molenga”.

Garantida a paz, embora provisória, o planeta cuidará, com vagar, do restante. Esse “restante” terá que ser uma nova ordem mundial, mais eficiente que a atual. Abolição total, hoje, das armas nucleares é ilusão. Os EUA têm medo do poder crescente da China, e vice-versa. Israel teme o Irã e também vice-versa. Mesmo que todos os países afirmem um tratado eliminando seus arsenais nucleares não haverá garantia de que algumas ogivas não estarão escondidinhas, “just in case”, ou “só por garantia...”. Mas uma nova estrutura mundial, que resolva o assunto em definitivo, é um tema que não cabe aqui.

(2-6-09)

Soluções para os 70 milhões de processos

No dia 2-6-09, em Brasília, no II Seminário Justiça em Números, na Escola da Magistratura Federal da 1ª. Região, foi solicitado pelo presidente do CNJ um redobrado esforço da magistratura brasileira para julgar os processos, tramitando em 1º e 2º grau, distribuídos até 31-12-05. Seria a “meta 2” para a Justiça se tornar menos lenta, morosidade que faz com que ela seja vista com decepção pela população.

Falou-se, no encontro, em planejamento, gestão estratégica e modernização do processo produtivo do Poder Judiciário, inclusive com maior uso da tecnologia. O principal expositor — nesse ponto com razão —, considera que o velho e cada vez mais grave problema da morosidade não será solucionado apenas com aumento do número de varas, juízes e tribunais. É também minha modesta opinião.

Todavia, no referido Seminário não foi lembrada a causa básica e a solução realmente eficaz — embora contundente — para o problema da imensa demora dos processos na justiça brasileira. Como síntese da origem do problema, e sua extirpação, a solução está em o legislador não ignorar o conselho de Voltaire: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Sabedoria esquecida pelo legislador brasileiro, principalmente na área processual. Em situação onde só há “vantagem”, sem “perigo” — ou este é bem menor que a vantagem —, a tendência normal de todo ser humano é abusar. Por que não, ora?! Criado, na lei, o “perigo”, os abusos regridem. Essa máxima do filósofo francês deveria ser escrita, com tinta brilhante, no teto dos parlamentos brasileiros.

Antecipo minha conclusão dizendo que a solução da lentidão está em fazer alterações na legislação processual. Curtas, na redação, mas drásticas, na substância. Alterações focadas na motivação econômica que estimula os retardamentos. Desnecessário extensas pesquisas teóricas e estatísticas para “detectar’ onde aloja-se a tênia jurídica que suga as forças intelectuais, e até mesmo físicas, dos magistrados, promotores e aqueles advogados — já são muitos — realmente interessados em uma justiça mais rápida, sem deixar de ser justa.

Vamos dividir o problema do excesso de processos — com a inevitável morosidade —, e a respectiva solução em dois segmentos: na área cível e na área criminal. Um doce para quem demonstrar que o presente enfoque está errado. Na área trabalhista também seria aconselhável a criação de um mecanismo inibidor de aventuras, por parte do reclamante, quando, sabendo-se sem razão, apenas tenta lucrar “algum” na audiência de conciliação. Como não sou bom conhecedor da área fica apenas esta observação. Quando o abuso é do patrão, o legislador saberá o que fazer, na área dos recursos, sempre lembrando-se do conselho acima mencionado.

O que se segue já foi publicado por mim na mídia, mas em tempos em que o problema do excesso de demandas era menor. Além disso, quem garante que o que é publicado é lido? Em temas importantes a insistência no convencer deve preponderar sobre a “elegância” de não se repetir.

Área cível.

A causa principal da demora nas ações cíveis está, na possibilidade de o “devedor” — doravante assim designada a parte que não tem razão — auferir grande vantagem econômica com a simples demora de uma ação. Quanto maior a espera, melhor para o devedor. “Retardar já é “lucrar”, mesmo quando o devedor perde todos os recursos interpostos. Isso porque não há, atualmente, uma “mecânica” processual de punição econômica que seja eficaz, “respeitosa” para com o advogado, prevista em lei e desestimuladora do uso abusivo de recursos. Os juros legais, durante a tramitação do processo, são baixos e a condenação em “litigante de má-fé” é pouco aplicada pelos tribunais. Quando aplicada, ofende suscetibilidades que azedam a relação juiz-advogado e torna-se um bom pretexto para infindáveis recursos visando “cancelar” a mácula profissional implícita na condenação por “litigante de má-fé”. Tecnicamente, litigante é a parte, o cliente interessado em retardar, mas é seu advogado que fica sendo mal-visto se é sucessivamente “carimbado” como litigante de má-fé em muitas decisões. Note-se, em favor do advogado, que se ele não atende o interesse de seu cliente, este muda de advogado. Como exigir que ele fique perdendo clientes?

Os recursos contra decisões foram concebidos, na teoria pura do Direito, em todos os países, para corrigir injustiças, nada mais. Não foram inventados para propiciar vantagem financeira decorrente de um excesso de recursos nos tribunais. Com o crescimento da massa de recursos processuais, e conseqüente demora na “fila de espera” aguardando julgamento, qualquer devedor sente-se tentado a utilizar essa ampla brecha legal — o recurso sem medo de conseqüência — para jogar o pagamento para um distante e incerto futuro. Se o débito for tributário pode ocorrer até uma anistia, pois não? Quando isso ocorre, o contribuinte pontual pensa: “Sinto-me trouxa... Meus concorrentes, mais inescrupulosos, ou atrevidos, só lucraram com meu ‘bom-mocismo’. Não pagavam impostos e com isso conseguiam vender seus produtos por preço menor. Por eu ser submisso às leis perdi dinheiro e clientes. Doravante, talvez eu passe a usar a mesma técnica...”

Quanto maior a demora no término de um processo, melhor para a parte que não tem razão, seja autor ou réu. Na primeira instância, petições desnecessariamente longas, maços de xerocópias pouco elucidativas, que desanimam o juiz, obrigado, por dever do cargo, a ler tudo o que ingressa nos autos.

Tendo que despachar e julgar grande número de ações, é compreensível que deixe um tanto de lado o — com perdão da palavra – “mastodonte” de vários volumes que “atrapalha o fluxo”. Se, preocupado com o acúmulo de processos e já formada sua convicção, ele deixar de ler, os quilométricos arrazoados e as centenas de páginas de xeroxs, uma por uma, o interessado na confusão poderá dizer, na sua apelação, que “o juiz foi omisso, não apreciou meu argumento “x”, “contido à pág. “2.237”, item “z”, por exemplo. A omissão permite ao vencido entrar com embargos declaratórios ou mesmo conseguir a nulidade da decisão porque, afinal, o julgador não examinou “todos’ os argumentos. Não é difícil transformar uma causa simples, mas de alto valor econômico, em grossos volumes de artificiais complexidades. A “filosofia” tem também essa serventia.

Uma solução boa para isso será a lei processual dizer que os honorários devidos à parte vencedora serão fixados em percentual bem mais elevado se suas petições foram claras e concisas, com juntada de documentos que realmente ajudem na compreensão da demanda. Com isso, a parte que está agindo de má-fé — visando dificultar ao julgador a compreensão nítida do problema — sentirá uma certa inibição em juntar documentos e xeroxs desnecessários. Resumindo: teríamos autos processuais de 30, 50 páginas, em vez de várias centenas.

Quanto ao desestímulo para o uso dos recursos com fins protelatórios, a solução é a “sucumbência recursal”, isto é: em toda decisão judicial, em recursos, agravos regimentais e mandados de segurança — contra decisão judicial — o tribunal aplicaria autônoma sucumbência. (Para os leigos: quem perde é obrigado a indenizar a parte contrária pela demora implícita no recurso e pelo trabalho extra, pós-sentença, do advogado da parte recorrida).

Para não intimidar demais a parte que recorre de boa-fé, isto é, sem visar apenas protelação, lei poderá estabelecer que o tribunal, de ofício (para os leigos: sem pedido da parte) poderá isentar de nova condenação em honorários o recorrente que, não obstante vencido no recurso, recorreu com correta intenção porque a lei aplicável e/ou a prova é controversa.

Finalmente, ainda na área cível, seria justificável que, havendo duas condenações para pagamento em dinheiro, na primeira e segunda instâncias, a admissibilidade dos recursos especial e extraordinário ficariam condicionadas ao depósito da condenação imposta na última decisão. Depósito, é óbvio, que não seria levantado pela parte contrária. Seria apenas uma comprovação da seriedade dos recursos, como que dizendo: “Meu recurso não é motivado por falta de dinheiro, pois ele aqui está. Sinto-me realmente vítima de uma injustiça. Tenho direito a um novo julgamento”.

Rigor exagerado? Não, porque, afinal, já haveria dois julgamentos do caso, desfavoráveis ao devedor. Pelo que sei, na justiça americana, nas condenações em dinheiro, na primeira instância — frise-se, já na decisão de primeiro grau —, o devedor só pode recorrer depositando a totalidade do débito mencionado na sentença. Se não dispuser da quantia, pedirá a uma financeira para fazer o depósito. Só que a financeira, antes de fazer tal depósito garante-se com os bens do recorrente. Perdendo este o recurso, ela fica com os bens, sem delongas.

Como no Brasil, as financeiras teriam complicadas dificuldades legais — tudo no Brasil é mais complicado... — para reaver o dinheiro depositado, o mais prático seria a lei exigir uma caução em dinheiro de pelo menos 80% ou 90% do débito apurado na decisão de segundo grau, que reconheceu e confirmou a existência do débito. Meras “cauções” de bens — é cômodo assinar um papel, um termo de caução — não impedirão o já corriqueiro uso dos recursos apenas para protelar um pagamento, a entrega de algum bem ou coisas do gênero.

Uma lei dessas teria um extraordinário efeito de esvaziamento. Publicada a lei instituindo a “sucumbência recursal”, com uma “vacatio legis” de, digamos, 30 ou 60 dias dias, todos aqueles que recorreram visando apenas protelar poderiam desistir de seus recursos nesse prazo, evitando com isso a nova condenação em honorários, se vencidos na apelação. Quem recorreu de boa-fé provavelmente não desistiria. Mesmo porque, como foi sugerido acima, ainda que perdendo o recurso — mas com respeitáveis e sinceros argumentos —, poderia ser isentado da nova condenação em honorários. Há, realmente, algumas causas que merecem e até recomendam reexames.

O efeito “limpeza”, ou “esvaziamento” no número de recursos seria, certamente, considerável. Note-se: desistência voluntária dos recorrentes, porque ninguém seria obrigado a desistir dos recursos já interpostos. Melhor esse esvaziamento voluntário dos recursos, do que decidir de forma apressada, visando apenas a quantidade de decisões, em causas que aconselhariam mais meditação. Um “esvaziamento” a qualquer custo, de olho apenas na estatística, poderia produzir muita injustiça.

Quem, porém, terá coragem para propor e aprovar uma modificação legislativa desse porte, embora cabível sua redação em apenas uma ou duas laudas? Conta-se que cerca de cem bilhões de reais estão em cobrança judicial, figurando o INSS como credor. Esse grupo poderoso de devedores, tudo fará, compreensivelmente, para impedir a tramitação de um projeto de lei como o ora sugerido. Lobby poderoso. Talvez seus beneficiários encarem sua atividade protelatória como única defesa possível, embora um tanto aética, contra um sistema tributário que consideram tremendamente opressivo. Talvez pensem: “Ou sonego, embora congestionando a justiça, ou vou à falência!” Sobre esse aspecto, não posso dizer muito porque não conheço bem o lado quantitativo do dilema tributário.

Um lado benéfico para essa maior rigidez recursal está na solução do problema da demora no pagamento dos precatórios.Algumas centenas de bilhões de reais — não há engano no “bi” — estão sendo cobrados, pelas justiças estaduais e federal, de contribuintes que, por essa ou aquela razão, não quiseram ou não puderam pagar seus débitos previdenciários ou tributários. Se um terço desse crédito fiscal for pago à União, Estado e Municípios, presumo que todos os precatórios estarão pagos; ou poderão ser pagos.

Ninguém encara a injustiça da demora imensa no pagamento dos precatórios levando em conta que uma enorme quantia, devida aos governos, está imobilizada na justiça. E esta não tem como se desvencilhar do problema porque está amarrada pela grande quantidade de recursos que, pela lei processual atual, podem ser apresentados, sem nenhum desconforto econômico para o devedor. É o caso, portanto, dos prejudicados com os não-pagamentos dos precatórios fazerem pressão sobre o legislador federal para que “endureçam” no quesito de admissibilidade de recursos que no fundo só querem “ganhar tempo”.

Área penal.

Na área penal, para diminuir a imensa quantidade de recursos, há necessidade de se mexer em um tabu — a proibição da “reformatio in pejus”. Esse congestionamento, com a conseqüente demora, é extremamente lesivo não só para a sociedade — porque sugere impunidade — como também para aqueles acusados que, embora inocentes — fato raro, mas ocorre — foram condenados e apelaram. Sei de um caso em que uma moça muito estudiosa que foi condenada, na primeira instância, por pequena falha de uma testemunha. Tivesse seu advogado feito reperguntas, o engano poderia ser desfeito. Na hora isso não foi percebido pelo advogado, que naquela audiência, apenas substituía o defensor da ré e pouco sabia dos fatos.

Advogados da área criminal sabem que o advogado do réu não deve reperguntar uma testemunha de acusação que prejudicou o réu ao depor. Isso porque, com as reperguntas, a testemunha pode acrescentar novas minúcias, verdadeiras, só piorando a defesa. Daí o perigo, para o réu, quando seu advogado — que conhece todos os detalhes — pede que um colega, que pouco sabe dos fatos, o substitua numa audiência. Se, no caso exemplificado, o advogado presente na audiência fosse aquele sabedor dos pormenores, ele reperguntaria insistentemente, demonstrando, provavelmente, que a testemunha havia se confundido. Como o defensor substituto não conhecia totalmente os fatos, nada reperguntou, receoso do que poderia ouvir. E a frase perigosa, mas fruto de engano, ficou na prova, autorizando uma condenação.

Como a verdade “é o que está nos autos”, o juiz condenou a acusada. Esta apelou mas devido a grande demora na distribuição ou julgamento da apelação referida moça não pode prestar concursos jurídicos para a magistratura, seu grande sonho. Isso porque, para passar em tais exames é necessário certidão negativa criminal, provando que a candidata nunca foi processada. Em suma: em razão da imensa quantidade de apelações, almejando apenas impedir o trânsito em julgado da condenação, a vida da moça — e não deve ser caso único — ficou travada no seu sonho de um dia ingressar na magistratura, conheça quanto conhecer o Direito e sendo uma pessoa íntegra. Como se vê, o excesso de recursos na área penal, se beneficia os réus verdadeiramente culpados, prejudica tremendamente os réus inocentes mas vítimas de uma decisão equivocada. Daí a necessidade de uma menor quantidade de recursos na área penal.

Não obstante o mencionado tabu proibitivo da “reformatio in pejus”, não vejo porque não permitir a reforma para pior no recurso do réu. Se o juiz, na sentença, errou, que se corrija o erro, seja quem for o apelante. Em todo recurso, deve haver um certo “perigo”, não só “vantagem” (vide Voltaire). Da mesma forma, se o réu se conforma com uma determinada condenação e somente o promotor apela, por que não permitir que o tribunal, com presumível maior experiência, não reduza a pena, ou até mesmo absolva o réu?

Em nível estritamente teórico há bem elaborados argumentos para se proibir a “reformatio in pejus”, quando não há recurso da acusação. Estivesse o Brasil em “situação normal”, quantitativamente, em termos de justiça penal, não haveria necessidade de se transigir com o velho princípio, embora ele não me pareça verdade absoluta. Frise-se que, com o passar dos anos na espera de uma apelação, um inocente pode ultrapassar o limite de idade para prestar determinados concursos públicos.

Espero que as palavras acima despertem a atenção de algum legislador. E desculpem pela insistente, cansativa repetição. As falhas de nossa justiça não estão nas pessoas – juiz, advogado, promotores e funcionários. Estão no sistema, visto como um todo.

(8-6-09)