quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Meta de Nivelamento 2, do CNJ. “Limpar prateleiras

Acreditem, ou não, não me agrada fazer constantes reparos a iniciativas, sejam de quem for, que visam — certamente com a melhor das intenções —, colocar o Judiciário Brasileiro nos trilhos mais rápidos de um país desenvolvido. No entanto, como simples cidadão, com alguma experiência no ofício de julgar, sinto-me no dever de sugerir — quando isso me parecer útil —, idéias que, por mero acaso, não ocorreram àqueles que possuem o poder de modificar a nossa decepcionante realidade, em termos numéricos. Todos sabem que idéias, mesmo eventualmente “solucionantes”, valem zero se não conseguirem entusiasmar determinadas cabeças — juristas, magistrados, advogados, promotores, jornalistas, etc. — capazes de impressionar o Legislativo a ponto de criar leis mais adequadas para lidar com os pontos fracos de um sistema complexo, como é o caso do serviço estatal de distribuição de justiça.

Assistimos, há duas ou três décadas, a um enorme descompasso entre o alto valor individual, médio, de nossos magistrados e o “resultado quantitativo” de tanto trabalho e erudição. Competência técnico-jurídica nunca faltou à grande maioria de nossos juízes, que conseguiram ingressar na magistratura através de concorridos concurso de títulos e provas. Mais de provas — sugere-se, doravante — do que de títulos, porque não está longe o perigo de vermos, ampliada, a utilização de “escritores fantasmas” escrevendo livros, talvez até jurídicos. Se isso já ocorre, às abertas, com discursos presidenciais norte-americanos — Obama, tudo indica, é exceção —, não há porque imaginar que tal prática vá se liminar à área política, auto-biográfica, etc. E o suposto “autor jurídico” sempre terá meios de acalmar sua consciência convencendo-a, laboriosamente, de que são dele os “princípios básicos”, delegando ao “ghostwriter” a “tarefa braçal”, “de cozinha”, de alinhar as palavras e rechear o texto com citações.

Se os juízes brasileiros são realmente competentes, como de fato são, por que a comunidade brasileira não está satisfeita — como bem poderia estar — com nossa justiça, em termos de rapidez e eficácia?

Resposta: porque tem faltado ao legislador aquela advertência de Voltaire, tantas vezes por mim repetida — aqui, de novo, desculpe, porque alguns ainda não a entenderam — de que, em todo comportamento humano, principalmente nas leis, “a vantagem deve ser igual ao perigo”. Se o filósofo francês tivesse, em estágio de bebê, balbuciado nitidamente apenas esse pensamento, morrendo em seguida, e a idéia tivesse penetrado — pela milagrosa sabedoria — no crânio de todos os legisladores, já estariam justificadas as dores do parto e sua breve passagem pelo mundo. Este seria bem mais fácil de administrar. E, no Brasil, não veríamos milhões de processos judiciais acumulados em prateleiras, ou “dentro” de computadores.

Por sinal, é ilusão pensar que a justiça brasileira está “emperrada” por falta de informática. Em papel, ou em disco rígido, as pendências precisam ser julgadas por seres humanos. Ainda não inventaram um computador capaz de ler, analisar, confrontar argumentos e provas, prever conseqüências e impregnar tudo isso com um sentimento de justiça que pode até ser inovador. Computadores não inovam, não criam na esfera ética. Enfim, são robôs. Por enquanto, talvez. Daqui a mil anos voltaremos a conversar.

Por que acumularam-se — no Brasil e outros países, menos práticos, igualmente ignorantes do conselho de Voltaire — tantos processos? Porque a parte que não tem razão — geralmente o acionado, réu — não está buscando justiça alguma. Pelo contrário. Quer é retardar, “enrolar”, jogar para um tempo, o mais distante possível — via recursos processuais —, a solução da sua questão. Essa reação é humana e quase todos a utilizam quando estão sem dinheiro ou com uma dificuldade assemelhada. Como não podem dizer isso, às claras, confessando a ação — pois teriam de pagar o que devem —, criam a maior confusão possível. Não só quando expõem seus argumentos mas quando juntam documentos — por vezes aos quilos —, com a intenção de desanimar um juiz já afogado em processos. Todo magistrado, com alguns anos de prática, constatou que muitos processos volumosos e aparentemente complexos, escondem uma desconcertante simplicidade. Poderiam ser reduzidos a vinte páginas, em vez de duas mil. Fornidos “Tigres de papel”, plagiando-se a frase de Mao Tse Tung quando tranqüilizava os chineses, preocupados com eventuais ataques nucleares do Ocidente. Não é só na velha diplomacia — na nova o perigo é menor, por causa da mídia — que as palavras servem mais para esconder do que para revelar os pensamentos. Isso também ocorre nas disputas judiciais.

Um leigo poderia argumentar: se boa parte do “emperramento” do judiciário decorre dessa manobra — estritamente legal, considerando o princípio da ampla defesa — por que o juiz simplesmente não “desconsidera”, sem ler, essa massa de papel inútil?

O juiz não pode fazer isso porque sua obrigação profissional é examinar o processo folha por folha. E a parte interessada, quando não tem razão, sempre simula seriedade. O juiz tem, assim, pelo menos, a obrigação de “espiar”. Mas “espiar” centenas de páginas de xerox consome tempo, sempre escasso. Não pode dizer “Não li e não gostei!” Só literatos têm essa liberdade. Em tese, em tese, naquele calhamaço confuso pode haver dois ou três documentos importantes. E, depois dessa grande perda de tempo, proferida a decisão, surge o “paraíso” de todo aquele que não tem razão: o direito de recorrer, praticamente sem ônus — a tal “vantagem” — porque as custas do recurso são mínimas, no máximo 2% do valor da causa. O pior que pode ocorrer, recorrendo por recorrer, é continuarem as coisa como estão.

Qual o devedor, em juízo perfeito, que deixará de apelar com tanta “vantagem” sem “risco” (Voltaire)? Relembro que na “áspera” justiça americana, nas condenações em dinheiro, o usual — são 50 Estados, cada um com seu código processual — é o devedor ser obrigado a depositar o valor da condenação para poder apelar. Se não dispõe de dinheiro para isso, pode pedir a uma financeira para fazer o depósito mas esta garante-se, antes, com os bens do apelantes. Perdida a apelação a financeira fica com os bens. Com tal “impiedosa” sistemática, qual a vantagem de recorrer só para ganhar tempo? Só apela aquele que está convicto de seu direito. Não é o caso usual na Justiça Brasileira. Esta se tornou uma forma de protelação, sem culpa dos juízes, verdadeiras abelhas obrigadas produzir mel mas quase sem ferrão. Quando aplicado o ferrão, este será congelado com uma infinidade de recursos, ou medidas equivalentes.

Doze anos atrás, sugeri ao legislador, Dep. Fed. Ricardo Izar — Proj. Lei 2.927/97 —, uma “saída” não tão “dura” como a norte-americana, mas capaz de diminuir substancialmente a utilização crescente do recurso com intuito protelatório: a “sucumbência recursal” em todas as instâncias. Em termos simples: o tribunal condenaria o recorrente — quando perdeu totalmente o recurso — a pagar novos honorários à parte contrária. A menos, frise-se, que o tribunal julgador considerasse que o caso em exame merecesse novo julgamento, por ser complexa a matéria de fato ou de direito. Nesses casos, mais raros, o tribunal não imporia novos honorários. Em termos práticos: quanto mais recursos (improcedentes) naquela causa, maior a dívida para a parte que não tem razão. Recorrer para adiar acabaria sendo economicamente assustador. Isso teria um efeito inibidor para aqueles, inclusive o governo — quando recorrem só “para ganhar tempo”.

Aquele Projeto de Lei continha também a intenção de “enxugar” a já então crescente “gordura” recursal,. Já havia o represamento de processos aguardando decisão em todos os tribunais do país. Um dos artigos do projeto estabelecia uma “vacatio legis” de 30 ou 60 dias — não me recordo exatamente — para que aqueles que, já tendo recorrido só para retardar, pudesse refletir se não seria melhor desistir do recurso, escapando de uma nova condenação em honorários advocatícios. Todo advogado competente sabe quando seu cliente tem, ou não, chance de vencer no recurso. Sabendo que o perderia, seria melhor, financeiramente, desistir dele para não aumentar a carga com a nova condenação em honorários.

Esse projeto, por razões algo misteriosas, foi rejeitado sumariamente na Comissão de Constituição e Justiça e acabou sendo arquivado.

Agora, o volume de recursos aguardando julgamento tornou-se problema que fragiliza a credibilidade de todo o Poder Judiciário. Daí a idéia do CNJ criando a “Meta de Nivelamento 2”, pela qual os magistrados, em geral, devem julgar todos os processos distribuídos até 31-12-05

Ocorre que a exigência de julgar rapidamente, em poucos meses — até o fim deste ano —, processos acumulados em vários anos, forçará os juízes de primeira instância a examinar superficialmente os autos, por vezes reunindo vários volumes. A conseqüência provável dessa política será um acúmulo de erros judiciais, contradições, distrações no exame da prova e superficialidade de julgamento. Constatado isso, podem esperar que, após o “esvaziamento da prateleira” ocorrerá um aumento substancial de apelações e embargos declaratórios, alegando omissão da sentença. Haverá, portanto, um alívio apenas provisório no acúmulo de processos. A segunda instância é que acabará depois sacrificada.

Na segunda instância, uma natural tendência para o “esvaziamento” da prateleira será manter a decisão anterior — “afinal, um magistrado já examinou o caso” —, o que ensejará novos recursos com alegações de nulidades.

Em suma, na área cível, melhor seria que, em vez de exigir “pressa a qualquer preço”, fosse editada uma lei processual que estabelecesse a sucumbência recursal em todas as instâncias, inclusive no STF, com um prazo de trinta dias para vigência da lei. Nesse prazo, repito, milhares de pessoas físicas e jurídicas que recorreram apenas para protelar, poderiam desistir, sem ônus, do recurso, evitando o aumento de sua dívida. Sem suma, haveria um “esvaziamento” de recursos por escolha lúcida do próprio recorrente. E, inovando no meu projeto, poderia a mesma lei processual oferecer uma vantagem econômica ao devedor — p. ex. perdão de 10% ou 15% do débito apurado até aquele momento — para que desistisse do recurso no referido prazo da “vacatio legis”.

Um complemento para diminuir o número de recursos nos tribunais seria a lei dizer que nos casos de justiça gratuita, a isenção de custas valeria apenas para as decisões de primeiro grau. Isso porque tanto o rico quanto o pobre, quando podem protelar “sem perigo”, assim o faz. Como qualquer ser humano. O que mais importa, no atual momento de congestionamento da Justiça Brasileira, é desestimular fortemente o uso da justiça como se ela fosse uma difusa e genérica “concordata”, aplicada sem qualquer perigo mas com evidente vantagem patrimonial.

Na área penal, considerando que são milhões os processos tramitando nos tribunais, seria oportuno — sempre frisando a urgente necessidade de combater o acúmulo excessivo — o legislador admitir a aplicação da “reformatio in pejus”, isto é, a reforma para pior. Se o réu, por ex., for condenado a dez anos, nada impediria que, mesmo sendo ele único apelante, o tribunal aumentasse a sua pena, se isso fosse justo. Igualmente, tendo apelado apenas o promotor, pedindo aumento da pena, o tribunal poderia reduzi-la, ou até mesmo absolver o réu. Afinal, os tribunais estão ali para que? Se constatada alguma injustiça, basta que qualquer das partes recorra para que a lei seja material seja aplicada em sua inteireza. Melhor isso, suponho, do que julgar tudo rapidamente, com aumento de erros ensejando recurso. Melhoras duradouras são mais úteis que saltos violentos, de pouca duração visando estatísticas momentâneas. Sei que, no Brasil, a “reformatio in pejus” é um tabu, mas mesmo usos consagrados podem merecer reexame.

Finalmente, a atual meta de esvaziamento de prateleiras — em que há uma sutil ou aberta ameaça de castigo para quem não a cumprir — tem outro forte inconveniente: induz a população a pensar que os juízes não gostam de trabalhar. Isso porque bastou acenar com a promessa de um castigo, por parte do CNJ, para que os magistrados, em poucos meses, fizessem o que deixaram de fazer em vários anos. Em suma, “castigo neles, porque só assim esse pessoal cumpre seu dever!”.

Vamos aguardar para, daqui a um ano, examinar o que aconteceu, após o cumprimento da “Meta 2”, no item “esvaziar prateleiras”. Prefiro estar totalmente errado em minhas previsões.

(20-9-09)