segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Conclusões politicamente incorretas extraídas da morte de Kadafi

Muamar Kadafi era, sem dúvida, um déspota desagradável — há tiranos “maneiros’... — , vingativo, nem um pouco esclarecido. Quando menino, nas aulas de História Geral, eu achava engraçada a expressão “déspota esclarecido”. Cheio de caprichos, Kadafi dava imenso trabalho ao cerimonial e serviços de segurança dos países do Primeiro Mundo que visitava como convidado oficial. Exigia dormir em tendas, ao ar livre, mesmo em Roma, Nova Iorque e Paris. Não tinha o menor receio de afrontar os representantes das maiores potências nem os CEOs das riquíssimas companhias petrolíferas ocidentais, embora plenamente consciente de que dinheiro é poder. E o poder consegue praticamente tudo quando dispõe, sozinho, do privilégio de moldar, à vontade, a manipulável opinião pública. Kadafi atreveu-se — conta-se —, a rasgar a Carta das Nações Unidas em plena Assembléia Geral da ONU. Descontada a teatralidade, tinha uma certa razão, porque essa Carta não foi concebida para impor estilos de governo. Foi feita para obrigar, igualmente, todas as nações, fortes e fracas, a respeitar as demais, não interferindo nos seus assuntos internos.

Pelo que informa a mídia, Kadafi guardava no Exterior bilhões de dólares, em contas do Banco Central líbio e outras instituições governamentais. Como suas decisões não podiam ser contestadas por ninguém, o dinheiro depositado poderia — em tese — se sacado pelo próprio Kadafi, para uso pessoal ou de sua família. Por outro lado, estando tais contas em nome de órgãos governamentais, isso foi benéfico para a Líbia, que ficou com reservas em dinheiro depositado no Exterior. Estivesse o dinheiro depositado em bancos na própria Líbia, essa riqueza já teria sido saqueada na confusão de meses de lutas internas.

Por mera intuição de psicólogo amador, arrisco “diagnosticar” — futuros biógrafos mostrarão se estou certo ou errado — que Kadafi fazia algum uso de anfetaminas, droga que, quando consumida sem restrições acentua a mania de perseguição, passada a euforia que inicial. No seu caso, aliás, a paranóia era altamente recomendável porque o mantinha em constante alerta contra um enxame de inimigos que queriam seu lugar. Tendo tomado o poder ilegitimamente, em 1969, com 27 anos, sabia que só podia confiar na força e na intimidação porque foi com esses componentes da luta política — em países com pouca alfabetização — que se tornou o “homem forte” da Líbia. Conseguiu esse status em setembro de 1969, mediante um golpe de estado. Liderando um grupo de oficiais, tomou o poder quando o rei, Idris — o primeiro e único rei líbio — estava ausente do país. Idris, um monarca religioso e de saúde frágil, após sua deposição foi acolhido pelo Egito, ali vivendo — tudo indica confortavelmente —, até falecer em 1983. Nesse “golpe” de 1969 não houve derramamento de sangue.

Não obstante seus inúmeros defeitos — mesmo o demônio não consegue a perfeição em sua maldade — , Kadafi beneficiou o povo líbio quando, logo após se tornar o “dono” do país, exigiu uma maior participação estatal nos lucros do petróleo, extraído pelas poderosas empresas ocidentais. Caso contrário, elas não teriam mais permissão de continuar operando. Sabia que as petrolíferas acabariam cedendo, como realmente ocorreu. Seria suicídio econômico se elas abandonassem o lucrativo investimento. E sua ousadia foi sendo imitada por outros países da região, ricos em petróleo e gás, o que explica — em boa parte —, porque Kadafi era tão odiado pelos países mais ricos do ocidente.

Com a maior união dos países árabes, no item petróleo, o barril foi subindo de preço, para indignação daqueles países ocidentais acostumados, até então, a conceder à Líbia e outros países árabes apenas as migalhas do lucrativo negócio. Esses aumentos pareciam, ao Ocidente, uma autêntica “extorsão”, tirando proveito de uma forma de energia até então impossível de substituir. Um dia Kadafi pagaria por esse estímulo à “chantagem”.

E pagou, no dia 20 de outubro de 2011, ainda que, com muita habilidade política, usando-se mãos alheias: os revoltados com a longa ditadura. Seria necessário, para salvar as aparências, que os rebeldes líbios — não a OTAN —, fizessem o “serviço sujo”. Atente-se que os pilotos da OTAN, sabendo ou presumindo que Kadafi estava na caravana de automóveis que fugia da cidade, não bombardeou ou metralhou largamente os veículos — como vinha fazendo antes —, porque com isso poderiam matar o ditador. A ordem, provavelmente, para os pilotos — ou para os controladores dos vôos não tripulados — seria mais ou menos essa: —“Apenas impeçam a fuga dele! Não o matem! Detido o comboio, será alcançado pelos rebeldes que certamente o matarão, algo muito mais prático que um julgamento público. Sabe-se lá o que ele diria em sua defesa, no tribunal? Se os aviões da OTAN o matarem diretamente estaremos violando a Convenção de Genebra. Isso seria um ato de guerra. E nesta é crime matar o inimigo que se rendeu. Juridicamente não estamos “em guerra”. Estamos apenas favorecendo um dos lados, protegendo a população líbia”. E assim aconteceu. Os revoltosos pegaram Kadafi e o lincharam e mataram. Soaria muito mal, política e juridicamente, que potências estrangeiras, integrantes da Otan, matassem um chefe de estado no próprio país dele. Essa manobra tem uma metáfora bem popular: “Puxar a sardinha com a mão do gato”.

Abordando o assunto sob o ângulo de Direito Internacional é preciso frisar que a Carta das Nações Unidas não autoriza o uso do assassinato de chefes de estado a mando de outros Estados, seja em nome próprio ou através de organizações militares, como a OTAN. E o que aconteceu na Líbia foi exatamente a utilização do que é proibido: força aérea estrangeira metralhando e bombardeando as forças armadas de um país cercado e não acusado de agressão. Kadafi não atacara nem os EUA, nem o Reino Unido, nem a França. Um artigo de um especialista, Roberto Godoy, no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 21-10-11, pág. A-24, revela-nos que a Otan dava cobertura ao avanço dos revoltosos, “garantidos pelo bombardeio aéreo, intenso e diário, dos 180 aviões da coalizão internacional”.

Se isso não representa desrespeito à livre determinação dos povos, nítido ato de guerra, não dá mais para saber o que é guerra. A agressão não precisa, para ser caracterizada como tal, realizar-se com tropas marchando no chão. Se assim fosse, nações fortes poderiam jogar algumas bombas nucleares para arrasar qualquer país sem serem acusadas de ato de agressão. Um único avião poderia fazer “o serviço”. Muito mais devastador do que milhares de soldados no solo. E na Líbia eram muitas dezenas de aviões atacando as forças governamentais. É muita inocência, ou malícia interpretativa, dizer que é indispensável a presença de soldados no solo para caracterizar uso da força, sob o prisma do Direito Internacional. O uso da força aérea é decisivo para vencer guerras, nos tempos atuais. Houve, sim, no caso líbio, uma poderosa e letal interferência de outros países, integrantes da OTAN, para derrubar um governo. Isso sem falar na presença, em terra, de dezenas de assessores estrangeiros, orientando os revoltosos sobre como articular os ataques contra o tirano, isso sem mencionar o fornecimento de armas.

Sobre tiranias, também o Direito Internacional não chegou ao ponto de permitir que países possam invadir outros para remover governantes que consideram, com ou sem razão, tiranos. Se os povos são soberanos, como diz a doutrina, podem apoiar um ditador, que lhes pareçam benéficos, talvez até mais justos que algumas democracias de papel. É certo que a democracia, em tese, é melhor que a ditadura, mas isso não autoriza as nações ou coligações a invadir países para remover governantes não democráticos.

Alguém dirá que a OTAN interferiu com ataques aéreos apenas por motivo nobre, defendendo direitos humanos, pois o ditador estava matando revoltosos, seus próprios cidadãos — que, convenhamos, estavam também dispostos a espancar ou matar o tirano.

Se o argumento da “nobreza” vale, na teoria, figuremos a seguinte hipótese: suponhamos que um milhão de americanos, reunidos em frente à Casa Branca, em Washington, protestasse contra a política econômica de Barack Obama. Exaltados, os manifestantes ameaçam invadir os jardins da Casa Branca. A polícia intervém com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Dois manifestantes morrem e a turba, mais enfurecida, tenta ingressar na sede do governo federal. Aí a polícia passa a atirar com balas de verdade. Aí teríamos o “massacre”. Se o conflito se generalizasse, em várias cidades — pergunta-se —, teria a China, por exemplo, o direito “humanitário” de dar apoio aéreo à “população massacrada” bombardeando a Casa Branca e o Pentágono? Não seria, essa hipotética atitude chinesa, uma distorção na “proteção dos direitos humanos”? Sanções econômicas e diplomáticas são aceitáveis, sob o prisma internacional dos direitos humanos, mas intensos bombardeios significam clara interferência bélica nos assuntos internos de outros países, ainda proibida — pelo menos em teoria. Assim, tinha certa razão Kadafi quando, dizem, rasgou, na ONU, a Carta das Nações.

Um detalhe sobre o qual a opinião pública internacional deve permanecer atenta, futuramente— para conhecer as reais motivações do apoio bélico aéreo contra Kadafi — será saber se o novo governo líbio ficará ou não devendo dinheiro aos países que controlavam a OTAN. Receio que o fator petróleo está no topo do conjunto de motivos para a invasão aérea e o linchamento, “por procuração”, do tirano.

Pergunta importante: o futuro governo líbio terá, por caso, que pagar financeiramente as armas recebidas dos americanos, franceses e ingleses? As despesas da OTAN com aviões, bombas, munições e assessoria militar em terra, deverão ser reembolsadas? Se isso ocorrer — seria muito cinismo... — estará comprovada a segunda intenção — petróleo! — da cobertura aérea e apoio tático aos revoltosos. Isso porque estando as finanças líbias muito desorganizadas, após meses de anarquia, o país só poderá, talvez, pagar tais empréstimos com concessões para extração do petróleo. Além do petróleo, com que outra riqueza o novo governo líbio pagaria essa dívida. Com areia? Ainda não se sabe se os alegados depósitos líbios no Exterior seriam suficientes para indenizar os gastos feitos pelos principais países que integram a NATO.

Empresas chinesas e de outros países — não integrantes da NATO — também extraiam o petróleo líbio. Voltarão elas a operar no país, quando a Líbia estiver sob novo governo, ou somente EUA, França e Reino Unido é que tomarão conta do petróleo líbio? Esse detalhe é importante para se verificar se a queda de Kadafi foi motivada apenas pela defesa dos direitos humanos ou se por trás dessa bela expressão havia alguma oleosa ambição política?

O assassinato, direto ou por procuração, ainda impregna a política internacional, prática que imaginava-se fora de moda. Por outro lado, o assassinato de Kadafi é um alerta de que as tiranias já não podem se defender com a eficácia de antigamente.

O exercício do poder é agradável. E, se absoluto — foi o caso de Kadafi —, agradabilíssímo. O que explica porque todos os governantes — inclusive presidentes de democracias ocidentais — queiram permanecer no cargo até a morte. E mesmo além dela, através de um filho sucessor, prova de que o “gene” da “monarquia” ainda impregna o código genético da natureza humana.

Todo governante gostaria de ser o fundador de uma dinastia infinita. “Jamais por amor ao poder, claro. Adoro meu povo quando me aplaude!”. Difícil um presidente que não queira voltar ao poder. O próprio Barack Obama também faz questão de continuar, enquanto a legislação assim permitir, o que explica sua súbita mudança de mentalidade no avaliar situações internacionais. Em questão de semanas passou de “pomba” a “falcão”. Se os eleitores querem mais “firmeza”, sejamos “duríssimos”, “do contrário perco a eleição”. Putin saiu quando ficou impossível continuar, mas pretende logo voltar. E assim por diante, em todo o planeta. E os tiranos nem podem dar ao luxo de deixar o poder, porque é imenso o risco do assassinato. Por tal razão, e outras, é que a democracia — mesmo quando corrupta —, é superior às ditaduras. Nestas, quem entra não quer nem pode sair, sem risco de vida. Nas democracias, ninguém quer sair, mas pelo menos pode.

Para os líbios, no longo prazo, foi bom o afastamento de Kadafi, mas antes de melhorar vai piorar, por meses ou anos. Pessoas de sensibilidade normal não gostaram nem um pouco da brutalidade como ocorreu a queda do tirano. Melhor seria se seu afastamento ocorresse de modo mais civilizado. Em um tribunal, ele poderia nos revelar coisas bem interessantes, para susto de alguns chefes de estado.

As considerações deste artigo têm também a finalidade de sugerir que os leitores em geral estão bem cientes das manobrinhas astutas da política internacional, que se imagina mais inteligente do que realmente é.

(23-10-2011)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Feliz iniciativa de um jornal

Na edição de 25-9-11, pág. A18, do jornal “O Estado de S.Paulo” há um curto texto que pode ser considerado uma inovação a ser seguida — ou ampliada, se já existe a prática — por todos os jornais não destinados exclusivamente a leitores especializados em determinada área. O artigo não se preocupou em narrar um acontecimento atual, em desdobramento na política internacional — tarefa normal dos jornais. Foi concebido para ensinar item relevante que, de modo geral, não é de conhecimento do grande público. O texto em referência é uma “mini-aula” de Direito Internacional Público.

Sem sintéticas “ajudas” pedagógicas — e o artigo em referência foi um nítido exemplo disso —, conjuntos de notícias impressas perdem muito de sua utilidade. São entendidas, claro, pelos profissionais da área — que já conhecem o assunto, provavelmente mais do que o autor da matéria — mas a ausência de oportuna explicação teórica estimula os “não iniciados” a fugir daquela página de jornal. Isso redunda em prejuízo cultural dos cidadãos, que passam a ver o mundo de forma incompleta, ou distorcida. Tais cidadãos, mal informados, um dia opinam em “baixo-assinados”, integram ONGs, formam maiorias na opinião pública e votam em eleições — com menos acerto porque não compreendem suficientemente o alcance de seus votos. A ignorância somente por acaso é boa conselheira.

Em Economia isso é muito comum, principalmente quando o assunto é câmbio, bolsa de valores, comércio exterior e inflação. Muitos leitores pensam: “Tento ler, de vez em quando, essas notícias e artigos mas, com freqüência, não consigo entender o significado de alguns termos técnicos. Não vou — confesso minha preguiça —, só ler esses assuntos munido de um dicionário de Economia. E mesmo com o dicionário em mãos, provavelmente continuarei “boiando” pois o articulista não se “rebaixa” a explicar porque determinada consequência — valorização ou desvalorização de determinada moeda, por exemplo, é decorrência “inevitável’ de determinado acontecimento, como o autor da notícia ou artigo dá a entender, sem fundamentar, claramente, porque pensa assim”. Na televisão isso ocorre ainda com mais evidência. O repórter fala com impressionante “segurança profissional”, tal qual um papagaio catedrático, sobre uma relação de causa e efeito que ele mesmo não saberia explicar com palavras próprias e um exemplo. O chavão é elegante, mas rima com enganação.

Se a missão do jornal, qualquer jornal, é informar, e informar bem — se é para falsear a verdade, que vá logo à falência — a omissão de uma rápida e oportuna explicação “técnica” traz um duplo prejuízo: cultural (como já disse) e comercial (para o jornal). Os leitores permanecem “por fora”, perplexos. Muitos, embora curiosos, passam a evitar determinadas seções — ou o jornal por inteiro — supondo que vão continuar incapazes de formar uma opinião própria, como gostariam. Portanto, mesmo sob o ângulo comercial — perdendo assinantes ou compradores avulsos de exemplares — convém que os jornais introduzam curtas explicações quando as notícias envolvem assuntos de áreas especializadas como Economia, Informática, Ciência, Direito e Relações Internacionais. Os editores dessas seções especializadas normalmente têm sensibilidade suficiente para presumir se tais ou quais termos técnicos e relações entre fenômenos precisam, ou não, da pequena”ajuda” para um claro entendimento. Na dúvida, convém explicar.

O que impressiona e revela quanto o intelectual pode ser contaminado pela universal vaidade é que as partes mais difíceis de entender — “profundas, misteriosas e sofisticadas’ — na verdade não são nem “profundas’, nem “misteriosas’. São apenas sofisticadas. Mais “pose” do que inerente complexidade. Se um profissional sente algum compreensível deleite em ser “inacessível”— “Afinal, para que estudei tanto? Preciso me exibir!” — é preciso lembrá-lo que suas opiniões e mensagens só terão utilidade se o ouvinte ou leitor conseguir entende-las bem. Alimentos, físicos e mentais, só são assimilados depois de mastigados e digeridos pelo ácido do juízo crítico. Este deve mesmo ser desconfiado porque um bocado de enganação impregna todas as atividades. Sem ela, porém, a riqueza murcha.

O artigo que me levou a escrever estas linhas vem assinado por Bruna Ribeiro, e tem o título de “Estado não precisa da ONU para existir”. Como não tinha ouvido ou lido nada dessa articulista, fui à internet para me informar a seu respeito. Com alguma demora — há inúmeras homônimas —, fiquei sabendo que a referida Bruna é a pessoa bastante jovem, objetiva e ativa. Ela entrevistou o Prof. Francisco Rezek, ex-chanceler e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça, para o jornal “O Estado de S.Paulo”, em 22-5-11, e a entrevista vem com o título de “A guerra ao terror viola o direito internacional”. Merece ser lida por todos os interessados na Política Internacional porque a realidade política está frequentemente em conflito, flagrante ou disfarçado, com o Direito Internacional. Certamente não há Direito mais movediço, suscetível de dupla interpretação dos fatos, do que o Internacional, em que a crua realidade da força — política, diplomática, econômica e militar — usa e abusa na montagem de sofismas.

Governos agressores nunca admitiram ser agressores. Hitler nunca se confessou como invasor gratuito. Todo ataque é uma “justa reação de defesa”, “correção de uma injustiça histórica” ou defesa contra iminente ataque futuro, detectado pelo “serviço de inteligência” — esperto demais. Cada “soberania”, sendo absoluta — um autêntico “vício’ ainda não percebido como tal — estimula os fortes a abusar dos fracos, por vezes sem soberania alguma porque nem mesmo são Estados. Apenas “entidades’. E “entidades’ não dispõem de soberania. Qualquer protesto, verbal ou físico, de moradores de Estado fraco, ou “entidade”, é rotulado de insulto ou terrorismo, a exigir um “exemplar castigo”, muito mais pesado que o dano sofrido. Conta, o castigo exagerado, com a provável impunidade internacional alimentada pelas desinformações de mídias direcionadas para confundir, mesmo. Daí a conveniência de todo país, amante da verdade, contar com uma imprensa preocupada em informar bem. E para isso, como já frisado, é preciso também explicar o que informa, quando necessário. É o caso da possibilidade, ou não, da existência de um novo Estado, mesmo sem sua formal admissão pela Organização das Nações Unidas.

Como explicou o artigo assinado por Bruna Ribeiro — talvez com alguma sugestão pedagógica de Francisco Rezek —, um Estado, para existir, não precisa da ONU. Uma coisa é existir, de fato; outra, obter um reconhecimento jurídico de sua existência por parte de um importante órgão internacional. Se o planeta não tivesse, em 1945, criado as Nações Unidas, os Estados atuais não existiriam? É claro que sim. Uma pessoa que nunca foi registrada em cartório nem por isso deixa de existir. Não é fantasma. Tem seus direitos reconhecidos na justiça.

Se eu contrato um caseiro para cuidar de meu sítio e esse caseiro nunca foi registrado no cartório de registro civil, essa omissão não me desobriga de pagar o seu salário. Um exemplo internacional, apenas teórico: se os países membros da ONU decidissem, mesmo unanimemente, excluir a China da sua lista de países — por ela invadir os mercados com seus preços baixos, ou por infração de direitos humanos — esse Estado deixaria de existir? Não. Tornar-se-ia um Estado algo “pária’, mas continuaria sendo um Estado, a menos que ela mesma, China, “soberanamente” renunciasse à seu status. E qualquer outro país teria o direito, sempre “soberanamente”, de, mudando seu pensar, reconhecer a China como um Estado, mantendo com ela as mesmas relações que mantém com os países membros da ONU.

Taiwan é reconhecido por 22 países, na informação da Bruna Ribeiro. Dificilmente essa enorme ilha chegará a ser reconhecida, em anos próximos, no âmbito da ONU, porque a China, com poder de veto, não o permitirá, por considerá-la como parte da China continental. Mesmo não sendo um Estado “registrado”, essa falta de “registro” não impede Taiwan de ter um grande papel na indústria, no comércio, na ciência e mesmo nas relações internacionais. E o referido artigo explicativo nos informa que Israel, embora membro pleno da ONU, não é reconhecido por 22 Estados, obviamente por motivos políticos.

Elementar, pois não? No entanto, em milhões de cabeças paira a noção, não muito firme, de que sem o ingresso da Palestina na ONU, o Estado Palestino só “existirá” se houver um acordo prévio com Israel, país que tem o máximo interesse em que a população árabe local não possa desfrutar do status de membro pleno. Se, hipoteticamente, Israel nunca concordar com um Estado Palestino, essa sua decisão, baseada na força, merecerá aprovação universal?

Recomendável, portanto, a decisão de muitos países de reconhecer, agora, a existência do Estado Palestino, ou que outra denominação venha a ter. O fato dele de não ter suas fronteiras delimitadas — porque seu arqui-inimigo a isso se opõe — traz problemas administrativos sérios, mas tais problemas não fazem evaporar a existência de um povo, com língua comum habitando, há séculos, um território, por mais difícil que seja seu dia-a-dia. Israel, Estado integrante da ONU, também não tem fronteiras fixas no lado oriental. Assim como o Estado de Israel dispensou a concordância dos árabes da região, para se proclamar Estado, em 1948, nada impede que os palestinos façam o mesmo.

Fronteiras incertas, conflituosas, por mais que isso traga problemas, não podem prevalecer contra o princípio maior do direito de autodeterminação dos povos. Se — outro mero exemplo —, surgisse um conflito entre o México e os Estados Unidos e este país conseguisse, na ONU, a exclusão do México — porque este não consegue controlar a imigração ilegal e o tráfico de drogas da fronteira — seria o caso de “desaparecer” um Estado chamado México?

É paradoxal que justamente o ramo do Direito mais importante para o futuro da humanidade, seja o mais ignorado pelos habitantes do planeta, talvez por ser “algo remoto e pouco obedecido”. Trata-se de um Direito aparentemente ignorado (?!) até mesmo pelos altos funcionários encarregados das relações internacionais de seus países. É o caso do Irã que, podendo desligar-se, há décadas, do TNP – Tratado de Não proliferação Nuclear —, assinado em 1968, no governo do Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlevi —, não fez isso até agora. Bastaria um ofício nesse sentido. Dessa omissão “burocrática” tira enorme proveito político o governo israelense, dizendo que o Irã não “cumpre suas obrigações internacionais, o tratado”. Como Israel, astutamente, nem assinou o Tratado, ficou livre para fazer o que bem entendesse, construindo e armazenando armas nucleares.

Segundo o referido TNP, quem assinou o Tratado pode dele se retirar desde que o faça com uma antecedência de 90 (noventa dias). Basta, no comunicado, dizer que quer se retirar porque se sente ameaçado em sua segurança. E ameaças públicas de bombardeio, por Israel, de instalações nucleares iranianas não faltaram.

Retirando-se do TNP o Irã ficaria, três meses depois, livre de inspeções na área nuclear. Seu crescimento atômico não estaria infringindo tratado algum. Note-se que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança são potências atômicas, acrescidas da índia, Paquistão e Israel. A omissão iraniana em pedir sua retirada do TNP — como já fez a Coréia do Norte — é algo inexplicável. Seria por temer que sua retirada, agora, pareceria uma confissão de que pretende construir armas nucleares? Bastaria dizer que não é essa sua intenção. Com o pedido de exclusão do TNP, EUA e seus aliados precisariam inventar muitas artimanhas jurídicas para justificar porque “quem assinou antes, podia sair; agora não pode mais! Esqueçam o que está escrito no Tratado!”.

Sou, por acaso, favorável ao aumento do risco de destruição da humanidade, via conflitos atômicos e contaminação radioativa? Não. Sou apenas um realista que acha que o medo pode tanto ser utilizado para o mal quanto para o bem. Da mesma opinião do sueco Alfred Nobel, quando ponderou a uma senhora, adepta do desarmamento universal, que “Talvez as minhas fábricas acabem com a guerra antes de seus congressos. No dia em que dois exércitos forem capazes de se aniquilar mutuamente em um segundo, é provável que todas as nações civilizadas recuem em horror e desmobilizem suas tropas” (página inicial do livro “Fumaça Humana”, de Nicholson Baker).

Sem medos recíprocos — do mesmo tamanho —, o agressivo bicho homem não resiste à tentação de se pavonear e dominar. É pena que Barack Obama, não obstante seja um grande orador, não tenha invulgar familiaridade com os temas gêmeos “paz e ordem mundial”, nem suficiente audácia intelectual para incentivar, na ONU, a possibilidade do conflito Israel- Palestina ser resolvido por uma tribunal internacional. Sem a solução — de fora — dessa questão, o planeta permanecerá na iminência de uma catástrofe.

Encerrando, o Direito Internacional é mal conhecido e por isso os jornais devem se empenhar em instruir seus leitores. Jornais também são arrasados pelas guerras. Quantos jornais existiam na Alemanha quando ela assinou sua rendição em 1945? Talvez uns poucos redatores escrevendo no meio de escombros.

(1º-10-2011)

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