segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Considerações sobre calúnia, difamação e injúria

Quase todos conhecem as diferenças jurídicas entre esses três venenos da convivência humana. Na calúnia, o caluniador atribui ao caluniado a prática de um ou mais crimes, como tais definidos na legislação penal. É uma ofensa, digamos, mais precisa, técnica, e pode ocorrer em linguagem educada, melíflua, sem deixar de ser calúnia. Na difamação o agente “suja”, mentindo, a reputação do difamado, apontando-o como pessoa de péssimo caráter e/ou autor de atos indecorosos, seja no relacionamento social, profissional, sexual ou outro qualquer. Não acusa o difamado de nenhuma infração à legislação penal. Finalmente, injúria significa a ofensa verbal, ou física, o “insulto”, quase sempre cara a cara. O injuriador quer apenas ofender, humilhar; não pretende que o injuriado seja processado pela existência de uma infração penal. Seria o caso do tapa no rosto, mesmo sem muita força, a cuspida — geralmente visando a face —, o gesto ofensivo com o dedo médio, o xingamento na presença de terceiros, ou a sós (o difícil é provar depois). A censura a um subordinado, aos gritos — “incompetente”, “burro”, “lesma”, “retardado”, “covarde”, etc. — mesmo não ouvida por terceiros, caracteriza a injúria. E nada impede que os três crimes estejam, reunidos, quando dois inimigos “lavam” a própria alma enquanto “sujam” a do adversário.

Palavrões no trânsito já se tornaram tão vulgarizados — entre motoristas “finíssimos” —, que perderam qualquer “dignidade” de enquadramento jurídico. Quem utiliza táxis com alguma freqüência fica admirado com a indiferença de calejados taxistas quando, no trânsito, ouvem provocações de outros motoristas. Indagado a respeito, um taxista especialmente articulado me respondeu: “Doutor, eu trabalho doze, quatorze horas diárias na rua. Se fosse encrencar após cada ofensa passaria grande parte do meu tempo em delegacias, ou foragido; no pronto-socorro ou na cova. E aí? Quem cuidaria de minha família?”

Como sinal da decadência dos tempos, o uso do baixo-calão estendeu-se à linguagem do cinema, especialmente o americano, em filmes de ação. No cinema brasileiro é, ou era — não os tenho assistido — ainda é pior. Expressões pesadíssimas, nos filmes americanos — “mother fu...”, por exemplo — se consultadas as palavras, isoladamente, no dicionário, a união delas significam, literalmente, incesto; com a agravante de ser com a própria mãe. No entanto, tais excessos estão presentes, a todo momento, na fala dos artistas, às vezes até com o sentido de elogio. E não é só: o uso da boca feminina para fins não alimentares, ou de articulação de palavras, não fica atrás. Aparece a todo momento, quando a coisa descamba para o sexo, figurando, a tradução, inacreditavelmente, nas legendas em português. Imagino o embaraço dos pais quando, assistindo a televisão, suas crianças perguntam o significado de certas palavras.

Onde tudo isso vai parar não é difícil profetizar. Não se trata de antiquado “moralismo” mas de mera compostura. Esta possui um valor intrínseco, civilizatório. Pergunto: como o leitor consideraria a visita de um grande cientista que, na sua sala, cuspisse no tapete, coçasse ostensivamente suas partes íntimas, arrotasse, limpasse as narinas com o dedo, contasse piadas pornográficas e não reprimisse algumas consequências sonoros da digestão? Essa falta de compostura estimula a idéia de decadência de uma civilização que não deveria visar só a riqueza mas também “elevar” o homem. Penso que o governo americano poderia estimular, nos filmes— não com a mera censura burocrática —, alguma melhoria do nível da comunicação verbal entre os personagens. Milhões de pessoas, de outros países e crenças, acostumadas a um certo auto-policiamento de linguagem, passariam a encarar com mais respeito os reais e inegáveis valores da cultura americana. Muçulmanos, por exemplo, retardatários na área cultural — notadamente científica e técnica —, podem, como forma de proselitismo, tirar proveito desse lado extremamente vulgar da comunicação diária da — por enquanto — grande nação líder da civilização ocidental e dos países que a imitam. Podem alegar, generalizando, que “essas bocas cristãs, que se pretendem tão inteligentes, só vomitam, ou até mesmo engolem, lixos de toda ordem. Eles bóiam, simultaneamente, na riqueza e na vulgaridade”.

Mark Twain, grande escritor americano, morto em 1910 — que a explicação não seja tomada como injúria pelo leitor culto — dizia que é preciso duas pessoas para nos ferir intimamente: o caluniador e aquele amigo nosso que vem nos contar o que andam dizendo contra nós. Se a observação é engenhosa, a ausência de aviso de nossos amigos tem a desvantagem de prolongar o rebaixamento de nossa imagem pública por anos, décadas, ou uma vida inteira. Se algum amigo nos alertasse logo no início da difamação, o prejuízo seria provavelmente menor. Menciono dois exemplos da vida real.

O primeiro. Em uma pequena cidade brasileira — quanto menos informes, melhor —, havia, poucas décadas atrás, um juiz muito severo, inteligente e prepotente. Como, nas audiências, tratava rudemente a maioria dos advogados e naquela época o prestígio genérico de qualquer juiz era muito superior ao atual, os advogados “engoliam”, contrafeitos, a falta de cortesia. Não tanto por temor reverencial. Temiam, principalmente, prejudicar o cliente com uma sentença desfavorável caso resolvessem retrucar o magistrado. Até que surgiu a grande oportunidade: o juiz era “solteirão” e, aos sábados, convocava menores de idade, problemáticos ou abandonados pelos pais, para ouvirem, na casa dele, uma orientação na vida, aprenderem jogos e outras atividades úteis e inocentes. Uma espécie de “catecismo” sem religião.

A junção das duas coisas — o celibato e a reunião da molecada na casa dele — serviu para forjar a lenda de que referido juiz era homossexual. E ninguém — mesmo não tendo lido o pensamento de Mark Twain — foi contar ao magistrado o que se murmurava contra ele, numa época em que o homossexualismo era imensamente vergonhoso. Como o juiz era cheio de arestas e propenso ao isolamento, a “má-reputação” nele grudou-se por décadas. Durante uns quinze anos eu — que apenas sabia de sua existência, mas nunca cheguei a conversar com ele — jamais duvidei que ele fosse aquilo que falsamente diziam que ele era. Não parecia nem um pouco afeminado, mas como todos diziam que ele o era, engoli a informação e nunca fui investigar o assunto. Como eu, certamente centenas de pessoas tinham essa mesma opinião.

Por mera coincidência, um juiz de absoluta integridade e veracidade, que foi juiz-auxiliar do referido magistrado, por um razoável período, explicou-me quem era, realmente, o suposto “gay”( na época, não se usava essa expressão). O espinhoso juiz tinha um passado amoroso — sempre com mulheres — até mesmo bem agitado. Embora feioso, sua firmeza viril tinha conseguido sucesso com o sexo feminino, fora da comarca, nos fins de semana. Como se vê neste caso, se alguém tivesse alertado referido cidadão o que se dizia, ele teria, de imediato, pelo menos cancelado as aulas ou orientações que dava à molecada nas manhãs de sábado. Provavelmente, essa “má reputação para um juiz” — assim se pensava à época —prejudicou sua vida profissional atrapalhando as promoções.

Voltando à observação de Mark Twain, vou citar uma outra ocorrência que demonstra a utilidade de amigos com coragem — ou imprudência... — suficiente para nos revelar certos boatos.

O caso ocorreu em outra cidade brasileira, também do interior. O dono de um estabelecimento comercial, de boa freguesia, passou a sofrer de uma persistente gastrite. Era um tipo alemão de rosto grande, olhos verdes e vasta juba aloirada. Aliviava a “queimação” do estômago e esôfago com antiácidos. Conversando, ocasionalmente, com o prefeito da cidade, este o aconselhou a procurar determinado médico, na capital do estado, que já havia curado vário conhecidos. Como precisava resolver alguns assuntos na capital, o “alemão” aproveitou a viagem, de vários dias, para consultar o tal médico. Comprou o remédio e passou a tomá-lo. Na véspera de voltar à sua cidade ficou algumas horas na praia, comendo camarão e tomando banho de mar. Sendo muito claro de pele, queimou-se a ponto de criar bolhas.

Retornando à sua cidade foi informado, à noite, que o prefeito queria falar com ele. Mal conseguiu dormir, por causa das dores. Quando, no dia seguinte, se olhou no espelho, pareceu ver uma lagosta de restaurante. Sua face estava inchada e vermelha. Não sabendo o que fazer para melhorar provisoriamente a aparência, passou no rosto um creme, normalmente usado por sua mulher. Queria, pelo menos um alívio. O ardor diminuiu mas sua aparência ficou pior: a mistura do queimado de sol com o creme deu a sua cara um colorido manchado e repelente. Parecia um leão doente. E nesse estado saiu para falar com o prefeito.

Chegando à prefeitura, viu que ela sofrera, na sua ausência, algumas alterações na ocupação dos espaços. A secretária do prefeito disse que seu chefe estava em outra sala. Nosso herói “vermelho lagosta” dirigiu-se à sala que lhe pareceu corresponder à indicação da secretária e ao entrar não viu o prefeito. Era uma sala destinada a receber doentes. À sua frente estava um jovem médico, recém-formado, que se aprontava para sair e acabara de tirar o jaleco. Ele trabalhava para o serviço de profilaxia da lepra, ou denominação semelhante. Sua função era percorrer diversas cidade da região, examinar periodicamente os hansenianos e dar, de graça, os remédios necessários capazes de deter o avanço da temida moléstia. O remédio não curava, mas pelo menos impedia novas deformações.

O médico, ao erguer os olhos e ver o comerciante de rosto grande e colorido, pensou que este era mais um doente que precisava dos remédios e chegara atrasado. Deve ter imaginado: “É um caso de hanseníase em forma leonina”. Estava, porém, com pressa e uma “perua” o guardava . Perguntou: “Como vai o senhor? Está tomando o remédio?” Nosso herói estranhou a pergunta, indagando-se como é que aquele estranho tinha conhecimento da sua perturbação estomacal. Respondeu que estava, sim, tomando o remédio — pensava na gastrite — mas que estava ali para falar com o prefeito. “Ele acabou de sair” — disse o médico —“ mas o assunto é comigo mesmo. Vou lhe dar um pacote de remédios que o senhor não pode deixar de tomar, entendeu bem!? Na minha próxima visita venha mais cedo, por favor”. Em seguida, gritou para o enfermeiro, empregado da prefeitura, que estava na sala ao lado, dizendo-lhe que entregasse “ a este senhor” as cápsulas. E saiu apressado.

Quando o enfermeiro entrou na sala, portando dois pacotes de comprimidos e viu o negociante rubro-brilhante, levou um susto. Nunca soubera que aquele conceituado cidadão local era hanseniano. E como esse enfermeiro era um entusiasta comunicador de más-notícias, em poucos dias metade da cidade “ficou sabendo” que o abonado “alemão” tinha “aquela doença”. Como conseqüência, o movimento da sua loja começou a cair. Os fregueses — agora ex-fregueses —, evitavam-no discretamente. Um contrafeito aceno passara a substituir o caloroso aperto de mão. E o fantasma da falência já começava a se delinear no horizonte.

O que o salvou foi um mero acaso. Encontrando na calçada a cunhada, que caminhava com a filhinha de quatro anos, o falso doente pegou a menina no colo, fazendo-lhe agrados. A mãe, constrangida, não conseguiu disfarçar a pressa de tirar a filha dos braços do imprudente “doente”. E alguns dias depois, cena igual ocorreu, só que, dessa vez, com seu irmão, pai da menina. Vendo o “hanseniano” pegar a sobrinha no colo o pai dela foi franco. Tirando bruscamente a filha dos braços do irmão, explicou, tenso: “Olha aqui, isso que você está fazendo não está certo!” — “Por que não está certo?” — “Você sabe muito bem porque...” — “Não sei não...Você pensa, por acaso, que eu virei um tarado?” — “Não é isso! Não me obrigue a ser franco...” — “Seja franco, então!” — “Irmão: essa sua doença, dizem que se transmite por contato físico” — “Que doença?!” — “ A lepra, irmão, A lepra!”

Foi essa franqueza que salvou o comerciante. Do contrário, iria à falência. Para desfazer o equívoco solicitou um exame formal na secretaria de saúde competente, publicou o resultado em jornais e, com o tempo, conseguiu o retorno da freguesia.

Finalmente, uma observação que pode ser útil na área judicial: não é raro — em ações de indenização por crimes contra a honra — que o acórdão que decidiu o caso, após extensas e eruditas considerações defendendo a imunidade parlamentar, termine a longa fundamentação sem transcrever o trecho dado como injurioso. Parlamentares, no exercício do mandato, empregam termos que — pelo menos para os acusados —, são caluniosos, difamatórios ou injuriosos. Quando tais casos são julgados, de melhor efeito pedagógico seria o acórdão transcrever o trecho ofensivo, para que a comunidade jurídica possa ter uma idéia aproximada do até onde é tolerável a “veemência cívica” do discurso.

Que o parlamentar não pode ser impedido de exercer a sua função crítica — mesmo melindrando — não há dúvida. Ele está lá para elaborar leis e exercer a crítica política. No entanto, haverá limites que não devem ser ultrapassados. Abusos seguem, como sombras, os mais legítimos direitos. Se o deputado ou vereador, escorado na “imunidade parlamentar”, expressar-se dizendo — exemplifico exagerando — que “...esse crápula, ladrão do dinheiro público, notório criminoso de alto coturno, gigolô das classe menos favorecidas”, e gentilezas do gênero, não há dúvida de que seu comportamento é repreensível, merecendo pagar por isso, principalmente se suas acusações não ficarem provadas.

A jurisprudência costuma atribuir à presidência da sessão parlamentar a função de policiar os discursos. Mas, pergunta-se, o que fazer quando o presidente da mesa diretora está desatento ou é inimigo do caluniado? Resta ao prejudicado recorrer ao judiciário, pedindo indenização. Mas para os advogados do ofendido terem uma idéia, pelo menos aproximada, de onde termina a “imunidade material parlamentar” e onde começa a “difamação impune” seria útil que os tribunais transcrevessem os trechos em discussão.

Não se alegue que os relatores de acórdãos apenas devem tecer considerações genéricas, doutrinárias, sobre a imunidade parlamentar porque a transcrição das ofensas prejudicariam ainda mais o prestígio do ofendido. Se os relatores se abstêm, por pudor, de transcrever os trechos mais ácidos, negando a indenização, é porque, inconscientemente, sentem que ocorreram excessos, a merecer condenação. Tais ofensas seriam tão pesadas que, transcritas, “sujariam” o próprio papel do acórdão. Como a utilidade da jurisprudência está na larga difusão do que pensam e sentem os tribunais, a omissão das expressões e acusações, em debate, diminui sua utilidade.

Melhor parar aqui, com perdão pela extensão e liberdade do texto.

(21-2-2011)







Considerações sobre calúnia, difamação e injúria

Quase todos conhecem as diferenças jurídicas entre esses três venenos da convivência humana. Na calúnia, o caluniador atribui ao caluniado a prática de um ou mais crimes, como tais definidos na legislação penal. É uma ofensa, digamos, mais precisa, técnica, e pode ocorrer em linguagem educada, melíflua, sem deixar de ser calúnia. Na difamação o agente “suja”, mentindo, a reputação do difamado, apontando-o como pessoa de péssimo caráter e/ou autor de atos indecorosos, seja no relacionamento social, profissional, sexual ou outro qualquer. Não acusa o difamado de nenhuma infração à legislação penal. Finalmente, injúria significa a ofensa verbal, ou física, o “insulto”, quase sempre cara a cara. O injuriador quer apenas ofender, humilhar; não pretende que o injuriado seja processado pela existência de uma infração penal. Seria o caso do tapa no rosto, mesmo sem muita força, a cuspida — geralmente visando a face —, o gesto ofensivo com o dedo médio, o xingamento na presença de terceiros, ou a sós (o difícil é provar depois). A censura a um subordinado, aos gritos — “incompetente”, “burro”, “lesma”, “retardado”, “covarde”, etc. — mesmo não ouvida por terceiros, caracteriza a injúria. E nada impede que os três crimes estejam, reunidos, quando dois inimigos “lavam” a própria alma enquanto “sujam” a do adversário.

Palavrões no trânsito já se tornaram tão vulgarizados — entre motoristas “finíssimos” —, que perderam qualquer “dignidade” de enquadramento jurídico. Quem utiliza táxis com alguma freqüência fica admirado com a indiferença de calejados taxistas quando, no trânsito, ouvem provocações de outros motoristas. Indagado a respeito, um taxista especialmente articulado me respondeu: “Doutor, eu trabalho doze, quatorze horas diárias na rua. Se fosse encrencar após cada ofensa passaria grande parte do meu tempo em delegacias, ou foragido; no pronto-socorro ou na cova. E aí? Quem cuidaria de minha família?”

Como sinal da decadência dos tempos, o uso do baixo-calão estendeu-se à linguagem do cinema, especialmente o americano, em filmes de ação. No cinema brasileiro é, ou era — não os tenho assistido — ainda é pior. Expressões pesadíssimas, nos filmes americanos — “mother fu...”, por exemplo — se consultadas as palavras, isoladamente, no dicionário, a união delas significam, literalmente, incesto; com a agravante de ser com a própria mãe. No entanto, tais excessos estão presentes, a todo momento, na fala dos artistas, às vezes até com o sentido de elogio. E não é só: o uso da boca feminina para fins não alimentares, ou de articulação de palavras, não fica atrás. Aparece a todo momento, quando a coisa descamba para o sexo, figurando, a tradução, inacreditavelmente, nas legendas em português. Imagino o embaraço dos pais quando, assistindo a televisão, suas crianças perguntam o significado de certas palavras.

Onde tudo isso vai parar não é difícil profetizar. Não se trata de antiquado “moralismo” mas de mera compostura. Esta possui um valor intrínseco, civilizatório. Pergunto: como o leitor consideraria a visita de um grande cientista que, na sua sala, cuspisse no tapete, coçasse ostensivamente suas partes íntimas, arrotasse, limpasse as narinas com o dedo, contasse piadas pornográficas e não reprimisse algumas consequências sonoros da digestão? Essa falta de compostura estimula a idéia de decadência de uma civilização que não deveria visar só a riqueza mas também “elevar” o homem. Penso que o governo americano poderia estimular, nos filmes— não com a mera censura burocrática —, alguma melhoria do nível da comunicação verbal entre os personagens. Milhões de pessoas, de outros países e crenças, acostumadas a um certo auto-policiamento de linguagem, passariam a encarar com mais respeito os reais e inegáveis valores da cultura americana. Muçulmanos, por exemplo, retardatários na área cultural — notadamente científica e técnica —, podem, como forma de proselitismo, tirar proveito desse lado extremamente vulgar da comunicação diária da — por enquanto — grande nação líder da civilização ocidental e dos países que a imitam. Podem alegar, generalizando, que “essas bocas cristãs, que se pretendem tão inteligentes, só vomitam, ou até mesmo engolem, lixos de toda ordem. Eles bóiam, simultaneamente, na riqueza e na vulgaridade”.

Mark Twain, grande escritor americano, morto em 1910 — que a explicação não seja tomada como injúria pelo leitor culto — dizia que é preciso duas pessoas para nos ferir intimamente: o caluniador e aquele amigo nosso que vem nos contar o que andam dizendo contra nós. Se a observação é engenhosa, a ausência de aviso de nossos amigos tem a desvantagem de prolongar o rebaixamento de nossa imagem pública por anos, décadas, ou uma vida inteira. Se algum amigo nos alertasse logo no início da difamação, o prejuízo seria provavelmente menor. Menciono dois exemplos da vida real.

O primeiro. Em uma pequena cidade brasileira — quanto menos informes, melhor —, havia, poucas décadas atrás, um juiz muito severo, inteligente e prepotente. Como, nas audiências, tratava rudemente a maioria dos advogados e naquela época o prestígio genérico de qualquer juiz era muito superior ao atual, os advogados “engoliam”, contrafeitos, a falta de cortesia. Não tanto por temor reverencial. Temiam, principalmente, prejudicar o cliente com uma sentença desfavorável caso resolvessem retrucar o magistrado. Até que surgiu a grande oportunidade: o juiz era “solteirão” e, aos sábados, convocava menores de idade, problemáticos ou abandonados pelos pais, para ouvirem, na casa dele, uma orientação na vida, aprenderem jogos e outras atividades úteis e inocentes. Uma espécie de “catecismo” sem religião.

A junção das duas coisas — o celibato e a reunião da molecada na casa dele — serviu para forjar a lenda de que referido juiz era homossexual. E ninguém — mesmo não tendo lido o pensamento de Mark Twain — foi contar ao magistrado o que se murmurava contra ele, numa época em que o homossexualismo era imensamente vergonhoso. Como o juiz era cheio de arestas e propenso ao isolamento, a “má-reputação” nele grudou-se por décadas. Durante uns quinze anos eu — que apenas sabia de sua existência, mas nunca cheguei a conversar com ele — jamais duvidei que ele fosse aquilo que falsamente diziam que ele era. Não parecia nem um pouco afeminado, mas como todos diziam que ele o era, engoli a informação e nunca fui investigar o assunto. Como eu, certamente centenas de pessoas tinham essa mesma opinião.

Por mera coincidência, um juiz de absoluta integridade e veracidade, que foi juiz-auxiliar do referido magistrado, por um razoável período, explicou-me quem era, realmente, o suposto “gay”( na época, não se usava essa expressão). O espinhoso juiz tinha um passado amoroso — sempre com mulheres — até mesmo bem agitado. Embora feioso, sua firmeza viril tinha conseguido sucesso com o sexo feminino, fora da comarca, nos fins de semana. Como se vê neste caso, se alguém tivesse alertado referido cidadão o que se dizia, ele teria, de imediato, pelo menos cancelado as aulas ou orientações que dava à molecada nas manhãs de sábado. Provavelmente, essa “má reputação para um juiz” — assim se pensava à época —prejudicou sua vida profissional atrapalhando as promoções.

Voltando à observação de Mark Twain, vou citar uma outra ocorrência que demonstra a utilidade de amigos com coragem — ou imprudência... — suficiente para nos revelar certos boatos.

O caso ocorreu em outra cidade brasileira, também do interior. O dono de um estabelecimento comercial, de boa freguesia, passou a sofrer de uma persistente gastrite. Era um tipo alemão de rosto grande, olhos verdes e vasta juba aloirada. Aliviava a “queimação” do estômago e esôfago com antiácidos. Conversando, ocasionalmente, com o prefeito da cidade, este o aconselhou a procurar determinado médico, na capital do estado, que já havia curado vário conhecidos. Como precisava resolver alguns assuntos na capital, o “alemão” aproveitou a viagem, de vários dias, para consultar o tal médico. Comprou o remédio e passou a tomá-lo. Na véspera de voltar à sua cidade ficou algumas horas na praia, comendo camarão e tomando banho de mar. Sendo muito claro de pele, queimou-se a ponto de criar bolhas.

Retornando à sua cidade foi informado, à noite, que o prefeito queria falar com ele. Mal conseguiu dormir, por causa das dores. Quando, no dia seguinte, se olhou no espelho, pareceu ver uma lagosta de restaurante. Sua face estava inchada e vermelha. Não sabendo o que fazer para melhorar provisoriamente a aparência, passou no rosto um creme, normalmente usado por sua mulher. Queria, pelo menos um alívio. O ardor diminuiu mas sua aparência ficou pior: a mistura do queimado de sol com o creme deu a sua cara um colorido manchado e repelente. Parecia um leão doente. E nesse estado saiu para falar com o prefeito.

Chegando à prefeitura, viu que ela sofrera, na sua ausência, algumas alterações na ocupação dos espaços. A secretária do prefeito disse que seu chefe estava em outra sala. Nosso herói “vermelho lagosta” dirigiu-se à sala que lhe pareceu corresponder à indicação da secretária e ao entrar não viu o prefeito. Era uma sala destinada a receber doentes. À sua frente estava um jovem médico, recém-formado, que se aprontava para sair e acabara de tirar o jaleco. Ele trabalhava para o serviço de profilaxia da lepra, ou denominação semelhante. Sua função era percorrer diversas cidade da região, examinar periodicamente os hansenianos e dar, de graça, os remédios necessários capazes de deter o avanço da temida moléstia. O remédio não curava, mas pelo menos impedia novas deformações.

O médico, ao erguer os olhos e ver o comerciante de rosto grande e colorido, pensou que este era mais um doente que precisava dos remédios e chegara atrasado. Deve ter imaginado: “É um caso de hanseníase em forma leonina”. Estava, porém, com pressa e uma “perua” o guardava . Perguntou: “Como vai o senhor? Está tomando o remédio?” Nosso herói estranhou a pergunta, indagando-se como é que aquele estranho tinha conhecimento da sua perturbação estomacal. Respondeu que estava, sim, tomando o remédio — pensava na gastrite — mas que estava ali para falar com o prefeito. “Ele acabou de sair” — disse o médico —“ mas o assunto é comigo mesmo. Vou lhe dar um pacote de remédios que o senhor não pode deixar de tomar, entendeu bem!? Na minha próxima visita venha mais cedo, por favor”. Em seguida, gritou para o enfermeiro, empregado da prefeitura, que estava na sala ao lado, dizendo-lhe que entregasse “ a este senhor” as cápsulas. E saiu apressado.

Quando o enfermeiro entrou na sala, portando dois pacotes de comprimidos e viu o negociante rubro-brilhante, levou um susto. Nunca soubera que aquele conceituado cidadão local era hanseniano. E como esse enfermeiro era um entusiasta comunicador de más-notícias, em poucos dias metade da cidade “ficou sabendo” que o abonado “alemão” tinha “aquela doença”. Como conseqüência, o movimento da sua loja começou a cair. Os fregueses — agora ex-fregueses —, evitavam-no discretamente. Um contrafeito aceno passara a substituir o caloroso aperto de mão. E o fantasma da falência já começava a se delinear no horizonte.

O que o salvou foi um mero acaso. Encontrando na calçada a cunhada, que caminhava com a filhinha de quatro anos, o falso doente pegou a menina no colo, fazendo-lhe agrados. A mãe, constrangida, não conseguiu disfarçar a pressa de tirar a filha dos braços do imprudente “doente”. E alguns dias depois, cena igual ocorreu, só que, dessa vez, com seu irmão, pai da menina. Vendo o “hanseniano” pegar a sobrinha no colo o pai dela foi franco. Tirando bruscamente a filha dos braços do irmão, explicou, tenso: “Olha aqui, isso que você está fazendo não está certo!” — “Por que não está certo?” — “Você sabe muito bem porque...” — “Não sei não...Você pensa, por acaso, que eu virei um tarado?” — “Não é isso! Não me obrigue a ser franco...” — “Seja franco, então!” — “Irmão: essa sua doença, dizem que se transmite por contato físico” — “Que doença?!” — “ A lepra, irmão, A lepra!”

Foi essa franqueza que salvou o comerciante. Do contrário, iria à falência. Para desfazer o equívoco solicitou um exame formal na secretaria de saúde competente, publicou o resultado em jornais e, com o tempo, conseguiu o retorno da freguesia.

Finalmente, uma observação que pode ser útil na área judicial: não é raro — em ações de indenização por crimes contra a honra — que o acórdão que decidiu o caso, após extensas e eruditas considerações defendendo a imunidade parlamentar, termine a longa fundamentação sem transcrever o trecho dado como injurioso. Parlamentares, no exercício do mandato, empregam termos que — pelo menos para os acusados —, são caluniosos, difamatórios ou injuriosos. Quando tais casos são julgados, de melhor efeito pedagógico seria o acórdão transcrever o trecho ofensivo, para que a comunidade jurídica possa ter uma idéia aproximada do até onde é tolerável a “veemência cívica” do discurso.

Que o parlamentar não pode ser impedido de exercer a sua função crítica — mesmo melindrando — não há dúvida. Ele está lá para elaborar leis e exercer a crítica política. No entanto, haverá limites que não devem ser ultrapassados. Abusos seguem, como sombras, os mais legítimos direitos. Se o deputado ou vereador, escorado na “imunidade parlamentar”, expressar-se dizendo — exemplifico exagerando — que “...esse crápula, ladrão do dinheiro público, notório criminoso de alto coturno, gigolô das classe menos favorecidas”, e gentilezas do gênero, não há dúvida de que seu comportamento é repreensível, merecendo pagar por isso, principalmente se suas acusações não ficarem provadas.

A jurisprudência costuma atribuir à presidência da sessão parlamentar a função de policiar os discursos. Mas, pergunta-se, o que fazer quando o presidente da mesa diretora está desatento ou é inimigo do caluniado? Resta ao prejudicado recorrer ao judiciário, pedindo indenização. Mas para os advogados do ofendido terem uma idéia, pelo menos aproximada, de onde termina a “imunidade material parlamentar” e onde começa a “difamação impune” seria útil que os tribunais transcrevessem os trechos em discussão.

Não se alegue que os relatores de acórdãos apenas devem tecer considerações genéricas, doutrinárias, sobre a imunidade parlamentar porque a transcrição das ofensas prejudicariam ainda mais o prestígio do ofendido. Se os relatores se abstêm, por pudor, de transcrever os trechos mais ácidos, negando a indenização, é porque, inconscientemente, sentem que ocorreram excessos, a merecer condenação. Tais ofensas seriam tão pesadas que, transcritas, “sujariam” o próprio papel do acórdão. Como a utilidade da jurisprudência está na larga difusão do que pensam e sentem os tribunais, a omissão das expressões e acusações, em debate, diminui sua utilidade.

Melhor parar aqui, com perdão pela extensão e liberdade do texto.

(21-2-2011)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Conciliando a “sucumbência recursal” com a proposta do Min. Peluso

Advertência indispensável: o presente artigo é direcionado tanto ao operador do Direito quanto ao cidadão comum, desabituado ao complexo linguajar jurídico. Parodiando o que já foi dito sobre as guerras e os generais, a justiça dos países é importante demais para ficar apenas nas mãos dos formados em Direito. A economia, a segurança, o bem estar, o próprio nível moral da população dependem, em larga escala, de uma justiça estatal lúcida, justa, severa e relativamente rápida. A criminalidade, tanto a de rua quanto a dos gabinetes sofisticados é estimulada com a impunidade. Na área cível, se é lucrativo adiar pagamentos utilizando a técnica dos “recursos sem fim”, por que não utilizar a brecha legal, embora não moral?

O jornal “O Estado de S. Paulo”, de 28-12-10, pág. A10, traz uma corajosa proposta do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Cezar Peluso. Revoltado, com razão, com a falta de correta visão do problema da “morosidade do judiciário” — expressão que induz a falsa idéia de que os juízes é que são pessoalmente responsáveis pela demora no término dos processos — o ilustre magistrado paulista propõe — e pretende lutar por isso —, que os processos terminem, sejam executáveis, após o julgamento da apelação, se houver.

Em resumo, conforme referida proposta, lavrada a sentença de primeiro grau, a parte que não se conforma com a decisão teria o direito de apelar para um órgão colegiado, onde o caso será julgado por desembargadores, mais experientes que um único juiz. Duas instâncias de julgamento e basta. Eventuais pedidos de novos exames da causa, ao STJ - Superior Tribunal de Justiça (“terceira instância”) e ao STF - Supremo Tribunal Federal (“quarta instância”), existiriam não mais como “recursos”, mas como “ações rescisórias”, com processamento bem mais dificultado. Essa maior “dificuldade em ser novamente ouvido” explica-se pela necessidade prática e universal de que as decisões judiciais precisam chegar a um término. A “busca infindável” da verdade, quando aplicada na Ciência, na História e na Filosofia, é elogiável e até mesmo sagrada, mas quando tolerada na Justiça transforma-se em paralisia parcial da nação. É conhecida a máxima de que a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.

Essa maior severidade no processar ações rescisórias parte do pressuposto de que as decisões de juízes ou desembargadores devem ser, em princípio, acertadas, porque proferidas por magistrados com razoável ou grande conhecimento teórico do direito e prática no ofício de julgar. Além do mais — e em favor da proposta Peluso —, o exame da prova não é atribuição do STJ nem do STF. Esses dois Tribunais só cuidam das questões de direito; não ficam, por exemplo, cotejando depoimentos. Se, na apelação, o tribunal local afrontou a legislação federal, ou a Constituição da República — erros que todo magistrado normal tenta evitar, preservando a própria imagem — aí caberia a ação rescisória; sempre, repita-se, mais exigente no admitir um processamento. E a execução do julgado já estaria em andamento, diminuindo o tempo de espera da parte que tem razão no processo.

Os interessados na protelação — as custas dos recursos são proporcionalmente mínimas — sabem que são milhares os que recorrem com o mesmo objetivo. Aí reside o “filão de ouro”. A esperança de ganhar o recurso é muito pequena, ou nenhuma. O proveito está apenas na demora decorrente do congestionamento dos tribunais superiores de Brasília. E quanto maior o número de páginas dos autos do processo, maior a probabilidade de demora do julgamento, porque os magistrados têm a obrigação de ler tudo, inclusive documentos que têm remota, enigmática ou nenhuma função de esclarecimento. Pelo contrário. Se o magistrado não ler todas as milhares de páginas o interessado na protelação pode alegar que tal argumento, na “página 863, linha 17” não foi examinado, sendo omissa a decisão.

Esse “massacre” visual de milhares de páginas, a serem lidas por poucos Ministros, explica, frequentemente, os mal denominados “engavetamentos” dos autos pelos relatores dos processos, ensejando a maliciosa alegação de que a culpa da morosidade está nos juízes. Não está. A culpa está na quantidade imensa de pretendentes à demora. A mídia nem sempre explica que o “lento ministro Tal” digitou, naquele mês, um número de palavras que ombreava a volumosa produção mensal do romancista Balzac. E é oportuno lembrar que um romancista escreve o que lhe vem à cabeça, sem ter que dar satisfação a ninguém, vantagem que não beneficia magistrados conscientes, vigiados por dezenas de “olhos” legais e humanos.

A se manter a atual e frouxa sistemática processual, seria necessário que os Tribunais Superiores fossem compostos de centenas de Ministros, algo que não existe em parte alguma do mundo. A analogia geométrica correta da justiça é uma pirâmide, não um gordo cilindro, em que tudo sobe, ou tenta subir até o topo, como hoje ocorre. A “ponta” da pirâmide, à maneira de um filtro invertido, deveria ser diminuta em comparação com a base, sugerindo um progressiva depuração de exames. No Brasil, na forma como está o sistema recursal, todos os litigantes tentam — e o simples tentar produz demoras porque sempre há recursos contra a “não-subida” — percorrer as “quatro instâncias” referidas pelo Min. Peluso.

O leigo pode perguntar: “Mas não interessa a ambas as partes, autor e réu, que os processos logo terminem?” A resposta é não. A rapidez interessa somente à parte que sabe ter razão, geralmente o autor da ação.

O Min. José Antônio Dias Toffoli, quando Advogado Geral da União, entrevistado em 25-5-2007, pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, pág. A8, disse, à época, que a dívida ativa (crédito em juízo) da União era de seiscentos bilhões de reais. Se não houve erro de impressão no jornal, metade desse valor cobrado poderia solucionar inúmeros problemas brasileiros. Não houvesse a irracional liberalidade processual em admitir recursos, a dívida passiva do Estado poderia ser paga rapidamente. Assim como o contribuinte utiliza a lei processual para retardar o pagamento de seu débito, União, Estado e Municípios fazem o mesmo. É o “troco”.

Quem sofre com a atual distorção das corriqueiras “quatro entrâncias”? Sofrem as finanças governamentais. Padecem aqueles que recorrem de boa-fé mas encontram, na “fila de espera” de julgamento, à sua frente, milhares de recorrentes que visam apenas tirar proveito da demora. Penam, principalmente, os litigantes que viram reconhecidos seus direitos mas que nada podem fazer para impedir que a parte contrária recorra e crie incidentes que ensejarão novos recursos ou mandados de segurança. Sofrem todos os contratantes que viram seus direitos violados pela outra parte contratual que, comodamente, diz “não posso fazer nada, procure a justiça!”. Gemem os contribuintes que, mesmo cerrando os dentes, pagam pontualmente suas obrigações tributárias e por isso ficam prejudicados, pois seus produtos ficam mais caros que os produzidos por aqueles que só pagam em juízo e, por isso mesmo, podem vender mais barato seus produtos, “isentos de impostos” por deliberação própria, não da legislação. Finalmente, sofre o contribuinte brasileiro, com uma carga fiscal excessiva; excessiva porque muitos não pagam. Se todos pagassem, a carga fiscal seria mais tolerável.

Não há que procurar “culpados” individuais pela situação de congestionamento da justiça brasileira. Se está na lei recorrer de tudo, por que não usa-la? Basta procurar um advogado. Este, por sua vez, não pode se dar ao luxo — tem família para sustentar — de ficar recusando os melhores clientes, obviamente os mais bem situados. Pobres não conseguem dever muito, mesmo que se esforcem para isso. Se o advogado santinho recusar o abonado cliente, este procura outro escritório. A pobreza humilhante ronda o advogado que pensa demais no bem geral. O advogado que ganha pouco, tem carro velho e mantém escritório mambembe não é visto como “santo”, mas como “um incompetente fracassado”. Jamais sairá na revista “Caras”.

Não é imprescindível, para um bom status social do advogado — ele é plenamente merecedor disso, porque não é fácil advogar no Brasil — que se mantenham as atuais falhas processuais que permitem a eternização de demandas de maior valor econômico. Nos Estados Unidos da América os processos, normalmente, não demoram demais. Com relação às apelações — pelo que sei, por informação de um juiz federal, anos atrás —, quando a parte é condenada, na primeira instância, a pagar quantia em dinheiro, ele só pode apelar depois de depositar o valor total da condenação e mais as custas do recurso. Se não dispõe da alta verba, pode contratar uma financeira para fazer o depósito, mas a financeira só deposita o dinheiro depois de se garantir com os bens do apelante. Se este perder o recurso a financeira fica com os bens. Com tal espartana sistemática, é pequeno o volume de apelações, em comparação com nosso país.

No Brasil essa sistemática seria dura demais, e até desastrosa, por motivos que seria longo mencionar. Por isso, tenho insistido, por anos, na instituição da “sucumbência recursal”. O que é isso? Significa que a condenação em honorários advocatícios não deve se limitar à decisão de primeira instância, como está no nosso C.P.C. É preciso, como forma de moralizar os recursos, que em todo recurso — ou medida equivalente visando modificar uma decisão —, que a lei processual condene o perdedor do recurso a pagar novos honorários em favor da parte contrária, que tem razão, presumivelmente. Uma aplicação, na área jurídica, do conselho de Voltaire: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. O litigante costuma seguir o seguinte raciocínio: “Se não há “perigo” de prejuízo em recorrer continuamente, por que devo me abster dessa “vantagem?

O projeto do novo CPC prevê que na apelação se aplique a “sucumbência recursal”, mas limita a “sucumbência total” a 25% do valor da causa. Diferença mínima em relação ao que já existe, 20%. E deixa livre de novas sucumbências os recursos posteriores à decisão da apelação. Resultado totalmente previsível: continuará a “farra” de inúmeros recursos na área dos recursos processados em Brasília, no STJ e no STF. Há pouca diferença entre honorários de 20% e 25%. Além do mais, o futuro CPC só entrará em vigor um ano depois de publicado. E até que ele seja publicado decorrerão muitos meses, com idas e vindas entre Câmara e Senado.

Qualquer inovação, na área de diminuir os recursos protelatórios, está sujeita a alguma crítica. No “projeto Cezar Peluso”, é previsível que o número de recursos visando a demora vá aumentar na primeira instância. No caso da “sucumbência recursal” — sem limites de instâncias — o perigo potencial é que alguns grandes devedores tributários não se incomodem com a nova sanção, desde que os processos continuem se arrastando. Tratarão de desviar progressivamente seus bens para que nada reste para ser executado.

O Min. Cezar Peluso, na entrevista mencionada de início, previu uma reação da classe dos advogados à sua idéia. Que haverá alguma resistência, não há dúvida. Mas será por parte dos profissionais com clientela vivamente interessada na permanência do “status quo”. Há, porém, tenho certeza, um elevado percentual de advogados que sente-se incomodado com a atual demora, não tendo como justificar aos clientes porque o processo não termina.

Aos advogados que, temendo diminuição de serviço, preferem a manutenção da atual sistemática de afogamento da justiça graças ao volume exacerbado de recursos, cabe lembrar que a classe dos advogados, nos EUA, é poderosa, rica e até mesmo algo temida, não obstante o sistema legal ianque se defenda bem contra a protelação em juízo. O advogado americano compensa a “perda” oriunda da restrição aos recursos protelatórios com o proveito proveniente — grandes honorários — do estudo especializado da complexa legislação americana.

É um exemplo a ser seguido pelos mais competentes advogados brasileiros, procurados pela nata dos grandes devedores. Aumentada a verba da “sucumbência recursal”, para quem irá tal remuneração, senão para o advogado que defende a parte que tem razão?

Uma “mescla” pensável da “sucumbência recursal” com o “projeto Peluso” seria o legislador adotar a “sucumbência recursal” acoplada com a exigência processual de os recursos para o STJ e para o STF terem seu seguimento condicionado ao depósito integral da quantia apurada na decisão da apelação, ou a entrega do bem em disputa. Em outras palavras: a parte perdedora, na apelação, depositaria em juízo o dinheiro ou o bem disputado e só após feito isso poderia recorrer aos tribunais superiores. Mas teria que ser um depósito mesmo. Se a jurisprudência aceitar a mera “caução” de um imóvel, por exemplo, a “farra” — com perdão da palavra — continuaria.

(01-02-2011)

O caso Battisti e a Corte Internacional de Justiça

Desnecessário relembrar, em detalhes, a “novela” relacionada com o pedido de extradição feito pela Itália. Basta dizer que o STF já decidiu que o pedido do governo italiano não ofende, em nada, a legislação brasileira. Nem, ressalte-se, qualquer princípio jurídico aceito internacionalmente. Pelo contrário, o mínimo que se pode exigir dos tratados é que sejam obedecidos, sem subterfúgios ditados por simpatias ideológicas.

No entanto, como o Direito Internacional ainda contém, lamentavelmente, resíduos volumosos de um primitivismo jurídico incompreensível em pleno século XXI — cedo ou tarde a humanidade sofrerá as consequências — alguns chefes de estado, mal orientados por assessores, interpretam o conceito de soberania da pior maneira possível, imaginando, provavelmente, que estão agindo certo. No caso de Battisti, negando caprichosamente uma extradição fundada em tratado perfeitamente legal. O que leva à indagação: Para que servem os tratados? Fosse Battisti um homem de direita, condenado por homicídios contra líderes esquerdistas italianos, os mesmos assessores diriam que sua extradição não poderia ser negada, tendo em vista a legalidade do pedido.

Pergunto: fui grosseiro, pouco atrás, quando usei a expressão “resíduos de primitivismo jurídico”, referindo-me ao Direito Internacional? Grosseiro, pode ser. Mentiroso, não. Explico, para quem não sabe, e são muitos: a Corte Internacional de Justiça só decide demandas entre Estados, formalmente Estados. Isso explica, por exemplo, porque os palestinos não podem exigir nada, na CIJ, contra Israel, mesmo que este use e eventualmente abuse de seu poder político (apoio americano) e militar (convencional e atômico). Em suma, é a força, com leves disfarces jurídicos, que manda na área internacional. Os fracos apenas esperam, com poucas esperanças, que seus gemidos sejam ouvidos e gerem alguma reação, embora em um mundo cada vez mais surdo no ouvir queixas de vizinhos sem aliados fortes.

Continuando na demonstração do mencionado primitivismo: se um Estado, formalmente Estado, acionar outro Estado, na CIJ, o “Estado réu” só será processado se assim concordar, mesmo que ambos, autor e réu, façam parte da ONU. Equivale, essa recusa, a um valentão qualquer, em seu país, praticar inúmeras ilegalidades e, quando acionado na justiça, dizer que não aceita ser julgado e, portanto, nada pagará. E assim será, porque assim é nossa “ordem” — ou desordem? — jurídica na área internacional. Repetindo: não existem “estados réus” na ordem internacional a menos que concordem com essa posição. E quem sabe estar errado nunca concorda.

Prosseguindo no resumo da inacreditável sistemática jurídica internacional: se, eventualmente, o Estado infrator, ou réu, concorda em ser julgado e é condenado, mas não cumpre a decisão, o que acontece? A CIJ “lava as mãos”. Envia o problema ao Conselho de Segurança, para as “providências cabíveis”. E o que ocorre no Conselho de Segurança? Aí depende da política dos países que integram o CS, principalmente dos cinco países com poder de veto. Se uma punição qualquer for prejudicial aos “businesses” ou outros interesses dos titulares do direito de veto, nada será feito contra o país que aceitou ser julgado mas não aceitou o resultado do julgamento. Um único veto pode travar qualquer punição.

É assim que funciona a Corte Internacional de Justiça. Não, ressalte-se, por culpa dos competentes e idôneos 15 juízes que lá trabalham — verdadeira “nata” do saber jurídico na área internacional — mas porque assim está escrito na Carta das Nações Unidas e no Estatuto da CIJ. Provavelmente, alguns ou todos os juízes que lá trabalham lamentam as impressionantes limitações acima apontadas, mas não se sentiriam bem criando uma “rebelião jurisdicional” porque, quando foram nomeados para tais cargos fizeram a promessa de cumprir os Estatutos tal como está escrito.

Juristas de peso, no Brasil, já se pronunciaram, em entrevistas, sobre a hipótese do governo italiano levar o “caso Battisti” à CIJ. E adiantaram o veredicto de que referida Corte rejeitaria julgar a questão, porque no referido tratado de extradição não consta, expressamente, a previsão de que, em caso de divergência, a parte prejudicada — Brasil ou Itália — poderia levar o caso à decisão da CIJ. Com essa omissão, levando em conta a existência da soberania brasileira — exercida pela boca exclusiva do presidente do país — Battisti poderia permanecer no Brasil.

Com todo o respeito que possam merecer tais céticas opiniões, dando ao conceito de soberania um matiz extremamente atrasado — “no meu país, mando eu!; tratados só devem ser cumpridos quando isso me agrade!” — é preciso estimular a esperança de um mundo melhor e levar em conta que a jurisprudência, de modo geral, é também fonte do direito. E por que o mesmo não aconteceria no Direito Internacional Público?

Quem sabe, se apresentado um pedido formal da Itália na Corte Internacional de Justiça uma voz se erguerá, entre os juízes, para salientar o valor criativo e universal da jurisprudência, com a necessidade ou conveniência de que aquela alta Corte não permaneça como uma semi-inútil estátua de pedra, indiferente aos maiores abusos na ordem jurídica. Afinal, interessa ao mundo, e não só à Itália, que acordos sejam cumpridos. Pode, a CIJ, decidir que a possibilidade de acesso à Corte máxima, em casos de afronta clara aos tratados internacionais, está implícita em tais avenças. Se os tratados foram celebrados para serem cumpridos ou não, conforme a “veneta” do chefe de estado de plantão, para que o trabalho de se escrever tais “firulas”? Hitler, quando no apogeu, consultado sobre o cumprimento de algum tratado que contrariava os interesses germânicos, respondia que tratados são meros “pedaços de papel”. Assim serão encarados, doravante, os tratados assinados pelo Brasil? Não esquecer que os outros países poderão fazer o mesmo, dando o “troco”.

Considerando os “atrasos” jurídicos evidentes na área internacional, será oportuna uma tentativa de mudança de jurisprudência, em casos nítidos como foi o caso da extradição Battisti. Ele foi processado com base em acusações nítidas. A Itália é um dos países mais adiantados do mundo na área jurídica. Principalmente na área penal. Não é um Zimbábue. Preferiu não se defender, apenas fugir. Ao que sei, nem indicou um advogado para defendê-lo. Poderia ter feito isso, presumo, mesmo não se apresentando para depor (desconheço o direito italiano). Seria falta de dinheiro para contratar um advogado? A mídia não fala nisso e é mais do que provável que simpatizantes de esquerda forneceriam os recursos necessários ao pagamento de um criminalista de peso. Não quis. E agora, anos depois, vem dizer que é tudo mentira o que se disse contra ele? Ele teria que dizer isso é lá, no processo, através de um advogado de confiança, não agora, muitos anos depois, quando preso.

Alguém, em parecer, disse que a extradição poderia ser negada com base no art.3º, item I, letra “f”, do tratado de extradição, assim redigido: “se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados”.

Essa cláusula é ampla demais. Nela cabe tudo, inclusive uma soma de pretextos pueris para o descumprimento do tratado. A hipótese de “perseguição” na cadeia seria difícil de ocorrer porque o caso de Battisti despertou tanta atenção internacional que a vigilância da mídia logo denunciaria qualquer abuso carcerário. E se Battisti for, como alega, inocente das quatro mortes pelas quais foi condenado, uma ação rescisória — no Brasil, aquela que pode ser movida quando é possível provar que a condenação foi injusta — poderá inocenta-lo. E em um futuro governo, mais de esquerda, pode ocorrer um indulto.

Ao escrever estas linhas sinto, por vezes, alguma dúvida se deveria escrever o que escrevi. Isso, por mero sentimento de caridade, não por espírito de justiça. Battisti já é outro homem, e a situação de foragido, por muitos anos, já deve ter sido uma forte punição psicológica. As vítimas que ele, tudo indica, matou, não podem retornar a vida. Uma delas, porém, está paralítica e não se conforma com a impunidade, o mesmo ocorrendo com os parentes dos assassinados. O essencial, porém, é opinar como qualquer cidadão que gosta de ver ordem no mundo e não como mero sentimental.

A rotina de se praticar crimes em um país e fugir para outro não deve ser estimulada, como acontecerá se mantida a negativa da extradição. O Brasil tem má reputação nessa área. Filmes em que simpáticos assaltantes de bancos escolhem, com suas amadas, países onde possam se instalar, para gozar a vida com o dinheiro roubado, costumam mencionar o Brasil como primeira hipótese. É a fama, desde o caso Ronald Biggs, um dos autores do famoso assalto ao trem-pagador. Ele era até uma “personalidade” de convívio cobiçado. Dizem que figuras da sociedade carioca pagavam um “x” para um almoço com a ilustre figura.

A motivação política dos eventuais ou comprovados homicídios não “santificam”, sempre, as mortes. Talvez, nos casos em exames, houve mera vingança contra algum desaforo, fugindo o fato da motivação política para transformar-se em rixa pessoal. Só a leitura dos autos esclareceria isso.

Finalmente, uma comparação elucidativa: se um cidadão brasileiro resolvesse assassinar, por motivos políticos, um parente do ex-presidente Lula, ou ele mesmo, ou algum ministro dele e conseguisse fugir para a Itália, lá obtendo o status de refugiado, o que diria o governo brasileiro contra o governo italiano, caso este negasse cumprimento ao tratado de extradição?

Tudo considerado, voltemos ao princípio: será salutar, ao Direito Internacional, que a Itália acione a Corte de Justiça Internacional, exigindo o cumprimento do tratado. Seria uma “sacudidela” jurídica com alguma possibilidade de criação de uma jurisprudência. Se, ao contrário, negado o acesso à Corte, os povos pelo menos ficarão sabendo, mais uma vez, como a justiça internacional está ainda excessivamente “travada”, exigindo que ela se ajuste melhor ao mundo em que vivemos. Não fosse a restrição do cerimonial, é possível que, inaugurada a aludida jurisprudência, os notáveis juízes que lá trabalhem, ovacionassem, de punho erguido, a benéfica ousadia.

(25-1-2011)