quarta-feira, 13 de abril de 2016

O país exige, na Justiça, a prevalência da verdade real

Com a liberdade de imprensa, melhoria na alfabetização, proliferação dos computadores e maior acesso à informação, cada vez mais as pessoas inteligentes e honestas se interessam pelos detalhes e bastidores da infindável batalha “entre o bem e o mal”.
Todos sabem, em “termos práticos”, sem sofisticação filosófica, o que seria o “bem”: uma conduta honesta, sem mentiras, sem ver em cada homem ou mulher um trouxa a ser saqueado em sua bolsa, pudor ou honra; senso de responsabilidade no trabalho, mesmo quando mal remunerado; boa educação — pela pregação e exemplo — dos filhos (e netos...); a capacidade (dolorosa) de resistir às embriagadoras vantagens financeiras oferecidas pelo crime organizado ou elegantes atividades assemelhadas; coragem, franqueza e boa-intenção — pelo menos —, dos homens públicos. E tudo o mais que o leitor de boa formação sabe, intuitivamente, mesmo sem nunca ter lido qualquer livro escrito por sisudo moralista.

O que seria o “mal”, as pessoas também sabem o que é. Basta reler o parágrafo acima e pensar no oposto do que foi exemplificado como “bem”.

O título sugere — no “exige” — a possibilidade de opção entre a verdade real e outra verdade qualquer, que não seja a real. Qual seria, no caso, essa outra opção? Obviamente, a “verdade legal”, contida na legislação e nas decisões judiciais. Uma “verdade” que pelo menos não insulte a inteligência.

Estas considerações surgem a propósito de recente decisão da 3ª. Turma do TRF da 1ª Região, negando, por dois votos contra um, o pedido da defesa de um contraventor, “Carlinho Cachoeira”, que pedia a anulação das escutas e provas decorrentes na chamada “Operação Monte Carlo”. Os negadores do pedido, desembargadores Cândido Ribeiro e Marcos Augusto de Sousa, certamente foram entusiasticamente aplaudidos, em pensamento, por milhares de pessoas preocupadas com a onda de impunidade que varre o país e não parece com vontade de refluir.

A defesa fundamentou o pedido de nulidade de todas — todas! — as provas alegando que as investigações da Policia Federal começaram por causa de uma denúncia anônima.

Absurdo — sob qualquer luz, leiga ou jurídica —, o fundamento de que uma longa e exaustiva investigação seja anulada só porque se iniciou com denúncia anônima. Mesmo pessoas desinformadas sabem que apontar ilícitos de qualquer homem poderoso, rico e ligado a atividades ilegais, é extremamente arriscado. É praticamente um suicídio, morte certa “em circunstâncias pouco esclarecidas”. Principalmente em um país, como o Brasil, em que é baixíssimo o percentual de homicídios desvendados. Quando desvendados, poucos são os que cumprem pena porque as “nulidades” pululam como bactérias. E, quando condenados, existe sempre uma esperança de que possam fugir por um túnel ou, calmamente, pela porta da frente do presídio, ou desaparecendo quando libertado provisoriamente, via habeas corpus, por poucos dias, o que explica o alto índice de homicídios. Com a péssima distribuição de renda não é difícil encontrar um miserável viciado que aceite matar alguém por três ou quatro salários-mínimos.

 A Constituição Federal proíbe a pena de morte e a de prisão perpétua; a legislação penal e a processual são frouxas; a jurisprudência é benevolente e submissa demais ao que pensam e decidem alguns magistrados influentes que exigem o trânsito em julgado — quase “dia de são nunca” — de condenações para deter os acusados, apenas preventivamente, antes da condenação final, após infindáveis recursos. As testemunhas têm medo de depor, e os próprios juízes e promotores são ameaçados quando mostram real disposição de aplicar a lei. No caso da Operação Monte Carlo o juiz Paulo Lima — que autorizou a escuta telefônica e segue o caso do contraventor Cachoeira —, pediu para ser afastado do processo porque se sente ameaçado, juntamente com sua família. Prefere ser um juiz vivo que um herói morto. E quem o substituiria negou-se a ficar com o processo porque mantinha relações sociais com membros da família de um dos réus.

Se os próprios agentes públicos, encarregados de aplicar a lei, não se sentem seguros quando o réu é contraventor poderoso e ousado, o que se dirá de um “homem do povo”, sem qualquer proteção individual ou estatal, que tem conhecimento pessoal de alguns “podres” e quer revelar o que sabe? Não seria até mesmo impatriótico ele deixar de delatar o caso, mesmo anonimamente, a quem de direito? A única solução, inclusive moral, em favor da sociedade, é fazer a denúncia anônima. Não esquecer que mesmo a denúncia anônima pode implicar em risco pessoal, porque uma falha qualquer no uso do anonimato pode levar o investigado a deduzir quem foi o autor da denúncia: — “Só aquele Fulano poderia saber desses fatos...”. E o denunciante, pouco depois, será vítima de algum acidente fatal, ou “por ter, talvez, reagido a um assalto”, como dirão os jornais.

É preciso que a população saiba que a Polícia Federal não lê as denúncias anônimas como os religiosos leem a Bíblia, presumindo que são sempre verdades sagradas. A Polícia não tem a intenção de se desmoralizar, fazendo investigações idiotas. Principalmente quando o delatado é pessoa respeitada e temida. Tais denúncias são analisadas e cotejadas com outros informes. Constatada a alta possibilidade de que existe o fato denunciado, a autoridade policial inicia formalmente a investigação. Sem alarde, porque este até favoreceria o possível criminoso, que tomaria providências judiciais contra a precipitação da autoridade investigadora e esconderia ou destruiria provas incriminadoras.  No caso, já referido, da Operação Monte Carlo, os dois desembargadores — Cândido Ribeiro e Marcos Augusto de Souza — mencionam, em seus votos, que a escuta telefônica foi feita porque havia policiais trabalhando no esquema da organização criminosa e eles logo alertariam seus patrões, que passariam a controlar seus diálogos.

Nessa Operação não houve, portanto, qualquer ilegalidade. As escutas foram previamente autorizadas por juiz, como exige a Constituição. E argumentar que o juiz, para autorizá-las, deveria “fundamentar” sua decisão, com fatos e longas considerações, seria inverter o significado das escutas telefônicas. Se a polícia já tivesse as provas de que necessita para o promotor apresentar a denúncia, já não precisaria pedir escuta ao juiz. E o juiz geralmente não tem conhecimento direto e pessoal das infrações. Não lhe caberia agir como detetive para colher, ele mesmo, a prova solicitada pelo delegado. Por isso, defere a escuta, em procedimento sigiloso, com isso até preservando a imagem do suspeito.

A população brasileira já não tolera ouvir na TV, ou ler em jornais, notícias de que longos e dispendiosos trabalhos de investigação — autorizados pela justiça, com provas importantes —, sejam, com rápida “canetada”, totalmente anulados.

A comunidade mais lúcida interpreta — certa ou erroneamente — essa tendência judicial como disfarçada simpatia para com alguns privilegiados criminosos do colarinho branco, “acima do bem e do mal”. Discorda, com total razão, da errônea separação entre as verdades “de fato” e as de “direito”. Entende que a verdade só pode ser uma só. O tal “fruto da árvore envenenada” — esquisita criação da doutrina americana —, desperta a suspeita de que o que está envenenado não é o “fruto”, mas o próprio jardineiro criador da socialmente lesiva teoria.

 Dou um exemplo, nítido e propositalmente exagerado dessa má doutrina: o pai de um rapaz que foi morto por uma organização criminosa, inconformado com a inércia ou conivência da polícia na investigação, resolve, ele mesmo, disfarçado em funcionário, visitar as instalações da organização, no caso um frigorífico. Sem autorização judicial, grava conversas e penetra, com máquina fotográfica e filmadora, na sede da organização criminosa. Ali descobre, filma e fotografa, em câmaras frigoríficas, dezenas de cadáveres com marcas de tortura e tiros, bem como pedaços de corpo humano que estavam sendo moídos e transformados em ração para cães e gatos. Leva depois, às autoridades, uma amostra da lúgubre “ração” bem como fotos, filmes e gravações. E as provas mostram-se isentas de adulterações técnicas.

 Pergunta-se: todo esse convincente material probatório não teria nenhum valor legal porque tanto a escuta telefônica quanto a entrada do cidadão no “açougue” não foram autorizadas por decisão judicial? Que o ousado “Sherlock Holmes” amador receba uma advertência, ou pequena multa, ainda vá lá, mas que se diga que toda a prova colhida no local “não existe”, não pode ter qualquer efeito legal, é algo tremendamente lesivo à reputação judicial. É uma desmoralização. As verdades legais e reais devem coincidir ao máximo, mas quando não coincidem, que prevaleça a verdade real, porque não vivemos no mundo da lua. Não fosse a “bisbilhotice” dos “focas” da imprensa investigativa, o Brasil continuaria na mais santa ignorância das roubalheiras que sugam a economia e o bem estar de sua população mais pobre.

Jurisprudências afrontosas do senso comum, da óbvia realidade, induzem os jurisdicionados a ver a justiça como algo bem inferior ao que deveria ser. Com o tempo as ordens judiciais serão cada vez mais desobedecidas. Em greves no serviço público de transporte os sindicalistas já não se preocupam com exigência de número mínimo de veículos em circulação. Invasores de área não obedecem às reintegrações de posse de áreas. Sabem que são em maior número que os policiais que acompanham os oficiais de justiça. Além disso, argumentam, “a justiça só defende o interesse dos ricos”, tal é a imagem que o povo faz da atividade jurisdicional. Opinião errada no que se refere à vasta maioria dos juízes brasileiros, silenciosas mas sem força.

Já tarda a organização dos magistrados visando reconquistar a posição de prestígio — justo, merecido —, que desfrutava algumas décadas atrás. É preciso formar um lobby bem atuante no Congresso Nacional, não — insista-se — para pleitear aumento de vencimentos, mas para propor alterações legislativas, principalmente na área processual, diminuindo a impunidade, não só criminal.

Se a população voltar a confiar na eficácia da justiça ficará até brava quando alguém levantar críticas contra eventuais “penduricalhos” dos juízes. Um contador, meu conhecido, disse-me que eu pago mais imposto de renda que alguns de seus clientes que ganham mais de um milhão de reais por mês, graças ao sábio “manejo” das leis e regulamentos. Brasileiros, às centenas, compram agora apartamentos na Flórida, EUA, com dinheiro vivo, “cash”, a sugerir distância das aborrecidas leis fiscais.

Credores de precatórios, no Brasil, atacam a justiça pela demora dos pagamentos, mas não sabem que o crédito fiscal federal, em cobrança judicial, ultrapassa um trilhão de reais — isso mesmo, “tri” —, conforme pesquisa feita pelo Dr. Everardo Maciel. Por que isso acontece? Porque ninguém quer mexer nas brechas processuais que permitem a eternização processual das grandes cobranças. E essa eternização reflete-se na falta de dinheiro para pagamento dos precatórios. Com a necessidade, ou fome, de dinheiro, o Governo Federal descarrega sua necessidade financeira nos assalariados em geral, que não têm como escapar, porque tributados na fonte. Pondere-se, também, que a carga tributária excessiva estimula, indiretamente, o abuso dos recursos protelatórios porque o empresário se sente, com razão, saqueado pelo Governo. O empresário honesto fica pensando: — “Se eu for muito “certinho” sofro desvantagem, em comparação com meus concorrentes. Eles, discutindo e “esticando” ao máximo as cobranças, podem vender seus produtos com preço mais baratos. E sabem que o governo federal, desesperado, acabará inventando um novo Refis, ou coisa equivalente, para pagamento do débito em décadas. Não vale a pena ser honesto neste país...”

A real solução para o problema tributário estaria em algo que não digo aqui porque, embora justíssima, despertaria tanta fúria — fruto da má compreensão, ou malícia de muitos — que o trovão do protesto invalidaria a pequena simpatia que talvez este texto tenha provocado dizendo as verdades acima. Esse “santo milagre tributário” exigiria outro artigo. Verdades são “produtos químicos” que devem ser ministrados em doses quase homeopáticas. Voltaremos a esse assunto.


Francisco Pinheiro Rodrigues                             (21-6-2012)