sábado, 30 de junho de 2012

"Cura" de gays e "preconceito a favor"


 É impressionante o resultado exagerado — por vezes absurdo —, decorrente do uso de uma palavra, em vez de outra, quando se escreve sobre temas polêmicos. “Tempestade em copo d’água” já não retrata — mais adequado seria “revolução” — o que ocorreu quando uma corajosa psicóloga, Rozângela Justino, publicou anuncio propondo tratamento psicológico para homossexuais interessados em retornar à heterossexualidade. 

Não sei se ela usou, nos seus anúncios profissionais, o termo “cura”, mas mesmo que o tivesse usado, não seria o caso de se aplicar contra ela qualquer sanção. Um mero aviso, ou advertência bastaria. Como consequência de sua “audácia” o CFP – Conselho Federal de Psicologia processou — por enquanto ainda não na Justiça —, a referida psicóloga, impondo-lhe a pena de censura pública. Com isso, Rozângela Justino “não pode falar como psicóloga”. Qualquer semelhança com a censura na Idade Média não será mera coincidência. Trata-se de um caso evidente de “preconceito a favor” do homossexualismo.Mesmo que a OMS – Organização Mundial da Saúde diga que o homossexualismo não é doença, desvio ou perversão, o fato elementar é que a liberdade de pensamento e sua expressão— porque seria inútil a liberdade de só pensar, sem poder expressar — não desapareceu. Principalmente quando alguém, com formação científica, manifesta sua opinião. O que não pode, legalmente, é uma psicóloga denegrir, ofender, “xingar” alguém por ter uma ou outra opção sexual. Há que se respeitar, além do mais, o livre-arbítrio, o desejo das pessoas que, por uma razão ou outra, querem voltar ao que eram antes. 

Que há, hoje, um “preconceito a favor” do homossexualismo, parece evidente. Anúncios de cirurgiões propondo mudanças anatômicas de sexo — com mutilações, remoção de órgãos genitais masculinos e enxertos de seios de silicone — são permitidos, ao que presumo. Já li, não sei onde, propaganda de aulas sobre como praticar, fisicamente, a homossexualidade. Tudo isso “pode”. Só não “pode”, segundo o CFP, o contrário: permitir que uma pessoa que “está”, hoje, homossexual, mas sinta que “não é” , volte ao estado anterior. 

Se devemos, legal e moralmente, preservar a liberdade humana, esta deve existir em sua plenitude, nos dois sentidos. Se uma pessoa gorda quer se tornar magra, com orientação psicológica, regime ou cirurgia — ou o contrário —, ninguém tem nada com isso. E para complementar essa liberdade, é necessário ao profissional, como em tudo mais, anunciar. Foi o que fez a injustiçada psicóloga referida. Se, eventualmente — a notícia que li não mencionava esse detalhe — ela usava, nos anúncios, a palavra “cura”, “doença”, “perversão” ou “desvio” seria o caso do CPF convocar a psicóloga para ponderar, ou talvez exigir, que ela alterasse a redação do anúncio, de modo a não conflitar com dispositivos legais, hoje temerosos de aparentar qualquer resquício de preconceito “contra”; esquecidos, porém, como disse, de que o excesso pode levar ao “preconceito favorável”.  

Espera-se que o CFP não chegue ao ponto de proibir, a quem quer que seja, que estude e publique qualquer trabalho científico que mostre, ou tente mostrar, que inúmeros casos de homossexualismo são apenas consequência de traumas físicos e psíquicos, como, por exemplo, o estupro de uma menina. Acredito que uma criança, ou adolescente virgem que foi estuprada e barbarizada, na sua primeira experiência sexual, fique tão traumatizada com a prática heterossexual que será fácil “mudar de lado” quando confortada por uma lésbica que demonstre carinho e respeito por ela e use a técnica adequada para despertar a libido. Porém, se essa mesma vítima traumatizada quiser retornar à heterossexualidade, não tem sentido, nem legal nem moral, que tal pessoa seja proibida de procurar, em jornais ou revistas, uma psicóloga que a ajude nessa alteração. A procura de anúncios de profissionais que façam esse trabalho é mera decorrência dessa liberdade que conta com apoio constitucional. Todo direito pode ser anunciado, desde que não na forma de insulto. 

Assim como uma menina pode se tornar homossexual, por influência, educação e traumas ocorridas na relação heterossexual — há que se evitar, a todo custo, o uso do termo “normal” — o mesmo pode ocorrer com um menino que, vítima de aproveitadores, habituaram-se ao sexo anal. Quando se tornar adulto, esse menino estará proibido de querer voltar à sua condição de heterossexual? O profissional que anuncie essa “conversão” estará proibido de usar a palavra “tratamento”, sob pena de castigo por algum Conselho profissional? 

“Tratamento” não implica, necessariamente, em adesão moral a um preconceito. Um médico que anuncie “tratamento contra azia” não tem preconceito moral contra estômagos e excesso de ácido clorídrico. Nem contra quem sofre desse distúrbio. Quem anuncia “cura” contra tuberculose, ou calvície, não tem preconceito contra tuberculosos ou carecas. O termo “cura” é apenas a palavra usual, tradicional, para tratamentos ou modificações de estados físicos ou condições que incomodam o paciente. Tratamento contra a obesidade não significa desprezo pelos gordos. O mesmo ocorre com o gay que não quer mais ser gay. Ou com o heterossexual que optou, em algum momento, por ser gay, imaginando ter sido sempre essa sua “verdadeira natureza”. Conclusão que pode, em tese, ser fruto de um engano de avaliação e que, por isso, deve ensejar um retorno. Há que se respeitar sua opção, bem como o profissional que se prontifica — via propaganda — a ajudá-lo. 

Espera-se que a Câmara dos Deputados, que debate o assunto, faça a lei que permite aos psicólogos anunciar um serviço que atende ao desejo de liberdade de opção das pessoas. Na verdade, a nosso ver, nem precisaria haver uma lei a respeito mas, como as cabeças variam infinitamente no entender as certas coisas, vá lá que se faça uma lei apoiando o óbvio. 

O desejo de “opção” deve ter mão dupla, do contrário torna-se tirania de minorias. Nada tenho contra os gays, mas que as injustas perseguições que sofreram no passado não se transformem em “preconceito a favor”. Isso municiará os realmente preconceituosos. Alegarão que essa minoria está tirando proveito exagerado do sofrimento passado e até mesmo perseguindo profissões legítimas. 

(30-6-2012)




quarta-feira, 27 de junho de 2012

Assessores (tributários) para juízes e duas sugestões

               O CNJ discute a pertinência de procuradores da Fazenda Nacional atuar como assessores de juízes e desembargadores federais no julgamento de questões tributárias. Tal prática, segundo a mídia, já é autorizada por lei federal mas somente nos tribunais superiores. A OAB-RJ discorda, alegando que essa assessoria quebraria a igualdade entre as partes. 

Com o devido respeito ao posicionamento da combativa OAB-RJ, essa assessoria “estendida” faz-se necessária, de um ponto de vista abrangente, visando a economia do país como um todo. E se fosse complementada com duas alterações legislativas — referida na parte final neste artigo — o problema do vergonhoso atraso no pagamento dos precatórios seria totalmente, ou em grande parte, solucionado. O benéfico efeito ocorreria também, posteriormente, para os contribuintes que pagam seus tributos em dia e só se prejudicam, economicamente, com essa postura obediente — embora revoltada — à legislação tributária. Millôr Fernandes já disse, talvez com outro fraseado, que quem, no Brasil, anda na linha, será atropelado por uma locomotiva. No caso, tributária. 
A excessiva carga fiscal — dos que pagam, subentende-se... — é, em parte, fruto da ineficiente legislação processual que permite, a grandes devedores, reter, por longo tempo — via infindáveis recursos —, uma riqueza que deveria ter sido distribuída, bem antes, entre todos os cidadãos. Como não é, o peso do gasto público cai todo nas costas dos mais “certinhos”. Se todos pagassem seus tributos, no tempo certo, a carga de cada um seria menor. Esqueçamos, porém, as generalidades e examinemos a argumentação. 
Everardo Maciel, respeitadíssimo consultor tributário que foi Secretário da Receita Federal, de 1995 a 2002, escreveu um artigo, “As raízes da corrupção no Brasil” (jornal “O Estado de S. Paulo” de 02—01-12, pág. B-2) dizendo que “Hoje, os débitos inscritos na Dívida Ativa da União ultrapassam a espantosa soma de R$1trilhão. Evidentemente, há algo errado nesse processo”. 
Imaginemos, pessimistamente, que pelo menos metade desse crédito esteja de acordo com a legislação. Com meio trilhão de reais arrecadados, só na área federal, o débito de precatórios poderia talvez desaparecer ou diminuir sensivelmente. E a carga fiscal, como já disse, dos que realmente pagam — principalmente os assalariados que não têm como escapar — poderia ser diminuída. 

É bastante injusto, ou desproporcional, que basta ganhar salário de quatro mil e poucos reais para ser obrigado a um desconto de 27,5% de Imposto de Renda. Isso sem mencionar o desconto previdenciário. Em contrapartida, milhões e milhões de reais deixam de ser recolhidos aos cofres públicos porque milhares de transações, de grande, médio e pequeno vulto, conseguem engenhosamente escapar da legislação. E quando não conseguem e a cobrança chega ao judiciário, a ingênua legislação processual permite ao devedor — calculando o custo/benefício — retardar, por muitos anos, — o pagamento. Quanto mais complexa a questão, maior a demora e a possibilidade de um erro decisório que possibilitará recursos — até mesmo procedentes —, da parte interessada em retardar o processo; normalmente o contribuinte. E tendo razão, mesmo mínima, em seu recurso, o contribuinte não poderá ser considerado litigante de má-fé porque, afinal, tinha razão ao recorrer, mesmo que diminuto o engano de uma quantia mencionada na decisão. 

Como se vê, seria muito útil à comunidade que desde a decisão de primeira instância, esta fosse a mais impecável possível. Se os Tribunais Superiores já contam com a assessoria de procuradores fiscais, essa assessoria deveria, com mais razão, estar disponível bem antes, no “ovo” do processo. 

O leitor pode estar se perguntando: —“Qual a necessidade de assessores para magistrados, em qualquer instância? Eles não são formados em Direito? Essa necessidade de assessores não seria uma confissão de fraqueza profissional, de conhecimento de um ramo do Direito que todos os magistrados deveriam conhecer a fundo? 
A explicação, realista, é simples: nossa legislação é extremamente complexa, extensa, mutável e por vezes contraditória. A própria aridez da matéria tributária desestimula o estudo profundo e agradável de muitos magistrados que preferem conviver com temas intelectualmente mais atraentes. Imagine-se o maior jurista da área penal, ou processual civil, ou constitucional, que seja nomeado Ministro do STF. No momento de julgar, durante alguns meses, complexos litígios tributários, vai se sentir meio perdido. Para não ter que se socorrer sempre do auxílio didático de um colega — que poderia “influenciá-lo” sem querer, na votação — seria melhor que, quando ainda em dúvida, após leitura dos autos, pedisse esclarecimentos tópicos a um assessor com longo tirocínio em questões fiscais. Mesmo que o assessor esteja, involuntariamente, “com a boca torta pelo uso do cachimbo”, suas explicações serão submetidas ao crivo da indispensável desconfiança do magistrado. Este, quando precisa de um assessor geralmente é para melhor conhecer a “mecânica” do negócio tributado e da própria fiscalização. Depois de conhecida o “modus operandi”, já não é tão difícil entender o objetivo da legislação minuciosa. O mesmo acontece quando a questão exige forte conhecimento da informática.
A mídia já mencionou, poucos anos atrás, que nos julgamentos envolvendo problemas de informática na Suprema Corte dos EUA percebia-se — não sei se isso ainda ocorre — uma certa dificuldade dos Ministros em entender alguns argumentos, quando da exposição oral do advogado, já tarimbado, de longa data, no conhecimento do problema do cliente. Essa falta de compreensão exata da questão pode gerar uma injustiça irreparável porque não caberia, no caso, mais recurso. 
Não é de agora a menção, pelos grandes tributaristas brasileiros, de que nossa legislação fiscal é complexa e às vezes confusa. Um grande jurista da área já usou a expressão “carnaval tributário”. Essa “confusão” favorece o devedor que, mesmo, eventualmente podendo pagar o tributo, prefere investir seu dinheiro na ampliação de seu negócio, contando com alguma futura anistia, com prestações a perder de vista. 

A OAB – RJ argumenta que a ajuda aos juízes, por parte de assessores implicaria em quebra de igualdade entre as partes. Na verdade, a presença de tais assessores busca justamente diminuir a desigualdade entre as partes, pelo menos nas questões complexas envolvendo grandes quantias; justamente aquelas que, somadas, explicariam o espanto “trilionário” do consultor Everardo Maciel. 
Grandes devedores dispõem da nata intelectual da advocacia tributária e da ciência contábil. Onde há muito dinheiro em jogo ali atuam grandes inteligências. E os juízes que vão julgar tais casos estão sobrecarregados na condução de milhares de processo, não podendo dedicar enorme tempo para cada uma das demandas que chegam às suas mãos. Além disso, como observa o referido artigo de Maciel, “...os processos inscritos em Dívida Ativa não são adequadamente preparados, no pressuposto de que os magistrados responsáveis pelas varas de execução fiscal supram as deficiências originais”. Ora, quem deve suprir essas deficiências é o próprio Fisco. E quem já trabalhou nessa área — agora assessor de juiz —, terá melhores condições, familiaridade, e tempo, para verificar se os processos foram devidamente preparados, alertando o juiz antes que a falha surta efeito anulatório quando o processo já avançou demais. 

Se, na pior hipótese, o assessor — violando seu dever legal de ser mais fiel ao juiz que ao fisco — tiver influenciado demais o juiz na sua decisão, quando do julgamento do recurso a decisão será reformada, não havendo prejuízo para o devedor. A demora decorrente do recurso contra a decisão errada até mesmo beneficia — financeiramente, com a simples demora —, o contribuinte, que usou seu dinheiro de forma mais lucrativa que pagando tributos. 
Concisamente, mencionaremos agora, em termos gerais, duas medidas legais — tremendamente polêmicas, mas adequadas — que teriam enorme utilidade para distribuir com mais justiça, o peso da despesa pública. 

A primeira: Ou transformar em lei a sugestão do Min. César Peluso, encerrando o processo de conhecimento com o julgamento do caso na segunda instância (o inconformado com a decisão poderia, depois, se fosse o caso, mover ação rescisória). É uma proposta sensata mas que parece não contar com suficiente apoio do Congresso). Ou adotar a “sucumbência recursal”, pela qual em todo recurso processual cível haveria a imposição de nova sucumbência — contra a parte vencida no recurso ou, no mandado de segurança com efeito de recurso —, no valor mínimo de 5% do valor da casa. Isso desestimularia o uso de recursos protelatórios. Esclareça-se que a lei instituindo a “sucumbência recursal” diria que o recorrente poderia ser dispensado de nova condenação em honorários quando o Tribunal considerasse que o caso merecia um reexame, mesmo o recorrente tendo perdido o recurso. 
A segunda proposta, ainda mais polêmica, mas certíssima, pelo alcance e simplicidade: a lei obrigaria que em todo pagamento, com cheque ou cartão (de crédito ou débito), um determinado percentual da quantia paga — digamos meio ou um por cento — fosse debitada na conta do recebedor da quantia. Em compensação — em compensação, calma, leitor! — três meses depois de instituído esse sistema de arrecadação, o governo reduziria a carga fiscal federal, hoje existente, na mesma proporção do aumento de arrecadação ocorrida com essa nova proposta da falecida “lei do cheque”. 
Qual a justificativa para essa alteração legislativa? É que essa lei revelaria o verdadeiro fluxo da riqueza expressa em dinheiro. O imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas seria reduzido e não veríamos inúmeros casos de pessoas riquíssimas que pagam — quando pagam... —, quantias mínimas à Receita. Alguém dirá que os mais espertos optarão para só transacionar com dinheiro vivo. Esse engano terá curta duração porque os assaltantes também são “vivos” e o transporte de grandes somas em sacos, malas e pastas se tornará muito arriscado. 

Lendo notícias, em jornal, sobre a venda de imóveis (hoje baratos) na Flórida, um detalhe que me impressionou: os brasileiros são os maiores compradores e, “curiosamente” preferem pagar o preço com dinheiro vivo, não com cheques, como seria o usual. Tanto dinheiro em forma de verdinhas é um bom indício de sonegação. 

Para finalizar, esse novo “imposto do cheque e cartão” teria a vantagem de ser insonegável, preservando da virtude de todos os funcionários públicos que mexem com dinheiro. 
Sei que a proposta acima assusta, e até revolta, mas se houver uma campanha de esclarecimento, por parte do governo, e a população tiver certeza — certeza! — de que seu imposto de renda será substancialmente diminuído — podendo essa diminuição ser estendida a impostos estaduais e municipais, o apoio à novidade superará a rejeição. Contribuintes que hoje pagam religiosamente seus impostos deveriam apoiar essa alteração legislativa, porque, como já disse antes, se todos pagassem tributos, todos pagariam menos. 

(27-6-2012)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O país exige, na justiça, a verdade real.



Com a liberdade de imprensa, melhoria na alfabetização, proliferação dos computadores e maior acesso à informação, cada vez mais as pessoas inteligentes e honestas se interessam pelos detalhes e bastidores da infindável batalha “entre o bem e o mal”.

Todos sabem, em “termos práticos”, sem sofisticação filosófica, o que seria o “bem”: uma conduta honesta, sem mentiras, sem ver em cada homem ou mulher um trouxa a ser saqueado em sua bolsa, pudor ou honra; senso de responsabilidade no trabalho, mesmo quando mal remunerado; boa educação — pela pregação e exemplo — dos filhos (e netos...); a capacidade (dolorosa) de resistir às embriagadoras vantagens financeiras oferecidas pelo crime organizado ou elegantes atividades assemelhadas; coragem, franqueza e boa-intenção — pelo menos —, dos homens públicos. E tudo o mais que o leitor de boa formação sabe, intuitivamente, mesmo sem nunca ter lido qualquer livro escrito por sisudo moralista. 

O que seria o “mal”, as pessoas também sabem o que é. Basta reler o parágrafo acima e pensar no oposto do que foi exemplificado como “bem”. 

O título sugere — no “exige” — a possibilidade de opção entre a verdade real e outra verdade qualquer, que não seja a real. Qual seria, no caso, essa outra opção? Obviamente, a “verdade legal”, contida na legislação e nas decisões judiciais. Uma “verdade” que pelo menos não insulte a inteligência. 

Estas considerações surgem a propósito de recente decisão da 3ª. Turma do TRF da 1ª Região, negando, por dois votos contra um, o pedido da defesa de um contraventor, “Carlinho Cachoeira”, que pedia a anulação das escutas e provas decorrentes na chamada “Operação Monte Carlo”. Os negadores do pedido, desembargadores Cândido Ribeiro e Marcos Augusto de Sousa, certamente foram entusiasticamente aplaudidos, em pensamento, por milhares de pessoas preocupadas com a onda de impunidade que varre o país e não parece com vontade de refluir. 

A defesa fundamentou o pedido de nulidade de todas — todas! — as provas alegando que as investigações da Policia Federal começaram por causa de uma denúncia anônima. 

Absurdo — sob qualquer luz, leiga ou jurídica —, o fundamento de que uma longa e exaustiva investigação seja anulada só porque se iniciou com denúncia anônima. Mesmo pessoas desinformadas sabem que apontar ilícitos de qualquer homem poderoso, rico e ligado a atividades ilegais, é extremamente arriscado. É praticamente um suicídio, morte certa “em circunstâncias pouco esclarecidas”. Principalmente em um país, como o Brasil, em que é baixíssimo o percentual de homicídios desvendados. Quando desvendados, poucos são os que cumprem pena porque as “nulidades” pululam como bactérias. E, quando condenados, existe sempre uma esperança de que possam fugir por um túnel ou, calmamente, pela porta da frente do presídio, ou desaparecendo quando libertado provisoriamente, via habeas corpus, por poucos dias, o que explica o alto índice de homicídios. Com a péssima distribuição de renda não é difícil encontrar um miserável viciado que aceite matar alguém por três ou quatro salários-mínimos. 

 A Constituição Federal proíbe a pena de morte e a de prisão perpétua; a legislação penal e a processual são frouxas; a jurisprudência é benevolente e submissa demais ao que pensam e decidem alguns magistrados influentes que exigem o trânsito em julgado — quase “dia de são nunca” — de condenações para deter os acusados, apenas preventivamente, antes da condenação final, após infindáveis recursos. As testemunhas têm medo de depor, e os próprios juízes e promotores são ameaçados quando mostram real disposição de aplicar a lei. No caso da Operação Monte Carlo o juiz Paulo Lima — que autorizou a escuta telefônica e segue o caso do contraventor Cachoeira —, pediu para ser afastado do processo porque se sente ameaçado, juntamente com sua família. Prefere ser um juiz vivo que um herói morto. E quem o substituiria negou-se a ficar com o processo porque mantinha relações sociais com membros da família de um dos réus.  

Se os próprios agentes públicos, encarregados de aplicar a lei, não se sentem seguros quando o réu é contraventor poderoso e ousado, o que se dirá de um “homem do povo”, sem qualquer proteção individual ou estatal, que tem conhecimento pessoal de alguns “podres” e quer revelar o que sabe? Não seria até mesmo impatriótico ele deixar de delatar o caso, mesmo anonimamente, a quem de direito? A única solução, inclusive moral, em favor da sociedade, é fazer a denúncia anônima. Não esquecer que mesmo a denúncia anônima pode implicar em risco pessoal, porque uma falha qualquer no uso do anonimato pode levar o investigado a deduzir quem foi o autor da denúncia: — “Só aquele Fulano poderia saber desses fatos...”. E o denunciante, pouco depois, será vítima de algum acidente fatal, ou “por ter, talvez, reagido a um assalto”, como dirão os jornais. 

É preciso que a população saiba que a Polícia Federal não lê as denúncias anônimas como os religiosos leem a Bíblia, presumindo que são sempre verdades sagradas. A Polícia não tem a intenção de se desmoralizar, fazendo investigações idiotas. Principalmente quando o delatado é pessoa respeitada e temida. Tais denúncias são analisadas e cotejadas com outros informes. Constatada a alta possibilidade de que existe o fato denunciado, a autoridade policial inicia formalmente a investigação. Sem alarde, porque este até favoreceria o possível criminoso, que tomaria providências judiciais contra a precipitação da autoridade investigadora e esconderia ou destruiria provas incriminadoras.  No caso, já referido, da Operação Monte Carlo, os dois desembargadores — Cândido Ribeiro e Marcos Augusto de Souza — mencionam, em seus votos, que a escuta telefônica foi feita porque havia policiais trabalhando no esquema da organização criminosa e eles logo alertariam seus patrões, que passariam a controlar seus diálogos. 

Nessa Operação não houve, portanto, qualquer ilegalidade. As escutas foram previamente autorizadas por juiz, como exige a Constituição. E argumentar que o juiz, para autorizá-las, deveria “fundamentar” sua decisão, com fatos e longas considerações, seria inverter o significado das escutas telefônicas. Se a polícia já tivesse as provas de que necessita para o promotor apresentar a denúncia, já não precisaria pedir escuta ao juiz. E o juiz geralmente não tem conhecimento direto e pessoal das infrações. Não lhe caberia agir como detetive para colher, ele mesmo, a prova solicitada pelo delegado. Por isso, defere a escuta, em procedimento sigiloso, com isso até preservando a imagem do suspeito. 

A população brasileira já não tolera ouvir na TV, ou ler em jornais, notícias de que longos e dispendiosos trabalhos de investigação — autorizados pela justiça, com provas importantes —, sejam, com rápida “canetada”, totalmente anulados. 

A comunidade mais lúcida interpreta — certa ou erroneamente — essa tendência judicial como disfarçada simpatia para com alguns privilegiados criminosos do colarinho branco, “acima do bem e do mal”. Discorda, com total razão, da errônea separação entre as verdades “de fato” e as de “direito”. Entende que a verdade só pode ser uma só. O tal “fruto da árvore envenenada” — esquisita criação da doutrina americana —, desperta a suspeita de que o que está envenenado não é o “fruto”, mas o próprio jardineiro criador da socialmente lesiva teoria. 

 Dou um exemplo, nítido e propositalmente exagerado dessa má doutrina: o pai de um rapaz que foi morto por uma organização criminosa, inconformado com a inércia ou conivência da polícia na investigação, resolve, ele mesmo, disfarçado em funcionário, visitar as instalações da organização, no caso um frigorífico. Sem autorização judicial, grava conversas e penetra, com máquina fotográfica e filmadora, na sede da organização criminosa. Ali descobre, filma e fotografa, em câmaras frigoríficas, dezenas de cadáveres com marcas de tortura e tiros, bem como pedaços de corpo humano que estavam sendo moídos e transformados em ração para cães e gatos. Leva depois, às autoridades, uma amostra da lúgubre “ração” bem como fotos, filmes e gravações. E as provas mostram-se isentas de adulterações técnicas. 

 Pergunta-se: todo esse convincente material probatório não teria nenhum valor legal porque tanto a escuta telefônica quanto a entrada do cidadão no “açougue” não foram autorizadas por decisão judicial? Que o ousado “Sherlock Holmes” amador receba um advertência, ou pequena multa, ainda vá lá, mas que se diga que toda a prova colhida no local “não existe”, não pode ter qualquer efeito legal, é algo tremendamente lesivo à reputação judicial. É uma desmoralização. As verdades legais e reais devem coincidir ao máximo, mas quando não coincidem, que prevaleça a verdade real, porque não vivemos no mundo da lua. Não fosse a “bisbilhotice” dos “focas” da imprensa investigativa, o Brasil continuaria na mais santa ignorância das roubalheiras que sugam a economia e o bem estar de sua população mais pobre. 

Jurisprudências afrontosas do senso comum, da óbvia realidade, induzem os jurisdicionados a ver a justiça como algo bem inferior ao que deveria ser. Com o tempo as ordens judiciais serão cada vez mais desobedecidas. Em greves no serviço público de transporte os sindicalistas já não se preocupam com exigência de número mínimo de veículos em circulação. Invasores de área não obedecem às reintegrações de posse de áreas. Sabem que são em maior número que os policiais que acompanham os oficiais de justiça. Além disso, argumentam, “a justiça só defende o interesse dos ricos”, tal é a imagem que o povo faz da atividade jurisdicional. Opinião errada no que se refere à vasta maioria dos juízes brasileiros, silenciosas mas sem força. 

Já tarda a organização dos magistrados visando reconquistar a posição de prestígio — justo, merecido —, que desfrutava algumas décadas atrás. É preciso formar um lobby bem atuante no Congresso Nacional, não — insista-se — para pleitear aumento de vencimentos, mas para propor alterações legislativas, principalmente na área processual, diminuindo a impunidade, não só criminal. 

Se a população voltar a confiar na eficácia da justiça ficará até brava quando alguém levantar críticas contra eventuais “penduricalhos” dos juízes. Um contador, meu conhecido, disse-me que eu pago mais imposto de renda que alguns de seus clientes que ganham mais de um milhão de reais por mês, graças ao sábio “manejo” das leis e regulamentos. Brasileiros, às centenas, compram agora apartamentos na Flórida, EUA, com dinheiro vivo, “cash”, a sugerir distância das aborrecidas leis fiscais. 

Credores de precatórios, no Brasil, atacam a justiça pela demora dos pagamentos, mas não sabem que o crédito fiscal federal, em cobrança judicial, ultrapassa um trilhão de reais — isso mesmo, “tri” —, conforme pesquisa feita pelo Dr. Everardo Maciel. Por que isso acontece? Porque ninguém quer mexer nas brechas processuais que permitem a eternização processual das grandes cobranças. E essa eternização reflete-se na falta de dinheiro para pagamento dos precatórios. Com a necessidade, ou fome, de dinheiro, o Governo Federal descarrega sua necessidade financeira nos assalariados em geral, que não têm como escapar, porque tributados na fonte. Pondere-se, também, que a carga tributária excessiva estimula, indiretamente, o abuso dos recursos protelatórios porque o empresário se sente, com razão, saqueado pelo Governo. O empresário honesto fica pensando: — “Se eu for muito “certinho” sofro desvantagem, em comparação com meus concorrentes. Eles, discutindo e “esticando” ao máximo as cobranças, podem vender seus produtos com preço mais baratos. E sabem que o governo federal, desesperado, acabará inventando um novo Refis, ou coisa equivalente, para pagamento do débito em décadas. Não vale a pena ser honesto neste país...”

A real solução para o problema tributário estaria em algo que não digo aqui porque, embora justíssima, despertaria tanta fúria — fruto da má compreensão, ou malícia de muitos — que o trovão do protesto invalidaria a pequena simpatia que talvez este texto tenha provocado dizendo as verdades acima. Esse “santo milagre tributário” exigiria outro artigo. Verdades são “produtos químicos” que devem ser ministrados em doses quase homeopáticas. Voltaremos a esse assunto.



(21-6-2012)  












terça-feira, 19 de junho de 2012

"Criônica", o congelamento de pessoas


Por volta de 2003 publiquei o longo artigo que se vê abaixo, sobre o congelamento de pessoas. Pouco anos depois, publiquei um romance sobre o mesmo assunto, "Criônica", que, por razões que não importa mencionar, não teve distribuição. Talvez porque, à época, o assunto não despertasse interesse. Seria muito "lúgubre".

 

Com o caso judicial recente, em que uma moça, Lígia Cristina de Mello Monteiro, pretende congelar o corpo do pai, falecido com 83 anos, nos EUA - com forte oposição de duas irmãs, fruto do casamento anterior do falecido - o assunto "congelamento de seres humanos" adquiriu grande relevo.

Considerando o interesse da matéria, acho oportuno publicar, neste espaço, o mesmo artigo que não precisa ser atualizado, no geral, pois o tema não evoluiu muito nesses anos decorridos. Observo que antes de escrever o artigo e depois o romance, estudei a literatura disponível. O romance, por sinal, tornou-se uma mescla de ficção e divulgação científica, o que talvez tenha desestimulado sua divulgação, porque, cá entre nós, o público brasileiro não é muito inclinado a leituras que exijam algum trabalho. Há, porém, muitos que até se interessam  por abordagens sérias de temas complexos, embora mesclados com ficção, tendo em vista a necessidade de um enredo. Na parte "científica" não há ficção. O romance  não se enquadra como "ficção científica", uma literatura que não desperta em mim qualquer entusiasmo, porque é absurda demais.


O artigo referido está logo abaixo.


O Congelamento de Pessoas.

 

Quando Alberto Santos Dumont, em 23 de outubro de 1906, nos campos de Bagatelle, Paris, conseguiu erguer no ar seu fantasmagórico e desajeitado "14–Bis", não podia imaginar que naquele momento lançava as sementes de um futuro ramo do Direito, o Aeronáutico, aceito como autônomo nas mais recentes constituições brasileiras.


                   Espantoso é saber, hoje, que no segundo vôo, em 12 de novembro no mesmo ano, o aparelho percorreu 220 metros, em 31 segundos, na "vertiginosa" altura de dois metros. Foi o primeiro vôo controlado do homem. Uma velocidade —  37,50 km/h — ligeiramente inferior, claro, à do "tataraneto" do "14-Bis", o supersônico Concorde.


 A evolução, como se vê, foi rápida. Já em maio de 1927 Charles Lindemberg realizava a primeira travessia aérea do Atlântico, no sentido oeste - leste, a comprovar a velocidade criativa do ser humano, pelo menos na área técnica.

                   Quem, eventualmente, assistiu algum filme documentário sobre a história dos foguetes certamente terá se espantado com o desnorteamento desses primeiros artefatos que, contrariando os cálculos dos engenheiros, mais pareciam gigantescos busca–pés sem vara, destituídos da mais remota noção do lugar em que poderiam cair. Nesses antigos documentários é impossível deixar de rir — não obstante o trágico da situação — quando se observa a velocidade de fuga das pernas dos técnicos, engenheiros e operários —  muito superior, no chão, à do "14 – Bis", no ar. Filmados de certa distância, os homens parecem formigas desesperadas, fugindo do provável local de impacto da máquina louca e mortal, porque carregada com toneladas de combustível.

                   Não obstante este difícil começo, em 1969 a "Apollo 11", nave tripulada, pousava no Mar da Tranqüilidade, Lua. Algo, inicialmente, para muitos — mesmo com formação científica — inconcebível, porque os foguetes espaciais não possuem aletas que possam influir no seu direcionamento. No vácuo as aletas são inúteis. Como já observou alguém, o ar é inimigo do foguete e o vácuo é inimigo da aeronave. E não esquecer que quando o foguete é acionado, o nosso planeta não está imóvel. A velocidade de rotação da Terra é significativa. Só não somos centrifugamente "cuspidos" para o espaço por causa da gravidade. Um mínimo erro de cálculo no projeto e a tripulação da espaçonave perder-se-ia no imenso vazio, numa viagem sem volta. Como calcularam, sem erro, tal viagem? Hoje, a tarefa é café pequeno, comparada ao projeto de enviar nave tripulada ao planeta Marte.

                    Os "malucos" do foguete — não esquecer o principal, o alemão Von Braun —  não sabiam, à época, que lançavam não só seus foguetes como também as bases de outro ramo do Direito, o Espacial, igualmente alçado ao reconhecimento do legislador constituinte( art. 22 da Constituição Federal de 1988).

                    Von Braun era tão importante para os previdentes norte-americanos — que pouco sabiam, então, da tecnologia dos foguetes —que as bases de lançamento das "V-2" (foguetes que castigavam Londres na 2ª  Guerra Mundial) poderiam ser destruídas  pela aviação inglesa, desde que poupados os dormitórios que abrigavam os cientistas. Detalhe que dificultava a tarefa dos pilotos britânicos, obrigando-os a se aproximar perigosamente na seleção dos alvos. Mas os ingleses, embora contrariados com a restrição, provaram ter boa pontaria. Von Braun e seus colegas escaparam dos bombardeios e, finda a guerra, foram requisitados para trabalhar nos Estados Unidos, apressando a conquista espacial.

                    Um avanço tecnológico que, suponho, ainda vai abalar nossa civilização — com reflexos óbvios na área jurídica —, talvez em escala muito mais profunda que a invenção do avião e do foguete, está na utilização do frio como forma de preservação de corpos humanos, afetados por graves acidentes ou moléstias no momento incuráveis.

Se não nossos filhos, pelo menos nossos netos bacharéis terão que coçar a cabeça e criar normas jurídicas para disciplinar o espinhoso campo da criogenia, ou criobiologia, no item de conservação de seres humanos  em temperaturas extremamente baixas, para descongelamento futuro. Haverá, consequentemente, em remoto futuro, um "Direito Criônico".

                     A conservação, pelo frio, de frutas, carnes, peixes, sêmen, ou óvulos fertilizados é, hoje, algo rotineiro. Tais atividades referem-se à criogenia. Todavia, para a "ciência", ou técnica — ainda incipiente — de conservação de seres humanos não foi ainda cunhado um específico termo, no nosso idioma. E o caminho natural para esse "batismo" parece ser o aportuguesamento da palavra inglesa "cryonics", adotada por Robert Ettinger, professor de Física norte americano, no seu livro "The Prospect of Immortality", publicado em 1964. O acesso a informações sobre esse tema,  na Internet, só é possível digitando-se a palavra  "cryonics".

    "Criônica", portanto, será a provável denominação dessa novíssima área de pesquisa. De qualquer forma, a palavra é o que menos importa, não tendo o signatário objeção ao uso de qualquer outro termo, melhor escolhido por mentes autorizadas do mundo acadêmico.

Mesmo  o leitor mais tolerante deve estar se perguntando: —  O que leva o autor deste artigo a procurar tão esdrúxula matéria? Não estaria o tema melhor localizado em uma revista de Ficção Científica?

Realmente, o assunto cabe nos dois espaços. E também no médico. Pondero, a título de justificação, que os bacharéis também têm o direito de especular com o futuro; embora o Direito, normalmente, só seja lembrado depois do trabalho pioneiro dos cientistas e inventores. E assim mesmo quando surgem os primeiros conflitos de interesse. O Direito é como o "leão de chácara", ou o agente policial: só é convocado após as primeira brigas no baile. Como, no Brasil, pelo menos, não houve ainda qualquer conflito jurídico relacionado com o congelamento de pessoas, para revivificação futura é natural que aqui se desconheça até a palavra. E satisfaço a curiosidade do leitor quanto à origem do aparecimento do tema.

Vários meses atrás li, nas notícias internacionais de um jornal paulistano, que uma senhora inglesa, portadora de doença incurável — a notícia era muito sumária, quase telegráfica —, havia procurado uma firma especializada em congelamento de coisas vivas em nitrogênio líquido — 196 graus centígrado negativos. Pretendia manter-se congelada até o momento em que a ciência estivesse em condições de, não só curar sua doença, como também de reparar os danos causados pelo prolongado congelamento.

Dizia, ainda, o jornal, que o preço exigido para a conservação do corpo inteiro era elevadíssimo — salvo engano do jornal, oitocentos mil dólares. Assim, não dispondo de tal quantia, referida senhora contratou a empresa para que conservasse apenas a cabeça ("neurosuspensão"), o que implicaria na redução dos custos para trezentos mil dólares. Confiava, certamente, na possibilidade futura, embora remota, de "transplante de corpo".

Aparentemente, referida senhora pagou caro, porque atualmente, no Arizona, EUA, uma entidade denominada "Alcor Life Extension Foundation" cobra cento e vinte mil dólares para a conservação de um corpo inteiro. Redução que parece ser um grande avanço, em termos de incentivo à difusão da idéia e presumindo-se que se trate de entidade séria. O exótico da iniciativa, por si só, não implica em desonestidade porque freqüentemente presenciamos novidades impensáveis poucas décadas atrás. E pelo que tenho lido, um grande entusiasmo contagia os interessados em transformar a mera possibilidade em realidade.

                   Como se tratava de uma notícia sobre fato real, não uma brincadeira de ficção científica, ou literatura de horror — a menos que se cuidasse de pouco provável irresponsabilidade do jornal  —   interessei-me pelo problema como tema para futura obra de ficção, sem pensar nos desdobramentos jurídicos.

                   Procurando material informativo, a primeira providência natural seria dirigir-me às livrarias especializadas em Medicina, mas as funcionárias de plantão nem mesmo sabiam do que se tratava. Desconheciam até as palavras.

                    Através da "Livraria Cultura", que lida com livros importados, fiquei ciente da existência de um livro, "The First Immortal" ( "O Primeiro Imortal"), de James L. Halperin, editora Del Rey. Trata-se de um romance, obra de ficção, mas que poderia trazer algumas primeiras informações. Afinal, seria preciso começar a pesquisa por algum lugar. À míngua de obras "sérias" — jurídicas, nem pensar!— a solução seria iniciar pelo tal livro.

                        Ao iniciar a leitura não esperava é que o autor da obra fosse tão aberto, tão sinceramente entusiasta de um tema cujo simples enunciado provoca imediata reação de incredulidade O autor mostrava-se absolutamente confiante quanto à real utilidade dessa nova tecnologia, que mexerá com a profunda fome de eternidade que assola o homem desde o momento em que começou a refletir sobre a perspectiva da morte. Ao contrário de muitos autores que, se "fecham" quando encontram um novo filão, James Halperin menciona, no livro, todas as fontes informativas, possíveis e imagináveis, dando endereços completos e praticamente oferecendo a casa dele para receber as visitas dos interessados no assunto.

Da leitura do livro e de outras fontes, via Internet, conclui-se que as entidades que iniciaram, efetivamente, essa atividade pioneira — ditas sem fim lucrativo, não sei se todas, e que não relaciono aqui porque não visitei pessoalmente nenhuma delas —,  admitem que até agora não conseguiram a "vivificação", digamos assim, de nenhum dos "pacientes" ( eles utilizam essa palavra, jamais "cadáveres", "defuntos", ou termos semelhantes).

Os adeptos da revolucionária novidade apoiam-se na possibilidade teórica da preservação das células, na temperatura do nitrogênio líquido — 196 graus Celsius negativo, como disse — até o momento em que não só a doença do paciente for facilmente curada como também revertidos os danos causados pelo esfriamento. E com o "bonus" eventual de um indefinido prolongamento da vida,se detido ou parcialmente revertido o processo de envelhecimento.

Que o frio extremo paralisa a atividade das toxinas destruidoras das células, não é novidade. Em regiões geladas, há casos de pessoas encontradas aparentemente mortas, com grave hipotermia, congeladas por algumas horas, e que, convenientemente aquecidas e com auxílio de medicamentos conseguem voltar ao estado normal. E, como disse, o congelamento de esperma, de bovinos e humanos também é procedimento cientificamente banal, não havendo indícios de que bezerros e  pessoas concebidas com esperma congelado sejam  de alguma forma inferiores àquelas concebidas normalmente.                      

O grande problema técnico da criônica — adotemos, pelo menos por enquanto, essa denominação — reside no fato de nossas células conterem um alto percentual de água. Quando a água se congela formam-se cristais, dotados de arestas que perfuram a membrana celular. Ao que deduzi, no processo de descongelamento a água "vaza", congelando-se do lado de fora das células, entre elas. Com a conversão da água em cristais de gelo há um processo de dilatação, algo parecido com a ruptura dos canos que levam a água das ruas até as residências, nos países de clima frio.

Para minimizar tais danos celulares, as entidades que atualmente congelam seres humanos retiram o sangue do indivíduo imediatamente após o seu falecimento, injetando em suas artérias e veias uma substância chamada glicerol, que suaviza o problema da formação dos cristais. E  impregnam os corpos com anticongelantes, permitindo que a água permaneça em baixíssimas temperaturas sem o congelamento ( é, pelo menos, o que dizem). Tais anticongelantes exerceriam função semelhante àquela exercida por seus equivalentes usados em radiadores de veículos, nos climas gelados.

Os entusiastas da criônica apostam na invenção de uma técnica futura que resolva esse problema dos cristais de gelo. Problemas muito maiores, dizem eles, já foram solucionados pela humanidade. Por que apenas esse seria insolúvel?

Outra abordagem dos novos desbravadores está na utilização futura da nanotecnia, ou nanotecnologia, isto é, a técnica de elaboração de "máquinas" microscópicas que, injetadas imediatamente após o descongelamento, reparariam, uma por uma , as células danificadas. Quem, ao que sei, mais desenvolveu as especulações a respeito dessa ultra-revolucionária perspectiva — a nanotecnologia, reconstrução das coisas em nível molecular — é um cientista de nome Eric Drexler, que publicou um livro denominado "Engines of Creation", e um trabalho mais técnico chamado "Nanosystems".

O uso da nanotecnologia ( "nano" vem de "anão") para reparação de milhões de células danificadas pelo congelamento já é algo mais duro de "engolir", intelectualmente. A confecção de tais "máquinas" parece-me coisa para se pensar somente em futuro remotíssimo, bem além de um século. É certo que a engenharia genética já trabalha a nível molecular, alterando a  posição dos  genes dentro dos cromossomos, mas é pedir demais acreditar que tão cedo se possam criar essas microscópicas "máquinas" — ainda mais feitas de proteína! —, aptas a consertar, uma por uma, as células danificada.

Os defensores dessa nova técnica, a nanotecnologia — que seria, na Biologia, e demais áreas, mais revolucionária que o "chip" do computador — argumentam que alguns seres microscópicos, os vírus, já fazem, “naturalmente”, tais operações celulares, sem qualquer “formação” universitária. Esses minúsculos seres grudam-se à membrana de uma bactéria, fazem nela um orifício, injetam seus DNAs dentro da bactéria e esta passa a gerar, não novas bactérias, mas novos vírus. Tornam-se "fábricas", ou "úteros", de vírus invasores. E  os glóbulos brancos são eficientes policiais em luta constante contra bactérias. Só perdem a batalha quando o número de atacantes é muito superior à capacidade defensiva.

Como a natureza consegue criar tais engenhosidades é realmente um mistério. Pessoas religiosas têm um nome para isso, Deus, enquanto os cientistas agnósticos ficam pensando, intrigados com o fenômeno. Parece-nos demais aceitar que nós, humanos, possamos fabricar e instruir uma "maquininha" capaz de “reparar” células danificadas pelo frio, ou provocar a formação de réplicas sãs dessas mesmas células, quando irreparavelmente destruídas. Parece-nos tarefa científica para um futuro remotíssimo, se é que chegaremos lá um dia. Mas quem arriscaria todo o seu patrimônio na aposta de que tais “maquininhas” não sejam construídas nos próximos quarenta anos, com a nova técnica da nanotecnologia? Estados Unidos e Japão investem pesado nessa área, o que basta para o cético por suas barbas de molho e não arriscar demais em qualquer aposta.

Nada a opor, entretanto, quanto a essa ambiciosa intenção de utilização da nanotecnologia para o conserto de células danificadas. O mundo nada tem a perder, exceto tempo, com tais projetos e tentativas. Particularmente, arrisco meu palpite mais na possibilidade da ciência resolver o problema da danificação das células congeladas de outro modo: impedindo a formação dos cristais.

Alguém, com senso prático, poderá perguntar: Como é que existem pessoas, nos EUA. que arriscam seu dinheiro nessa aventura quando os próprios técnicos confessam que a ainda não "ressuscitaram" um só paciente? Nem mesmo um gato foi “revivido”.

A explicação é simples. Se o paciente sofre de moléstia incurável, apenas aguardando a morte para breve, com enterro ou cremação, o percentual de chance de voltar à vida é zero. Se, entretanto, for congelado, e "acordado" daqui a cinqüenta ou cem anos, a chance será superior a zero, porque a evolução científica é rápida e imprevisível. Em teoria, pelo menos, é perfeitamente concebível um rápido congelamento, seguido da volta ao "status quo", desde que descoberta a técnica adequada e consertados os danos causados pelo frio. Enquanto perdurar o congelamento não há qualquer apodrecimento dos tecidos.

Em 1966 um cientista japonês, Isamu Suda, congelou o cérebro de um gato após impregná-lo com glicerol. Um mês depois, descongelou cuidadosamente o órgão. Submetido a um eletroencefalograma o aparelho registrou “traços’ de algumas funções cerebrais. É pelo menos o que diz uma página da Internet, "A Short History of Cryonics", de autoria de Charles Platt. A tese do japonês, segundo o mesmo autor, teria sido publicada na revista "Nature", periódico de bom conceito no campo da Biologia.

Há também uma boa justificativa, ou desculpa, para não se descongelar, hoje, pacientes mantidos em refrigeração: trata-se de pessoas portadoras de males incuráveis, quase sempre cancerosas, doença para a qual ainda não existe tratamento seguro. Descongelar pacientes, no momento, a título de demonstração — com imediato apodrecimento —, seria irresponsabilidade e quebra de contrato. O compromisso da entidade é de descongelar o “cliente” apenas quando a sua doença for perfeitamente curável, quando será aplicada a técnica capaz de reverter os danos causados pelo próprio frio. É preciso lembrar que o frio extremo também pode provocar fraturas.

Ao que dizem os entusiastas da criônica, alguns cães foram descongelados, aparentemente sem dano, mas somente poucas horas após o congelamento. Uma afirmação que se precisaria conferir.

Um problema que ainda amarra a difusão dessa inusitada — os espiritualistas diriam “aberrante” — tentativa de sobrevivência física após a morte está no custo financeiro. As entidades que inicialmente se dedicavam a essa atividade recebiam dos parentes do paciente a promessa de uma contribuição mensal para o custeio do serviço de conservar  o corpo em nitrogênio líquido. Por mais isolado, termicamente, que fique o corpo nas suas caixas —"dwar" —, um pouco de calor ambiente penetra no recipiente de alumínio, evaporando parte do nitrogênio, que mantém o frio. Assim, é preciso, com certa periodicidade, acrescentar mais nitrogênio líquido, o que custa dinheiro, se bem que não muito pois o nitrogênio, em si, é muito abundante na natureza..

A experiência, entretanto, comprovou que essa sistemática financeira não era adequada. Os parentes do "morto" logo perdiam o interesse de aplicar recursos em algo tão incerto — e conflitante com seus próprios interesses. Se "o velho doido realmente acordar" — eles pareciam pensar — será que não vai exigir o dinheiro da herança de volta?". Assim, sem recursos para a manutenção dos corpos os pacientes acabavam descongelando parcialmente.

Em 1978 surgiu uma demanda nos EUA que abalou severamente a já exígua confiança da população nessa história de congelar pessoas. O episódio ficou conhecido como "O Escândalo de Chatsworth".

Robert Nelson, o primeiro "crionauta", grande entusiasta do assunto, talvez um homem honesto — anteriormente simples consertador de aparelhos de televisão —, foi o fundador da "CSC – Cryonic Society of California". De boa ou má-fé — desconheço as minúcias do caso —, foi acusado, pelos parentes de um dos pacientes, de negligência na conservação dos corpos, permitindo que os mesmo se danificassem. Jornalistas, policiais e legistas obtiveram autorização judicial para examinar os porões da empresa e constataram que os corpos estavam apenas parcialmente congelados, o que resultou na condenação da CSC a pagar alta indenização, juntamente com o agente funerário que o ajudava nos trabalhos de preparação dos pacientes.

No processo, Robert Nelson alegava que a acusação contra ele viera dos mesmos parentes que não pagavam a manutenção dos pacientes, não cabendo, assim qualquer dano moral. E os parentes acusados argumentavam que não pagavam justamente porque não confiavam na seriedade do negócio. Ao que deduzo — porque não tenho como examinar o caso a fundo —  a questão se tornou semelhante à velha disputa filosófica, de sabor popular, sobre a antecedência existencial do ovo ou da galinha.

De qualquer forma, o caso teve repercussão ruinosa à reputação da criônica, mas serviu para provar o equívoco da sistemática de se deixar para os parentes do "morto" a incumbência de pagar a manutenção do paciente. Assim, os incansáveis entusiasta da novidade passaram a exigir pagamento adiantado.

A nova técnica financeira, todavia, apresentava a desvantagem de exigir uma verba alta para algo tremendamente incerto. E os parentes "do velho maluco" tinham bons motivos para se opor a esse desfalque em suas vivas — em todos os sentidos — perspectivas financeiras. Mesmo porque, convenhamos, a tese do congelamento de pessoas é campo propício aos espertalhões de todo o gênero. Como saber se o "empresário do gelo" está mesmo agindo de boa-fé? Quem garante que a "firma sorveteira” — assim devem ter se expressado seus inimigos — vai estar operando daqui a vinte, trinta, cinqüenta  anos?

Novamente, os ousados norte-americanos encontraram uma saída financeiramente mais engenhosa: o paciente, bem antes do seu fim, antes mesmo de ficar com doença incurável, faz um seguro de vida, instituindo a entidade "congeladora" como beneficiária. Com um prêmio mensal relativamente baixo, um homem de trinta e cinco anos pode acalentar a idéia de uma, quem sabe, quase eternidade — supondo-se que daqui a cinqüenta, cem anos, o processo de envelhecimento esteja parcialmente detido por meio da engenharia genética. E os possíveis herdeiros não sentirão uma sensação de perigo, vendo o pai se congelar, desde que o amado paizinho faça um testamento dizendo expressamente que os seus bens ficam para os herdeiros, em definitivo, após o congelamento,  reservando uma pequena parte para o “jogo” cujo resultado depende do avanço da ciência..

As poucas entidades que, nos EUA, trabalham nessa área, aconselham os candidatos a contratarem o seguro de vida, em favor da empresa, o mais cedo possível, porque quanto mais jovem o candidato a segurado, menor o premio mensal exigido pelas seguradoras. Lembre-se que pessoa atacada de doenças graves não é aceita pelas companhias de seguro. E se ela omitir a doença na proposta, a indenização não será paga.

Com o tempo, as entidades do ramo também aprenderam que tinham de operar com base mais profissional, diminuindo os riscos financeiros de uma demanda de indenização que pode arrasar qualquer empresa. Se uma empresa dessas tiver que pagar alta indenização, ficará privada dos fundos necessários à manutenção dos demais pacientes congelados, que nada têm a ver com aquele processo, e que serão “derretidos” não só em suas esperanças como também em suas próprias bases físicas.

Pensando nisso, as empresas passaram a operar em segmentos distintos: umas cuidam apenas das providências físicas iniciais, logo após a morte do paciente. Outras cuidam somente da conservação. Objetos sociais e patrimônios distintos. Se um parente achar que seu pai foi "pressionado" a assinar o contrato, não estando, em razão do desespero causado pela doença, em condições de bem discernir o que fazia — e convencer disso o tribunal — a indenização será imposta apenas à empresa que contratou com o paciente. A entidade incumbida da conservação nada tem a ver com o alegado vício de vontade, com aquela demanda, não sofrendo abalo capaz de comprometer seu objeto social.

Como se vê, se chegar ao Brasil essa estranha atividade — o que duvido que ocorra tão cedo porque o brasileiro é mais desconfiado que o americano, acostumado a ousar o impensável —, múltiplos serão os problemas jurídicos a serem solucionados. Principalmente na área criminal, pois é da essência dessa nova atividade empresarial congelar o paciente o mais depressa possível, após a morte, antes que ocorra a mínima deterioração orgânica. A presença dos paramédicos ao lado do iminente defunto ( nem sempre figura “eminente”), esperando, atentos, o falecimento, poderá caracterizar o induzimento ao suicídio, ou mesmo uma eutanásia. Um paciente com início do "Mal de Alzheimer" achará conveniente se congelar antes que seu cérebro fique totalmente deteriorado mas aí, tecnicamente, ocorrerá um suicídio. E a "equipe" da entidade conservadora dificilmente escapará de uma suspeita de induzimento ao suicídio. Outro problema: se congelado um criminoso, corre contra ele, nesse período, a prescrição? A legislação, como se vê, terá que ser profundamente alterada, principalmente criando mecanismos de vigilância das entidades que se dedicarem a essa estranho e lúgubre atividade.

As religiões se levantarão contra a idéia de um eventual “retorno”. Dirão: - " E a alma, como fica? Nos anos de congelamento, por onde andará? Um budista dirá que foi reencarnada. Assim, como trazê-la de volta, abandonando o novo corpo?"

Tudo isso soa agora como divagação ociosa, um quase insulto à inteligência. Mas tenho certeza que a humanidade — melhor, uns poucos obcecados — persistirá nesse caminho e ainda vai conseguir “acordar” pessoas após longo congelamento. Se vai ser recomendável, não sei. Mesmo porque, dando certo, surgirão novos problemas sociais, inclusive de aumento populacional. O que pode frear o desenvolvimento dessa atividade é a perspectiva, cada vez maior, de a engenharia genética alterar o processo de envelhecimento, fazendo com que as células se renovem como se integrassem um organismo jovem.

Uma coisa é certa: o homem anseia pela imortalidade. Da forma que for possível. Espiritual ou material. Atualmente,  apenas espiritual — mesmo porque não havia outra alternativa. Agora, com este  mero aceno de uma eternidade biológica, centenas ou milhares de pessoas tentarão embarcar nessa aventura, desde que economicamente viável. Assumirão o risco, pura e simplesmente. Inclusive o de "acordar" em um mundo totalmente diferente, o que para muitos é  algo excitante, não triste. Presumem que o "novo mundo" será menos hostil que o atual, porque mais civilizado. Algo assim como homens e mulheres da idade da pedra acordando em pleno centro refinado de Paris.

Sempre existiram e existirão os aventureiros. Os vikings arriscavam-se pelos mares sem grandes cautelas, até mesmo desconhecendo a bússola.

Para muitos, a vida é excessivamente curta. Mesmo agora, com uma expectativa média de setenta e cinco anos. Até os vinte anos o "cavalinho" galopa alegremente pelo mundo, relinchando e escoiceando de alegria — isso se tiver tido sorte na "escolha" dos pais. Depois, cai na dura luta pela sobrevivência. Luta para sustentar a família, raramente trabalhando no que realmente gosta. Entrando na aposentadoria, poderia fazer o que realmente sempre quis, mas aí  percebe que suas forças estão em clima de fim de festa, acenando adeusinho em despedida. E morre frustrado.

A criônica será essencial para a conquista do espaço. Para o homem atingir outros sistemas solares, mesmo da nossa galáxia, terá que tripular as naves espaciais com pessoas de extrema longevidade, tendo em vista as enormes distâncias. E nenhum cosmonauta espera viver, agora, trezentos ou quatrocentos anos.

"Ars longa, vita brevis", foi sempre a queixa dos artistas. E não se argumente que nossos filhos e netos terminarão as obras por nós iniciadas. Não! Eles nascem com outros interesses. E têm direito a isso. O pai é, digamos, um grande cientista, com longo projeto de trabalho pela frente. O filho, porém, prefere passear de moto,  escrever versos, construir prédios, desenhar carros, chutar bola ou escrever obras jurídicas. Cada geração que vem ao mundo é uma nova invasão de bárbaros, já disse alguém. O trabalho do cientista será, talvez, terminado por uma estranho. E muito depois da sua morte, porque ele não vinha tão "embalado" quanto o falecido. Mesmo um médico, interessado apenas em sua profissão, dificilmente poderá abarcar todo o conhecimento médico de nossa época. E essa limitação, para alguns, "dói". Se há quem repreenda essa excessiva curiosidade intelectual, outros a defendem, dizendo que tais curiosos são o sal da terra.  Outros gostariam de dominar várias línguas. Para gente tão curiosa nossa atual extensão de vida é insatisfatória. Há quem goste de viver, aprender e produzir coisas do mundo do espírito. Disposto a lutar por uma duração muito maior que a atual. Quem quiser, que morra logo; ele, não!

Até agora a "eternidade" estava restrita à alma, ou memória. Deixar um bom nome na face da terra. Escrever um grande livro, pintar um quadro famoso, compor música inigualável, ser indicado para um "Oscar". Pelo menos uma placa de rua, ou um banco de cimento, com seu nome, na pracinha do interior. Ou, até mesmo, paradoxalmente — se não houver outra alternativa —, cometer um crime que lhe dê notoriedade, mesmo negativa. Uma forma de continuar “vivendo”, pelo menos a memória de alguém.

O homem não aceita é a idéia do nada. Principalmente do “seu” nada. Revira-se inquieto na tumba, meio descarnado, fedendo, rilhando os dentes, falsos ou verdadeiros, só em pensar que ninguém se lembrará dele como uma pessoa importante, pelo menos de algum modo.

Assim é a humanidade. E por isso não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, aqui mesmo no Brasil, surgirão as entidades — honestas ou  desonestas, como em tudo o mais — que explorarão esse anseio jamais satisfeito por uma vida bem mais longa e certamente mais promissora, em tempos desconhecidos. Se o “cliente” vai acordar — se acordar — meio abobado, paciência. É o que possivelmente acontecerá nas primeiras tentativas. E as companhias seguradoras estarão de olho nesse novo mercado. Os próprios médicos, agora cautelosos quanto ao assunto — receiam se desmoralizar — examinarão melhor as possibilidades técnicas. Concluirão, certamente, que a tarefa de salvar a humanidade da doença e da morte não implica, necessariamente, em restringir sua missão apenas ao uso dos recursos técnicos atualmente disponíveis. Envolverão seus pacientes desiludidos, desistentes, em cápsulas geladas e os deixarão aos cuidados dos futuros médicos, hoje bebês.



FIM


quinta-feira, 14 de junho de 2012

A “Comissão da Verdade” se tornará revanchista, “sem querer”.

Lendo, ontem, 20-5-12, no “Estadão”, o erudito artigo “Sobre a Comissão da Verdade”, da lavra do Prof. Celso Lafer — cuja prestigiada biografia não precisa ser relembrada aqui, porque todos a conhecem —, não posso, lamentavelmente, endossar seu ponto de vista. Atrevo-me a dizer que S. Exa. — intelectual que sempre sustenta o que considera certo —, daqui a um ano, talvez arrependa de ter dado seu respeitado apoio à má-ideia . Alguém já disse que escrever História impregnada de mágoas políticas é como tentar enfiar um prego de geléia na parede. Mesmo com a ajuda das melhores estopas teóricas a falta de solidez do doce atrapalhará a função martelo dos “pedreiros” nomeados, que juram apenas procurar uma verdade — torturas e outras crimes. Mazelas que, data venia , todos já conhecem de sobra porque a imprensa é livre e ninguém foi nem está proibido de publicar livros e artigos sobre o que aconteceu no tempo do regime militar, ou em qualquer período.

Prevejo também, com o devido pedido de desculpa pela ousadia, que o íntegro Min. Gilson Dipp, acostumado — como magistrado de grande envergadura —, a ver as coisas de modo equidistante, não se sentirá confortável na função inevitável de conter os impulsos vingativos — talvez até inconscientes —, de alguns membros da Comissão, impregnados de rancores inconformistas e mesmo justos, que pedem vingança em forma “oficial”, apoiada pelo governo.

Segundo o Prof. Lafer, a Comissão da Verdade será útil porque — nas suas palavras —, apenas “deverá examinar graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um  direito à memória e à verdade histórica. Suas atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Ou seja, ela nem pune, pois não é justiça de transição retributiva (...) nem indeniza (...). A natureza da verdade que cabe à comissão apurar não é a verdade jurídica proveniente da judicialização de processos políticos. É, para recorrer novamente  Arendt, a verdade factual dos fatos e eventos, que é a verdade da política”.

Desnecessário transcrever o artigo por inteiro. Resumindo o pensamento do erudito professor, essa Comissão, diz ele,“visaria apenas impedir o esquecimento por apagamento de rastros da violação de direitos humanos”. Mas quem disse que tais rastros foram apagados? Quantos artigos, filmes, reportagens, entrevistas televisionadas e livros já foram publicados e vistos sobre tais mazelas? A censura nunca impediu a difusão de informes sobre torturas, homicídios e abusos de algumas centenas de sádicos por vocação ou por ódio político  — existentes em todos os países e raças, na direita e na esquerda — que aproveitam o momento de qualquer “virada” para dar vazão aos seus instintos. Se a esquerda tivesse vencido, em 1964, esses ou outros sádicos equivalentes teriam também, sem constrangimento, cometido barbaridades, com largo uso do cárcere, torturas para obter informes e “paredón” contra os que lutaram contra eles.

No meu modesto ponto de vista, essa Comissão, só pelo fato de ser criada, oficialmente, por um governo composto de pessoas, na sua maioria, oriundas da esquerda e mencionando, de antemão — nas palavras de Paulo Sérgio Pinheiro —, que só se interessará, unilateralmente, por violação dos direitos humanos cometidos por agentes do governo, está destinada a fazer muito mais mal do que bem ao país.  Será uma típica “Comissão revanchista”, ainda que prometa — com ou sem sinceridade —, não o ser. Isso porque muitos juristas e políticos, não só no Brasil mas no mundo todo, entendem que crimes contra os direitos humanos não prescrevem. Se não prescrevem, será necessário — até por coerência —, punir criminalmente dezenas ou centenas de pessoas, a grande maioria já bem idosa, em todos os escalões, que agiram pessoalmente. ou por omissão, na vigilância de seus subordinados, como seria o caso de oficiais de alta patente.

Nossa Presidente, quando ocupava importante cargo no Governo Lula — salvo engano, na Casa Civil — dizia que os direitos humanos são imprescritíveis.  Se ela continuar pensando do mesmo modo, nada mais coerente com ela mesma que, constatados, com testemunhos colhidos na governamental Comissão, os crimes de agentes do governo ditatorial, ela ordene ou estimule seus subordinados da área jurídica a processarem criminalmente todos os oficiais militares que ocuparam cargos de relevo, em uma verdadeira “caçada” de culpados, os sádicos ou meramente distantes e omissos. Não é impossível, hoje, garantir que daqui a dois anos, terminada a tarefa da Comissão, o STF, com nova composição, decida que os direitos humanos são imprescritíveis.

Essa inoportuna Comissão acabará funcionando, possivelmente, como uma espécie de Inquérito Policial, colhendo provas que poderão servir de base para um posterior denúncia e processo criminal de enorme repercussão e agitação no país. Agitação que deveria estar pacificada com a Lei da Anistia. Pelo menos por suposto delito de “omissão”, poucos e idosos generais, almirantes e brigadeiros escaparão da tortura mental, moral e até financeira de contratar defensores caros e competentes para poderem morrer com dignidade. E morrerão revoltados, porque a maioria deles estava sinceramente convicta de que agiram por idealismo, impedido que o país “descambasse” para um comunismo que consideravam equivocado, lesivo ao país, conforme ficaria depois comprovado com o desmantelamento da União Soviética e toda a pobreza do Leste Europeu, quando sob domínio russo.

Essa já confessada — pelo sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro — intenção de somente “pegar” quem cometeu ou indiretamente apoiou torturas estimulará pessoas “com mentalidade de direita” — parcela minoritária mas composta de milhões de brasileiros desiludidos com a corrupção e a impunidade atual do país — a reagir, formando uma outra Comissão,  não estatal — a “Comissão 2” —, colhendo testemunhos de parentes de militares ou civis que foram prejudicados pelos revoltosos de esquerda, assaltando bancos e cometendo outros ataques. E nada impede que essa provável “Comissão 2” procure, indo mais a fundo na motivação do Golpe Militar, demonstrar — colhendo depoimentos de natureza teórica —, que era intenção da esquerda brasileira, no início dos anos 1960, instaurar uma “Cuba n.2” no hemisfério sul. Uma “Cuba-Brasil” que teria sido obviamente estrangulada economicamente, durante décadas, pelo poderio norte-americano, como ocorreu com a Cuba do regime castrista. À época, os EUA tinham poder militar, econômico e diplomático para isolar o Brasil. Com sanções econômicas impediria que outros países fizessem negócios com o Brasil.

Essa provável “Comissão 2” se especializará, certamente, em demonstrar que houve apenas um “golpe preventivo” das Forças Armadas, abortando um golpe comunista que amadurecia a olhos vistos, com desafios de cabos e sargentos à hierarquia militar; com políticos de esquerda seguindo ordens da União Soviética, belo ideal socialista transfigurado em impiedosa ditadura. Dirão, os depoentes da “Comissão 2”, que o comunismo só empobreceu a própria Rússia e os países que dominou com punho de ferro. É fácil prever que a “Comissão da Verdade 2” se orientará para a justificação política do golpe militar porque a esquerda de então, sem força governamental, não teria mesmo condições materiais para  prender e torturar membros do governo, em grande escala, pois não dispunha de cadeias, recursos e locais à sua disposição.

Como bem lembra o cuidadoso texto de Celso Lafer, os últimos governos já se interessaram em reparar, com duas Comissões — a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, no governo F. H. Cardoso e a Comissão de Anistia, no governo Lula — as injustiças cometidas nos chamados “anos de chumbo’. Indenizações já foram pagas àqueles que pessoalmente sofreram com a repressão, o mesmo ocorrendo com os familiares de tais vítimas. Tendo em vista as reparações governamentais anteriores, não haveria, acrescento, mais razão para criar nova Comissão, agora destinada a apurar, unilateralmente, uma verdade já mais do que sabida e com finalidades — talvez inconscientemente secretas — de revanche.

Fosse essa Comissão da Verdade um empreendimento apenas cultural, privado, acadêmico, composto de historiadores — sem interferência governamental —, não haveria o que censurar, porque toda verdade deve ser investigada. Mas não é isso que está ocorrendo, porque, repita-se, trata-se de uma comissão criada pelo governo, e governo oriundo da esquerda, com as naturais mágoas. A “verdade histórica”, já conhecida, dificilmente será vista como a meta verdadeira dessa Comissão.

De uns tempos para cá surgiu no mundo uma nova, absurda e retrógrada mania de governos interferirem no exame do passado, favorecendo ou proibindo tal ou qual investigação, segundo as preferências de quem manda no momento. Dizem que os historiadores são mais poderosos que Deus, porque este não pode modificar o passado, mas os historiadores podem.

Poucos anos atrás, o Parlamento Europeu baixou uma norma considerando crime alguém negar o Holocausto. Simplesmente isso. Não obstante milhões ou centenas de milhares de judeus tenham realmente perecido no impiedoso massacre, nenhum governo ou Parlamento culto deveria impedir alguém de querer provar, com bons ou mal argumentos, que o número de judeus assassinados foi diferente dos usualmente mencionados seis milhões. Se algum maluco, com pretensões de historiador, quisesse demonstrar com dados pesquisados, que o número de mortos não foi de seis, mas de, digamos, três milhões, ou dois, ele se sentiria inibido e em perigo de ser processado criminalmente, porque, de forma indireta, estaria contrariando a versão semioficial, de seis milhões de mortos, que foi sempre mencionada na mídia. Agora, se um outro historiador quisesse escrever um livro comprovando que foram dez milhões os assassinados pelos nazistas, essa pesquisa não sofreria nenhum risco de processo, porque não estaria negando o Holocausto. As pesquisas históricas não devem ser “orientadas”, em um sentido ou outro.

O governo turco seguiu o exemplo: baixou uma lei proibindo que alguém dissesse ou provasse que houve um massacre de armênios no início do século passado. Como os armênios se recusaram a lutar no exército turco contra um país vizinho, foram violentamente reprimidos, com mortes ou deportação violenta, variando a cifra de mortos em torno de um milhão e meio. Que o governo turco negasse ter havido um massacre de armênios, dizendo que houve apenas uma guerra civil, estaria em seu direito. Proibir, no entanto, sob pena de processo, que alguém investigue o assunto e escreva a respeito já é um regresso às trevas da ignorância. Curioso, e agravante, é que o governo Sarkozy, pouco depois, baixou uma ordem equivalente — mas de sinal contrário —, proibindo que alguém, na França, negasse o chamado “holocausto armênio”. Uma ridícula troca de proibições quanto à História. Cabe apenas o consolo de que é melhor uma guerrinha de travesseiros do que uma guerra trocando chumbo.

Repito: governos não têm o direito de criminalizar a busca da verdade ou mesmo a suposta busca da verdade. Quem quiser, que investigue o que bem entenda e depois seja, se for o caso, ridicularizado pelas bobagens que concluir. Inversamente, não devem os governos, sob o falso pretexto de perpetuar o “mero registro” da verdade — já bem conhecida e sempre disponível a jornalistas e historiadores particulares — criar Comissões confessadamente tendenciosas que poderão resultar em processos que afrontam o que foi acordado na Lei de Anistia.

 A nossa Lei da Anistia não vale mais? Como reagiriam os adeptos de uma Comissão da Verdade se ela fosse criada, hipoteticamente, por um governo eventualmente hoje de direita, com  finalidade exclusiva de apurar as violações de “terroristas de esquerda”? Ninguém pode negar que, caso triunfasse a esquerda no governo de Jango Goulart, o “paredón” seria o destino de inúmeros políticos e militares que se opunham ativamente ao movimento de esquerda. Sempre foi assim em tais movimentos, seja de esquerda, seja de direita. Lenine mandou matar o Czar |Nicolau II, mulher, filhos e empregados domésticos, só para diminuir a possibilidade dos adeptos da monarquia russa voltarem ao poder. Para Lenine, não haveria nada de moralmente censurável nisso porque o que interessava era o “bem maior”, o superior interesse de uma causa justa que corrigiria todas as injustiças sociais.

A atual Comissão da Verdade só será útil para realimentar o ódio entre a esquerda e a direita brasileiras e para a venda de revistas e jornais. Nada mais. Colher informações? Elas podem, repita-se, serem colhidas por comissões e pesquisas particulares. Não envolvam o governo nisso.

Agentes torturadores — quando fazem esse trabalho sem serem coagidos — são realmente uma escória moral. Em todas as raças e povos há um pequeno percentual de pessoas que têm propensão ou indiferença sádica. É um dado biológico. Nasceram assim, “não têm culpa”. Não sentem aversão em infligir sofrimento. Carrascos que operavam a guilhotina, ao tempo do Terror francês ou, na Idade Média, usando forca ou o machado para cortar pescoços, certamente não vomitavam depois. Até preservavam o emprego, tentando passar a “boquinha” para o júnior. Alguém dirá que a Comissão da Verdade” poderia se limitar a investigar apenas os relatos contra as pessoas que, pessoalmente, praticaram as torturas, sem alcançar a cúpula da Revolução de 1964. Isso, porém, é impossível ou dificílimo, porque o torturado não sabia, com certeza, quem ordenara a tortura. Na dúvida, seria “alguém lá de cima”, um oficial de alta patente.

O leitor deve estar se perguntando: — “Quem é esse cara” — este seu criado, leitor — “que escreve contra a Comissão? Deve ser um tremendo fulaninho de direita...”

Respondo: não sou. Se o fosse, diria, porque não é crime ter convicções políticas. Situo-me politicamente equidistante,  um tanto mais próximo da esquerda. O Socialismo tem um belíssimo ideal a realizar  na Terra, esse planeta tão cheio de injustiças contra os que tiveram o azar de nascerem em família pobre.

 O lema comunista de exigir, de cada um, conforme sua capacidade e dar a ele conforme sua necessidade é Cristianismo puro. Uma orientação que seria aplaudida por todos os anjos do céu. Só que é um ideal prematuro, em termos práticos, porque a raça humana ainda está imensamente impregnada de egoísmo, ganância e desejo de status. Basta ver os escândalos financeiros revelados semanalmente no Brasil, cometidos não por pessoas famintas, mas por gente rica e bem educada. A ganância e o desejo de ser melhor que os outros está tão ínsita no ser humano que mesmo nos países comunistas, antes da dissolução da União Soviética, formou-se uma “nova classe”, a “nomenklatura” com direito a um conforto inacessível à “massa ignara”. Ingressavam no partido único para terem direito a cartões de racionamento especiais e para “subir na vida”.

Esse lema comunista, acima enunciado — “à cada um conforme sua necessidade, etc. — não é aceito nem mesmo por operários. Se dois deles, trabalhando na mesma função, diferem na capacidade de trabalho e de gerar filhos, o trabalhador que é mais inteligente e produtivo, mas tem apenas um filho, considerará injustiça se o operário vizinho — lento, mole, confuso e com prole numerosa —, ganhe mais que ele só porque, tendo muitos filhos, precisa receber salário maior.

Karl Marx resumiu, em curta frase, seu ideal comunista: “a abolição da propriedade privada”. Noventa e oito por cento dos trabalhadores, porém, não gostariam de viver em residências coletivas, com intimidade forçada. Além disso, um socialismo ditatorial — no começo, longo começo, sempre ditatorial, temendo o regresso do regime deposto —apela ao terror, aos julgamentos sumários. Esse socialismo “virulento” simplesmente “congela” a iniciativa e a criatividade. Daí a pobreza que sempre desaba sobre os países sob ditadura comunista, com seus habitantes travados pelo medo de demonstrar qualquer “tendência capitalista”. O belo ideal socialista terá que ser atingido gradualmente, como ocorre nos países nórdicos, em que a ambição individual, mesmo sendo eventualmente gananciosa, é empreendedora, cria novos horizontes. Enriquece, evidentemente, uma pequena parte da população mas boa fração dessa riqueza é canalizada, pelo governo, para as populações mais pobres. O egoísmo capitalista é moralmente antipático mas como promove o enriquecimento do país, acaba elevando o padrão de vida de todos: pobres, remediados e ricos.

O bom futuro do planeta está na aliança da liberdade econômica — leia-se criatividade — com o planejamento de retaguarda, isto é, na união do Capitalismo com o Socialismo. O primeiro para criar a riqueza, soltando as rédeas das pessoas mais ousadas, mesmo gananciosas. O Socialismo, para zelar pela utilização mais justa dessa riqueza. Vigiando os “gananciosos” mas não a ponto de quase sufocar os produtores de riqueza com tributos exagerados e desestimuladores. E será desnecessário lembrar que os tributados excessivamente não se deixam saquear passivamente. Para isso existem os Paraísos Fiscais, e outros truques — lícitos e “semi-lícitos”, criados pelas infatigáveis criatividades contábeis e jurídicas. Segundo Everardo Maciel — “As raízes da corrupção no Brasil”, jornal “O Estado de S. Paulo”, de 2-1-12, pág. B-2 —  os débitos inscritos na Dívida Ativa da União ultrapassam a soma de um trilhão de reais, a demonstrar que há muita coisa a consertar neste país, na área tributária e na legislação processual que rege a cobrança das dívidas em geral.                                                                                    

Já que citei Marx, cito agora um seu grande amigo, Engels, por sinal filho de um rico industrial alemão. Engels dizia que “Tragédias genuínas no mundo não são conflitos entre o certo e o errado. São conflitos entre dois certos”. Há também uma pequena dose de “certo” na direita política.

Capitalismo e Socialismo precisam andar de mãos dadas — ou até mesmo, inicialmente, amarradas, meio que à força. E uma Comissão de Verdade que só retardará o ajustamento dos dois grandes sistemas — reacendendo velhos ódios —, só atrapalhará o futuro do país. A China vem crescendo mais que as demais nações porque fez uma acomodação entre os dois sistemas. Podemos fazer o mesmo, no Brasil, com métodos próprios. Aliás, isso vem sendo feito, sem alvoroço, pela Presidente Dilma. A Comissão da Verdade parece ter sido apenas um ligeiro escorregão de uma mulher muito autêntica, sentimental, honesta, corajosa, mas ainda abalada emocionalmente pelo que sofreu em mãos perversas. Há, porém que, como estadista que é, ajudar a esquecer um pesadelo ou sonho mau que ainda pode voltar a nos manter em sobressalto.

Talvez, em outro artigo, faça uma síntese bem apertado das virtudes e vícios dos dois sistemas políticos que poderiam ter torrado, atomicamente, o planeta caso Nikita Kruschev não tivesse recuado, sensatamente, aceitando o papel de fraco, quando Kennedy ameaçou atacar, em 1962, a frota russa que conduzia mísseis para Cuba. Kruschev desprestigiou-se, foi censurado pelos seus generais mas salvou a Terra da mais mortífera das guerras.



(24-5-2012)