segunda-feira, 13 de março de 2017

O demagógico teto salarial dos magistrados

Cada vez com maior franqueza — com verdades e meias verdades —, políticos, jornalistas e advogados investem contra o Poder Judiciário e o Ministério Público. Eles têm razão apenas com relação aos “penduricalhos” remuneratórios que procuram contornar o “teto” salarial imposto aos ministros do Supremo Tribunal Federal, agora — a partir de janeiro de 2017 —, no valor de R$39.293,00.

A “suculenta” cifra sugere nababesca riqueza mensal, como se ela viesse inteirinha para o patrimônio do juiz, ou do promotor, vez que ambos costumam ser igualmente remunerados.

Essa gorda e invejável remuneração máxima sofre, porém, um forte regime de emagrecimento já “na boca do caixa”, antes dela chegar às mãos dos magistrados, tornando-se algo efetivamente “usufruível” pelos destinatários. Vejamos, a seguir, se esse teto salarial é realmente milionário.

Friso que na demonstração abaixo levo em conta apenas o ganho mensal dos juízes que mais recebem no país, os, digamos, “marechais” togados — onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Os demais magistrados, a “tropa” — cerca de 15 mil “soldados” de primeira instância —, ganham progressivamente menos, conforme a escada remuneratória da carreira.
Vejamos o que acontece com a mais alta remuneração do magistrado brasileiro. Antes, porém, para quem não sabe, uma rápida explicação sobre a carreira dos juízes.

Magistrados de carreira começam — após difíceis concursos públicos de títulos e provas, em geral prestados mais de uma vez — como juízes substitutos de primeira instância. Muitos candidatos desistem, depois de várias tentativas. Os aprovados, subindo gradativamente na carreira, de entrância para entrância, são forçados a mudar de residência, a cada promoção, porque o juiz é obrigado a residir na comarca em que trabalha. Isso, obviamente, é um incômodo para ele e sua família, o que explica porque muitos bacharéis, bem preparados, prefiram advogar no conforto dos grandes centros, ou nas cidades onde cresceram.

Convém também esclarecer que muitos juízes se aposentam sem chegar à segunda instância, onde ser transformariam em desembargadores. Não chegando ao ápice da carreia, sua remuneração será bem inferior à do ministro do STF.

A propósito da chegada ao “topo”, é um tanto paradoxal que, por exemplo, na atual composição do STF, dos onze ministros, só três deles se tornaram magistrados após concurso público de ingresso na carreira: o decano Celso de Mello, que ingressou — em 1º lugar — no Ministério Público de São Paulo; Rosa Weber, aprovada, com distinção, na Justiça do Trabalho, e Luiz Fux, que passou, também em 1º lugar, em concurso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Os oito Ministros restantes são oriundos da advocacia, do magistério, ou do Superior Tribunal de Justiça, onde foram juízes, mas não de carreira, isto é, não concursados. Estavam no STJ por força do quinto constitucional. Trabalhavam antes como advogados ou promotores de justiça escolhidos pelas respectivas classes para “oxigenar” os tribunais com gente de fora da magistratura, com diferente visão dos fenômenos sociais.

Não obstante o conjeturável “calo”, ou “boca entortada pelo cachimbo
profissional”, tais juízes, no geral, têm se revelado bons julgadores, comprovando a capacidade de adaptação do ser humano a novas profissões. Se houver algum resíduo de influência da profissão anterior, essa influência vai, com o tempo se enfraquecendo, ainda que possam, talvez, não desaparecer inteiramente, o que nem sempre é um mal. Mais difícil de modificar é o temperamento de todo juiz, não a profissão exercida antes.

A propósito dessa maior proporção de não-concursados no STF, convém alertar os juízes de carreira — aqueles com ambições mais altas — que não se limitem “apenas” a trabalhar incansavelmente, julgando o máximo de processos possível no mês, gastando a totalidade de seu tempo e energia no trabalho de ler processos, pensar e decidir dando o melhor de si, em estilo direto e simples, sem “adornar” seu trabalho com citações eruditas. “Curto e grosso”, no bom sentido, mas certeiro, embora sem brilho teórico.

Esse trabalho, algo anônimo, infelizmente não impressionará o mundo político na hora de escolher nomes para ocupar as vagas nos Tribunais Superiores, em Brasília. É aconselhável, quase imprescindível, fazer cursos no Exterior, escrever livros, artigos, aprender novas línguas, lecionar, frequentar mestrados, doutorados e academias. Transcrever, nas suas sentenças, doutrinas estrangeiras e, finalmente — cereja no bolo —, ser sociável. Não só ampliando seus conhecimentos de Direito Comparado mas também criando “visibilidade jurídica”, sem a qual nunca será lembrado no mundo político, ou jurídico-político. Modesto demais, será considerado “um juiz provinciano”. Em suma, sem “vitrine”, seu futuro não será “brilhante”. Será apenas um “pé de boi”; esforçado, “até bom juiz, mas provavelmente de não muitas luzes”. Não lhe bastará ser infatigável abelha, precisa também ser vagalume.

Ocorre que essa “vitrine” custa dinheiro. Viagens, estadias, cursos, aulas particulares não saem de graça. Daí a necessidade do juiz ganhar bem.

Pelo visto, a mídia acha que todo juiz tem a obrigação de fazer voto de pobreza. Ele, na quase totalidade, não faz voto nem de pobreza, nem de riqueza, mas acha-se com o direito de manter seus filhos — convém, por economia, ter no máximo dois, e olhe lá... — em escola particular, geralmente cara; contratar plano de saúde que dê cobertura total à família inteira; pagar serviço odontológico de qualidade, etc. Enfim, manter um padrão de vida de classe média.

Se o juiz passa a viver no estilo de São Francisco de Assis — parecendo um “pobretão” —, sabe o leitor como será visto pela população em geral? Como um “juizéco”, ou “funcionariozinho mequetrefe”, tal a automática associação de ideias entre “dinheiro ” e prestígio profissional. O taxista, o açougueiro, o cozinheiro, o PM, vendo o juiz malvestido entrando no seu carro velho logo pensa: “Esse cara não pode ser mais importante do que eu...”

Já o arrogante milionário, chefão do tráfico de entorpecente, mesmo preso, vendo uma foto do juiz que o condenou, será mais severo: — “Foi esse mendigo, esse bos..., esse inseto — incapaz de ganhar dinheiro como homem de verdade —, que me condenou? Que ingrato! Será que ele não sabe que só continua vivo porque eu não decidi mandar apagá-lo?”     

Voltando ao ganho dos ministros do STF, o Imposto de Renda, descontado na fonte, de 27,5%, “come” R$10.805,57. A esse desconto some-se o percentual de 11%  (R$4.322,23) para efeitos previdenciários, mesmo que o magistrado já esteja aposentado (?!). Enfim, resta o ganho mensal, desfrutável, de R$24.127,00.

Ocorre que quanto mais velho o indivíduo, mais alta a mensalidade cobrada pelos planos de saúde. Para não ter que depender do SUS — talvez deitado em corredores de hospitais, sujeito a infecção hospitalar —, ele vê-se forçado a contratar planos de saúde que deem cobertura total, para todas as doenças.

Falei em cobertura? Nem sempre ela funciona inteiramente. Os médicos mais prestigiados não mais atendem aos segurados dos planos de saúde, porque a remuneração deles, pelos planos, é muito baixa. Só atendem com consultas particulares, cobrando entre seiscentos e mil reais cada consulta. Tenho conhecimento próprio do assunto. E o “reembolso” é mínimo, ridículo.

Por que, mesmo assim, há necessidade de um plano de saúde? É que corpos humanos antigos, ainda caminhando, têm o mau costume de manifestar os mais variados sintomas, a exigir exames e mais exames, com tratamentos sofisticados. Como os juízes, na ativa ou aposentados, na sua maioria, são conservadores em termos conjugais, o mais comum é que, idosos, tenham como esposas senhoras igualmente idosas, que também merecem uma boa cobertura de saúde, caríssimo.

Como mero exemplo, aposentado, pago à SulAmérica, mensalmente, a quantia de R$5.850,00, pelo casal. Resta, portanto, como quantia “gastável”, o valor de R$18.316,00 para o ministro do Supremo. E não seria justo, nem cristão, que os magistrados fossem aconselhados — por mero cálculo financeiro —, a trocar periodicamente de esposa, casando com mulher nova, com isso pagando mensalidade menor no plano. Trocas semelhantes costumam agravar a situação do romântico tardio, porque esposa desprezada fica com direito de receber uma pensão bem superior ao lucro oriundo da diminuição da despesa com troca de mulher idosa por mulher nova. E se o magistrado foi imprudente a ponto de ter que pagar duas pensões alimentícias, seu destino financeiro será horrendo. Viverá angustiado, suado, pendurado em bancos, tendo que lecionar — a única atividade permissível ao juiz em atividade — e apertar o cinto continuamente na. Mas, com o número excessivo de processos aguardando julgamento, é até impatriótico o juiz dedicar horas preciosas preparando e dando aulas. Quanto mais aulas, menos sentenças.

Outra despesa, praticamente inevitável, que vai “roendo” o vistoso “teto salarial do STF”: a contratação de uma empregada doméstica mensalista. Um salário razoável para um doméstica, de R$1.300,00 transforma-se em R$2.000,00, considerando os encargos de INSS,FGTS, 13º, etc. Restam, portanto, R$16.316,00.

Muitos magistrados moram em condomínios. Tendo em vista despesas condominiais e frequentes “extras” no prédio, pagando, digamos uma despesa mensal de R$2.000,00 mensais, sobram R$14.316,00. Agora, meus amigos, se ele tiver filhos em faculdade particular — nem todos podem entrar na USP — o que sobra ficará próximo, ou abaixo, do ganho de um taxista com carro próprio.

O custo mensal em uma faculdade particular de medicina, em outra cidade, não sai por menos de R$7.500,00, incluída a despesa com estadia. Se forem dois os filhos nessas faculdades, terá que cobrir o rombo com empréstimos bancários.

Magistrados não se locomovem de bicicleta. Usam, ou deveriam usar, automóveis particulares. Além disso, têm o mau hábito de comer, vestir, e todas as despesas inevitáveis nas grandes cidades. O que sobra, raramente “sobra”, como comprova a situação de centenas ou milhares de juízes endividados em bancos.

No teto salarial do funcionalismo há muita demagogia. Prefeitos e governadores, até de estados importantes, recebem salários que só podem ser considerados como “simbólicos”. Esse simbolismo é premeditado. Permite que o governador, quando nega aumento ao funcionário de alta especialidade sempre pode dizer, escorado na hipocrisia remuneratória: “— Como?! Você, engenheiro nuclear, quer ganhar mais do que eu, governador?!”

Se, porém, a justiça brasileira fosse rápida e funcional a população, muito grata, não faria críticas quanto à sua remuneração. Até faria questão de que os magistrados recebessem um salário superior ao atual. Isso porque a população, frustrada com conflitos de toda ordem, está com uma sede acumulada de justiça, que não pode ser excessivamente lenta. E por que ela não é nem rápida, nem eficaz?

A resposta é óbvia: porque nossa legislação processual é disfuncional, elaborada por quem não nunca foi juiz. Porém, como este artigo já está longo demais, cuidarei desse assunto, em outro artigo, daqui a alguns dias.

Voltando às críticas, na essência verdadeiras, contra os “super-salários”, o que tenho a dizer, com resumida franqueza, é o seguinte: os “penduricalhos” são realmente artifícios para contornar um “teto” que a maioria dos juízes considera mera demagogia salarial. Eu, pelo menos, assim considero, mas também não aprovo algumas quantias exageradas, mencionadas na mídia, pagas em casos individuais.. Não as examinei, matematicamente, mas parecem altíssimas. Se referem-se a férias não gozadas, é o caso de a lei estabelecer limites para tais acúmulos de férias, pois se alguns desembargadores nunca utilizam suas férias e ainda estão vivos, sadios, elas, pelo visto não são necessárias.

Examinando, pela rama, reportagens comparativas de ganho nos jornais, parece-me que elas não refletem bem a realidade. Artigo de Alexa Salomão, de 20-8-16, no Estadão, diz que os juízes da corte máxima de Portugal ganham, por ano, R$134.000,00. Por mês, seria um salário, baixo, de R$11.166,00. Se descontados, como no Brasil, R$4.298,00 (IR e Previdência), restariam apenas R$6.869,00. Provento ridículo para um juiz da corte mais alta de Portugal. Quase isso eu pago mensalmente na SulAmérica, só no plano de saúde, como relatado no início.

Fala-se que o ministro da Corte Suprema americana ganha pouco. Pode ser, mas isso é facilmente explicável. É que influentes advogados, integrantes de grandes escritórios, quando os deixam, para trabalhar no órgão judiciário máximo, talvez continuem com alguma participação nos lucros do escritório, que não encerra suas atividades só porque seu “cabeça” passou a condição de ministro da Corte Suprema. Esse escritório, uma sociedade de advogados, torna-se particularmente atraente para novos clientes.

Não sei bem como funciona a coisa, nos bastidores, mas não acredito que os ministros da Suprema Corte americana vivam pobremente. Quem faz tais pesquisas comparativas talvez não conheça a fundo a realidade do país. Por exemplo, os ministros americanos têm assistência médica paga pelo governo? Para se saber, com exatidão, como são remunerados, comparativamente, os juízes nos vários países, seria preciso investigar os bastidores de cada Estado, não apenas pedindo uma informação burocrática, teórica, para comparar os ganhos com o nosso teto salarial. Talvez, também em outros países, os magistrados procurem aparentar um ganho, direto e indireto, menor do que o verdadeiro. Faz parte da natureza humana.

Os juízes brasileiros, que tanto estudaram, pretendem continuar sendo “classe média, média”, e não “média, baixa”. Constataram que, com as despesas mensais familiares — todas normais na classe média, como exemplificadas no início —, só escaparão de um progressivo endividamento bancário criando os tais “penduricalhos”. Sem eles, teriam que tirar filhos de escola particular, usar contratar planos de saúde mais restritivos na cobertura, etc.

A Constituição Federal não estabelece qual o “quantum” do “teto”. Diz apenas que ele não pode ser ultrapassado, seja qual for o argumento. O assunto, portanto é econômico e político, e assim terá que ser tratado.

A única solução para esse problema, que desprestigia enormemente um Poder, o Judiciário — que, sendo desarmado, depende muito da forma como é encarado pela população —, está na criação de uma Comissão Especial, dos três Poderes, na qual será estudada uma elevação do vigente “teto” com o simultâneo cancelamento de todos os “artifícios” remuneratórios atualmente pagos aos magistrados em atividade. Os aposentados não recebem esses acréscimos, que eu saiba.

Em “retribuição” a esse aumento, essa mesma Comissão Especial — composta de pessoas indicadas pelos três poderes — se comprometerão a apresentar, em três meses, um conciso e claro projeto de lei que modifique a legislação processual, penal e civil, atualmente em vigor, visando apenas acelerar e dar real eficácia à prestação jurisdicional. A legislação trabalhista não será cogitada nessa comissão porque o assunto já está sendo discutido no Congresso Nacional.  

Aprovada a conclusão dessa Comissão — que tratará da elevação ou mesmo da abolição de “teto”, e fará as alterações processuais visando a celeridade —, o projeto será enviado ao Congresso para votação. O que for aprovado, no aumento, cancelará o conjunto das vantagens que ultrapassam o teto então em vigor. Todos os “penduricalhos” serão cancelados, o que agradará a população.

Alguém poderá dizer que “isso tudo é muito complicado”. É e não é. Tudo depende de como serão tratados os dois temas e quem serão os representantes dos três poderes nessa Comissão, que não deve ter mais de três ou cinco representes para cada Poder, com isso evitando o inevitável acúmulo de vaidades, protagonismos e autopromoção.

Devido à extensão deste artigo, não menciono quais seriam as alterações processuais saneadores do grande mal da morosidade. Posso apenas garantir ao leitor que a morosidade da nossa justiça é muito mais causada pela disfuncional, ingênua e vesga legislação do que pela suposta preguiça de nossos juízes. Há muita coisa, na justiça, que não passa de ritual inútil.

A mídia parece ignorar que o juiz — na área processual, principalmente —, é um escravo da lei. Ele frequentemente tem que trabalhar como que constrangido por uma “tornozeleira” mental. Não pode suprimir um caminho procedimental que está na lei. E não estou aqui incentivando o abuso do “ativismo”, remédio que só deve ser usado com grande moderação, porque as cabeças não são iguais e a justiça não pode ser uma arca cheia de bússolas, cada qual com um norte diferente.

Em futuro artigo, direi o que deve ser feito para “acelerar”. Com desculpa pela pretensão.

Francisco Pinheiro Rodrigues - 10-03-2017