domingo, 31 de maio de 2009

Política e honestidade mental são compatíveis?

Dificilmente. Autêntica mosca albina tal afinidade. Converse com qualquer político “bem sucedido” — isto é, eleito — e ele garantirá que “as duas coisas são perfeitamente compatíveis”. Dirá: — “Eu, por exemplo, nunca distorci os fatos!”. Provável mentira escandalosa que só confirmará a quase impossível convivência entre plena verdade e política. Não vote nele na próxima eleição. É um sujeito inconfiável. Caso ele pelo menos diga que mentiu “o mínimo possível e que os fins justificam os meios”, ainda poderá merecer o seu voto. Afinal, é um homem realista e sincero, pelo menos com o interlocutor. Ia dizer “eleitor”, mas troco a palavra. “Eleitor” é termo vago, sem rosto. Daí a tendência de ser desconsiderado depois de ter dado a única coisa que poderia interessar ao eleito: seu voto.

Se, porém, a pergunta for dirigida a um político “mal sucedido”, isto é, reprovado nas urnas, sua opinião será pessimista. Dirá: —“Eu fui vitimado pela minha sinceridade...”. Se tivesse me socorrido das mentiras, como meus adversários, teria vencido a eleição”. Outra inverdade. Ele também torceu a realidade, apenas usou tática menos eficiente para seus fins. Ou não tinha recursos para comprar, digo, convencer o eleitor e ativos cabos eleitorais que querem subir na vida.

O fato, nu e cru, é que — quase como regra absoluta —, a profissão “política” não pode ser exercida, com “sucesso” (leia-se suficientes votos), sem pelo menos um temperozinho de desonestidade mental. Por ação ou omissão. Pela mentira verbalizada ou pelo silêncio. Isso porque todo político disputa o poder: — “Se meu maldito adversário, que se elegeu, faz tantas coisas certas, qual a minha chance neste mundo? Devo, por acaso, bater palmas para quem me marginaliza?! Sem o poder, feneço! Para que servem minhas boas idéias ou intenções, se não as posso por em prática, por não ter sido eleito?”

No máximo, para escrever livros. Talvez nem publicados, a não ser que o bolso amigo, digo, o ombro amigo de um editor console o perdedor com a edição de suas obras recheadas de “argumentos irrespondíveis” comprovando que o vencedor não perde por esperar. — “O triunfo dele, mero golpe de sorte, será devorado por nuvens de gafanhotos esfomeados e pragas bíblicas!”

Penso que assim gemia o coração de centenas de políticos ao tempo em que Franklin Delano Roosevelt governava os EUA. Só a morte poria fim a tal “exibicionismo” de prestígio. E foi o que ocorreu com o grande presidente, falecendo no início de seu quarto mandato.

Passados mais de sessenta anos de presidências medianas, ou ruins — vide George W. Bush — elege-se presidente dos Estados Unidos um homem jovem, com aparência de jogador de basquete que, felizmente para todos nós, cidadãos do mundo — portanto “semi-americanos” — tem buscado inspiração no pensamento de Abraham Lincoln, um gênio político e moral. Há forte analogia mental, moral e temperamental entre ambos mas espera-se que a analogia pare nisso.

Seria uma tragédia, não só americana mas planetária, se Obama fosse assassinado no exercício da presidência. Seria a morte da esperança. A eliminação física, habilmente arquitetada, já deve ter passado por algumas cabeças atormentadas de homens poderosos — políticos ou não —, contrariados com a visão inteligente e pacifista “desse moleque ingênuo” que vê as coisas honestamente, e, pior!, diz o que pensa! — “Isso não se faz! É uma deslealdade com práticas políticas ancestrais!”

Não se discute a inteligência e a oratória de Obama, mas é no seu bom caráter — demonstrado até agora — que reside a esperança de um mundo melhor. A inteligência natural é um dom gratuito da natureza, mas sem um grande caráter para utilizá-la pode se tornar uma desgraça para o “meio ambiente” social. Quem não conhece pessoas não tão brilhantes mas autênticas, bondosas, tenazes, verdadeiras dádivas sociais e que chegam a posições de destaque? Em contraposição, há aqueles “espertos” poços transbordantes de egoísmo que em tudo o que dizem ou calam escondem-se cálculos e más-intenções.

Ninguém põe em dúvida a invulgar inteligência de Albert Einstein. Penso, entretanto, que o grande físico judeu penetrou mais fundo nos mistérios da matéria não apenas em razão de sua inteligência. O caráter e a constância em buscar a verdade tiveram papel decisivo para chegar onde chegou. Ele mesmo, em certa ocasião, explicou, em termos até auto-depreciativos, o seu “segredo”. Ouvindo a queixa da esposa de um físico excepcionalmente brilhante, seu amigo, mas que nunca conseguira apresentar uma descoberta surpreendente — como a Teoria da Relatividade —, Einstein deu sua modesta explicação para seu sucesso estrondoso: — “Existem dois tipos de homens: os “borboletas” e os “toupeiras”. Eu sou do tipo toupeira, que cava, cava e de tanto cavar acaba se deparando com algo que ninguém encontrara antes. Passo anos meditando e corrigindo meu trabalho. Já o seu marido, um homem de inteligência realmente brilhante, é do tipo “borboleta”: leve, lúcido, rápido, conhecedor de mil assuntos. Domina idiomas, discorre com profundidade e elegância sobre qualquer tema mas, justamente porque sua mente está em tantos lugares diferentes, já visitados por muitos, não tem oportunidade de encontrar algo ainda despercebido”.

As palavras, pelo que me lembro, não foram exatamente estas, mas foi esse o sentido. E concluiu, consolando sua interlocutora, dizendo que “o mundo precisa dos dois tipos: o “toupeira” e a “borboleta”. Esta última, acréscimo meu, se encarrega dos vôos, variações e conexões. Nesse voar e pousar entre as flores ocorre a polinização do saber, com um possível incentivo para o surgimento de eventuais “toupeiras”, obcecadas na busca da verdade. A vida, afinal, não pode se restringir a um imenso buraco, cada vez mais profundo. O anseio pela beleza ainda é um serviço útil à humanidade. Grandes músicos e escritores, por exemplo, mesmo com sua superficialidade, são exemplos típicos de borboletas indispensáveis. Os grandes artistas, insisto, com ou sem fama, esta um item cada vez mais manipulável e comercial.

Esclareça-se, desnecessariamente, que Einstein se comparou ao humilde mamífero meio cego e sem orelhas apenas para acentuar o lado “escavador” da sua mente. De meio cego e surdo é que Einstein não tinha nada. Foi, penso eu, o orgulho máximo de sua raça e talvez de toda a raça humana. Por sinal, era um pacifista e insistente adepto de um governo mundial. Se ainda vivo votaria, em Israel, concordando com a criação de um Estado Palestino, homem justo que sempre foi. Isso, também, porque via longe e “fundo”. Sabia que não há paz sem justiça, velha “novidade” que não consegue penetrar no crânio, ou coração, de Netanyahu. Einstein chegou a dizer, referindo-se ao perigo atômico, que não sabia com que armas seria travada a Terceira Guerra Mundial, mas na Quarta os combates aconteceriam com pedaços de pau e pedras. Para satisfação das resistentes baratas que, excitadas e rufando suas asas gritariam, com voz fina: “Chegou a nossa vez de ocupar a Terra!”

Mudando de Einstein para um dos problemas mais sérios dos tempos atuais — o conflito entre Israel e os palestinos, grande nutriente do terrorismo islâmico —, fico imaginando como deve ter sido a conversa, contrafeita e reservada, entre Barack Obama e Benjamin Netanyahu na Casa Branca, no dia 18 de maio de 2009, discutindo os problemas palestino e iraniano. Antes da transmissão do encontro, pela TV, os dois líderes tiveram uma longa conversa reservada. De um lado, Obama, convicto de que os palestinos também têm o direito — já desfrutado por Israel há décadas —, de um Estado nacional, com fronteiras nítidas e sem os obstáculos artificiais hoje existentes entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. De outro lado, “Bibi” Netanyahu, intimamente imbuído da idéia de ser lembrado, futuramente, como o grande consolidador da expansão israelense.

O assunto, no entanto, por exigência da brevidade, terá que ficar para o próximo artigo. A magnífica figura moral e intelectual de Einstein se inseriu no texto, à minha revelia, e, à maneira de um “buraco negro”, de atração irresistível, engoliu meu espaço. Aguardem, caridosos leitores, o próximo artigo.

(27-5-09)

Ahmadinejad em Genebra

Como todos ficaram logo sabendo, o presidente iraniano discursou ontem, 20 de abril, em Genebra, na conferência da ONU sobre racismo, discriminação e xenofobia. Como era esperado, fez pesadas acusações contra Israel — que vê como nação racista — e aquilo que ele considera como arrogância do Ocidente. Incidentes não faltaram, com pessoas vestidas de palhaço gritando, uma delas jogando contra o orador um nariz vermelho de plástico. O arremesso de sapatos contra Bush fez escola, com variantes.Expulso o improvisado palhaço, mais de vinte delegados, a maioria de países europeus, deixaram o recinto, em protesto. O próprio Secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, um sul-coreano invulgarmente cauteloso e delicado, não se conteve e censurou de forma dura o procedimento do líder iraniano, dizendo que coisas desse tipo não mais poderão acontecer em futuras conferências das Nações Unidas.Analisando o incidente — com a máxima honestidade possível a um ser humano —, cabe dizer, inicialmente, que a fala do presidente iraniano não se enquadrava, tecnicamente, na agenda da conferência, que era sobre Racismo, Discriminação e Xenofobia. Ocorreu um desvio de foro de discussão. No caso de Israel, houve, de fato, um afluxo excessivo de judeus, retornando à Terra Santa após a criação do Estado de Israel. O compreensível entusiasmo com o tão aguardado “lar” daqueles que sofreram — eles, ou seus ascendentes — discriminações e “pogroms”, principalmente na Europa, os fez esquecer que há limites físicos para a ocupação de qualquer área já habitada por outra população, no caso, árabe.Se, por mera especulação argumentativa, a Palestina estivesse sendo ocupada por descendentes de portugueses, ou de franceses, holandeses, chineses, ou o que for, a expulsão representaria, por acaso, “racismo” anti-português, anti-francês, anti-holandês ou anti-chinês? Obviamente que não. A evidente injustiça contra a população palestina — expulsa para dar espaço a novos assentamentos —, não se caracteriza, propriamente como racismo, mas como injustiça de ordem política e social, ou violação de direitos humanos. Daí o desvio técnico do discurso de Ahmadinejad. Desvio que prejudicou politicamente o Irã porque se este quiser, doravante, na ONU, uma conferência mundial para condenação da política de Israel, encontrará a máxima má-vontade por parte do Secretário Geral.Em política internacional, aliás em qualquer política, não importa apenas ter razão: é preciso saber apresentá-la com a indispensável propriedade, no momento, modos e lugar adequados. Benjamin Netanyahu deve estar festejando com champanhe o “fora” do seu adversário mais temido na região. Diplomaticamente, pontos para Israel, que não precisou mover um dedo para obter uma vantagem.Os países árabes identificados com a causa palestina são militarmente fracos, descoordenados e não oferecem perigo sério a Israel, poderoso em armamentos convencionais e possuidor de bombas nucleares. O Irã, porém, encerra um perigo potencial porque avança no conhecimento da tecnologia nuclear, seja para fins pacíficos, seja para fins bélicos; de defesa ou ataque. Daí a necessidade urgente do planeta em criar uma nova ordem mundial que corrija os excessos de qualquer país, quando apoiados mais na força que no Direito. Pelo que se constatou até agora, somente um “poder maior, exterior”, com real eficácia mundial, poderá trazer a paz ao Oriente Médio, com a criação de dois Estados. As duas partes em contenda, alimentadas com décadas de ódio — e realimentadas com frases infelizes — só chegarão a uma divisão clara e justa do solo se forçadas a isso por uma autoridade superior a elas, à maneira de uma decisão judicial reconhecida como honesta pela opinião pública mundial especializada. Mas para isso é preciso modificar o atual conceito de soberania.O Irã é um país cuja economia depende predominantemente do petróleo, uma fonte poluidora por excelência. Detém reservas equivalentes a 10% de todo o petróleo mundial. E o mundo anseia por energia limpa, que o país não tem. Grosso modo, pode-se dizer que o petróleo tem seus dias, ou décadas, contados. A energia nuclear é praticamente limpa, exceto quando surge algum acidente, nas este é cada vez menos provável com a tecnologia pós-Chenorbyl. Nada errado, portanto, com o interesse iraniano em crescer no domínio nuclear. É preciso pensar no futuro, na diminuição do preço do petróleo, na tendência tecnológica para energia não poluidora, na progressiva “aposentadoria” do “ouro negro” que logo passará a “prata’, “cobre’ ou “ferro”. O carro elétrico está sendo ativamente pesquisado. Nenhum país pode descurar de suas futuras fontes de energia.Há o perigo de o Irã fabricar bombas atômicas? Há, mas como argumentar contra esse mero perigo quando se sabe que inúmeros países já dispõem de artefatos nucleares bem concretos, incluindo seu inimigo figadal, Israel? Como sustentar, sem corar, às claras, que alguns países sejam “mais iguais” que outros? Essa incoerência, essa desigualdade de tratamento internacional é outro argumento em favor da imprescindibilidade de um “governo mundial’ — ou sistema equivalente, se a expressão assusta alguns leitores.O Irã dificulta ou impede inspeções de suas instalações? Sim, mas EE.UU., Israel, China e Reino Unido aceitariam, passivamente, inspeções constantes em suas instalações nucleares? Israel e EUA, por exemplo, acolheriam, sorrindo, braços abertos, verificações feitas por equipes das quais fizessem parte físicos iranianos, sírios, palestinos ou egípcios? Nem em sonho! É preciso, portanto, inovar na ordem internacional, por mais trabalhoso que isso possa parecer. Com uma nova ordem, realmente confiável, Israel estaria com sua permanência e segurança garantidas. Ou não seria nova ordem.Israel tem direito, como qualquer nação, a uma existência pacífica, sem medo da demagógica expressão “varrer do mapa”. Mas essa paz tem o seu preço: a justiça no tratamento de seus distantes “primos” sanguíneos, os semitas árabes. Se os palestinos já expulsos, eventualmente, não puderem receber suas terras de volta, por dificuldades práticas, que a comunidade internacional os indenizem porque ainda há espaços no planeta para sustento de seus habitantes. Melhor isso que morar sob toldos em campos de refugiados.Essa ordem justa ainda não existe, no momento, em razão da ultrapassada “soberania absoluta”, já abalada com as recentes propostas para conserto das finanças mundiais. Temos, na área estritamente política, apenas acenos bem intencionados de justiça, mas não justiça propriamente dita. Basta lembrar que se um dia, quase milagrosamente, a Palestina se tornar um Estado e com isso habilitada a mover uma ação contra Israel na Corte Internacional de Justiça, basta a Israel recusar a jurisdição para que não exista o processo. Equivale a, na justiça interna dos Estados, um devedor recusar a jurisdição para não ter que pagar sua dívida. Realmente, muito cômodo, mas uma espécie de farsa institucionalizada. Justiça internacional baseada no consentimento das duas partes, no mundo atual é algo primitivo e espantoso. No entanto, é esta a ordem vigente. A Corte Internacional de Haia faz o que pode, dentro dos rígidos poderes que recebeu da ONU, mas não pode ir além deles, por mais capazes e justos que sejam seus juízes.Fosse Ahmadinejad um estadista mais hábil, diplomata e previdente teria, há muitos anos, obtido maior apoio internacional na defesa dos interesses iranianos e também, certamente, dos interesses palestinos, essa ferida infeccionada que alimenta boa parte do terrorismo islâmico. Em vez de bem argumentar, insistir, insistir e elucidar — porque os ossos do crânio são duríssimos... — resolveu ameaçar e fazer demagogia, prometendo destruir Israel, dizendo justamente aquilo que interessa aos seus espertos inimigos que sabem como manipular o medo israelense de extinção.Um Gandhi, um Lincoln, um Mandela, já teriam convencido a opinião pública mundial da necessidade de mais justiça para os palestinos expulsos. Infelizmente, isso não ocorreu. A sorte dos povos depende muito do acaso, da loteria eleitoral, freqüentemente ingrata aos melhores interesses da população. Por outro lado, EE.UU. e Israel também não tiveram sorte com o ascensão de George W.Bush, Sharon, Ehud Barak e Netanyahu. Esses três últimos só fizeram erodir a simpatia mundial pelo sofrimento dos judeus quando viviam perseguido na Europa. Paciência, a democracia não é perfeita e avança a passos de tartaruga. Mas um dia avançará, para felicidade tanto de judeus quanto de palestinos. A natureza é sábia. Envelhece, aposenta e elimina fisicamente tanto bons quanto maus governantes.Finalizando, e com perdão pelas digressões, os temas “discriminação” e “xenofobia” freqüentemente são mal focalizados na mídia. Brasileiros protestam contra a discriminação dos países do Primeiro Mundo quando estes barram o ingresso de nossos compatriotas que aparentam querer ganhar a vida em países mais ricos. Igual é a queixa de mexicanos contra os EUA e de africanos e cidadãos do leste europeu, quando impedidos de ingressar na União Européia.Por falta, novamente, de uma política global racional e obrigatória, é compreensível que a França, por exemplo, não queira ser literalmente invadida por centenas de milhares ou milhões de pessoas pobres, de todo o mundo que, por falta de emprego e recursos, passarão a dormir nas calçadas. E quando a fome e o frio apertarem, recorrerão mais ao crime do que à mendicância.Não se trata, propriamente, de xenofobia, mas de preocupação dos países “ricos” em evitar o aumento da criminalidade e do desemprego em seu território. Não ocorre xenofobia, porque os turistas, apesar de estrangeiros (xenos), são recebidos de braços abertos, seja qual for sua cor ou procedência. A solução mundial factível para o problema da imigração indesejada é investir pesadamente nas nações pobres para que aumentem seus PIBs, livrando seus jovens da necessidade de buscar outros países dentro de “conteiners” ou barcos precários que, por vezes, matam com afogamento, sufocação, fome, sede ou bala, seus explorados e infelizes transportados. Estes querem apenas uma chance para trabalhar e bem viver, pois nada podem esperar dos países onde nasceram. Não procuram Paris ou Londres por causa da Torre Eiffel ou do Big Ben. E de onde extrair os recursos destinados ao crescimento dos países pobres? Da bilionária indústria armamentista que, para não falir, precisa estimular rivalidades. Mas tudo isso só é possível com um governo mundial — com perdão ao leitor pelo insulto repetido aos seus ouvidos.Quanto ao desemprego, este perigo nos ronda há bom tempo. Apenas se agravou com a presente crise financeira mundial. Com o aumento da mecanização, da robotização e da utilização da informática, mãos e cérebros humanos estão sendo progressivamente descartados. Sendo um fenômeno irreversível, será preciso duas providências para acabar com a escalada do desemprego universal: diminuir a carga horária semanal de trabalho e forçar, com estímulos econômicos e doutrinação, a diminuição da natalidade.Isso, porém, só pode ser conseguido com um governo mundial que imponha essas duas políticas em todos os países. Do contrário, o país que, por bondade, adotar isoladamente qualquer uma dessas sábias políticas, logo se verá prejudicado. Foi o caso da França, ao diminuir a jornada de trabalho semanal dos empregados. Com isso o preço de seus produtos ficou mais caro, porque outros países não fizeram o mesmo. E se portos, aeroportos e fronteiras ficarem abertos à imigração desenfreada o isolado e benevolente “país rico” logo se transformará em país de segunda categoria, com milhões de desempregados e criminalidade incontrolável.Verdades desagradáveis mas incontestáveis, se de boa-fé. A riqueza dos países e continentes tem que crescer por igual. Do contrário, somente mais tensões e sofrimentos no horizonte. Talvez com cogumelo radioativo.(21-4-09)

terça-feira, 19 de maio de 2009

O DVD da Haia

No fim do mês de abril e começo de maio de 2008 resolvi visitar — acompanhado de um filho munido de filmadora —, a cidade e os tribunais internacionais de Haia, nos Países Baixos. Como sou um entusiasta dos temas internacionais, na Política e no Direito, e confesso propagandista de um governo federativo mundial — para muitos uma idéia “desagradável” ou “ingênua” (pensa-se logo em “prepotência norte-americana” e “sociedades secretas”) — decidi conhecer mais de perto, fisicamente, as cortes internacionais e alguns juízes que ali trabalham.

Como todos sabem são quatro os tribunais sediados na cidade de Haia: a Corte (ou Tribunal) Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal de Arbitragem Permanente e o Tribunal Penal Internacional da Antiga Iugoslávia, um tribunal provisório, “ad hoc”, que será extinto quando terminarem os julgamentos dos crimes de genocídio ocorridos naquela região.

É óbvio que qualquer estudioso do Direito Internacional não precisa visitar “a” Haia — com artigo definido feminino, como prefere a maioria — para conhecer sua importância. Hoje, com livros, revistas e internet disponibilizando fotos e informações abundantes sobre todos os lugares e instituições, o cidadão pode conhecer quase tudo sem sair de casa. No entanto, nada substitui inteiramente o contato direto, estimulante, visual e falado, com uma cidade que está impregnada do Direito Internacional. Se o mundo, como acredito, caminha para a solução pacífica e racional de seus problemas de convivência — a alternativa velha e idiota será sangue, ódio e vingança sem fim — certamente será a justiça mundial que dará os impulsos decisivos para uma ordem mais justa. Isso porque revestida da presunção de eqüidistância. Muito mais que a política, com sua tradicional e inevitável parcialidade. Dizia Margaret Thatcher que em política não se pode ser neutro: quem fica no meio da pista acaba sendo duplamente atropelado. Já o juiz só será atropelado se esquecer a imparcialidade. Sua missão é mesmo ficar no centro, levando raspões de ambos os lados, mas vivo.

Haia é uma cidade pequena, com cerca de quinhentos mil habitantes. Mesmo não sendo a capital da Holanda, é sua capital administrativa, com mais de cem embaixadas, escolas internacionais de Direito, e o lugar onde reside e trabalha — há uma certa insistência nesse detalhe... — a rainha Beatriz.

Por mero acaso de uma apresentação feita pelo jornalista Delci Lima, antes de eu ir à Haia, perguntei ao Min. Francisco Rezek — que foi juiz da CIJ por nove anos —, se poderia me indicar um contato brasileiro no Palácio da Paz, construído, no início do século XX, com recursos do magnata americano do aço, Andrew Carnegie. Talvez alguns não saibam que, paradoxalmente, o principal tribunal do planeta não tem prédio próprio. Apenas ocupa o Palácio da Paz, onde também funciona o Tribunal de Arbitragem Permanente.

Com sua invulgar boa-vontade e sensibilidade, o Min. Francisco Rezek, mesmo não me conhecendo pessoalmente mas confiando na minha impessoal condição de desembargador aposentado, prontificou-se a me indicar a pessoa certa, no referido Tribunal. Com tal apresentação tudo ficou resolvido. Não só pude tirar fotos como também filmar o interior do Palácio da Paz, um símbolo do idealismo do homem no esforço de evitar todas as guerras.

Próximo à entrada principal do referido Palácio, mas já dentro do edifício, um relações-públicas imensamente simpático e cordial pediu-me que observasse atentamente uma grande estátua de mármore, distante cerca de vinte metros. Olhei, olhei, mas não notei nada de estranho na magnífica figura que me encarava com suas feições marmóreas. Não sabendo o que dizer, desisti da charada visual. Disse-lhe apenas que era uma bonita estátua, certamente com alguma mensagem simbólica, porque, do contrário, não estaria ali.

Explicou-me o guia que atentasse para as mãos e o tórax da estátua. Aí, notei algo ligeiramente estranho, uma espécie de falta de sintonia entre mãos e o conjunto da obra. Pareciam mãos grandes, de homem, em um corpo que sugeria mais u’a mulher forte. Aí o guia me explicou que a peça de arte, de modo proposital, mesclara caracteres masculinos e femininos. Simbolizava a fusão dos gêneros, homem e mulher na construção da harmonia universal. O escultor, por livre iniciativa — ou a pedido de quem lhe encomendara a estátua —, fizera uma estátua hermafrodita. Daí as mãos fortes e o peito um tanto cheio demais. Note-se que a estátua foi esculpida na primeira metade do século passado, quando as mulheres ainda não tinham direitos iguais em todas as nações ditas civilizadas.

O sufrágio feminino foi conquistado a duras penas, daí a pertinência, para a época, do hermafroditismo simbólico. Observo, incidentemente, que a mulher, por instinto natural e invencível de proteção da prole, é geralmente inimiga de guerras e outras carnificinas. Se todos os países fossem governados por mulheres certamente teria sido muito menor o número de conflitos armados. A mulher não aceita que seu filho, neto ou sobrinho, vá morrer sangrando numa trincheira; ou queimado vivo dentro de tanque ou aeronave em chamas. Já o homem maduro, empolgado pela vaidade belicosa — e confortavelmente distante dos campos de batalha... — aprova a participação da rapaziada nas guerras, principalmente quando presume que o país dele vai ganhá-la.

À medida que percorríamos as dependências do Palácio da Paz o guia nos mostrava vasos, pisos, bancos, quadros, estátuas e outras contribuições, cada detalhe dádiva de um país membro das Nações Unidas. Um banco de madeira, se não me engano feito de pau-brasil, fora nossa contribuição.

Graças à apresentação de Francisco Rezek consegui facilmente uma entrevista com a então presidente da Corte, a juíza Rosalyn Higgins que, com imensa cordialidade, inteligência — e paciência com meu inglês verbal gaguejante —, respondeu às minhas indagações. Note-se que, nas perguntas lidas, fui bastante incisivo, até mesmo indiscreto, na crítica implícita do ponto fraco — institucional, não pessoal — do Tribunal Internacional de Justiça: a possibilidade de o país, vencido na demanda, não cumprir a decisão do tribunal, o que implica na transferência do problema para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. E todo sabem que, no Conselho, basta o veto de um dos cinco membros permanentes para impedir medidas mais enérgicas contra o país que não cumpriu a decisão judicial. Um outro ponto fraco, também institucional — contra o qual nada podem fazer seus juízes, atados que são ao estatuto da Corte Internacional —, está no fato de os processos dependerem do consenso, isto é, um país só será julgado se concordar com isso. Por outras palavras, ainda existe, na ordem internacional o direito de “recusa de jurisdição”, algo superado ha muitas décadas no direito interno de todos os países civilizados. É evidente que o país que sabe estar errado não irá aceitar o julgamento de seus atos. E contra esse absurdo os juízes da CIJ nada podem fazer. Esse detalhe retrógrado decorre da invencível desconfiança mútua entre os povos, algo que precisa ser melhorado, mas com exemplos, não meras palavras.

Não obstante tais senões, os juízes internacionais têm se esforçado tanto, pessoalmente, para compensar as deficiências institucionais, que os casos de descumprimento de decisões sobre o conflito entre estados soberanos é mínimo, como nos explica a presidente entrevistada. Enfim, a CIJ tem sido imensamente útil, daí o merecido prestígio de que goza. Resta um passo além, no sentido de cancelar a referida recusa de jurisdição, empenho que espero um dia entrar na agenda de intenções de Barack Obama e outros influentes chefes de estado.

O único ponto fraco do DVD, confesso, está em mim mesmo, no meu inglês tatibitante ao entrevistar Madam Rosalyn Higgins. Mas a imensa delicadeza da jurista procurou relevar o fato e nos deu uma convincente explicação sobre o que lhe foi perguntado. Como saliento no disco, o incidente serviu para comprovar a necessidade da prática constante do inglês falado. Quem quiser penetrar na área internacional não pode se satisfazer com a mera capacidade de ler textos em língua estrangeira. Quando menos se espera, é a boca, não os olhos, que precisa trabalhar.

A jurista brasileira Sylvia Steiner, do Tribunal Penal Internacional, também prontificou-se, com sua elegância, competência e clareza, a esclarecer o papel da corte em que trabalha, criada para julgamento de políticos que praticaram crimes contra a humanidade e não foram punidos em seus respectivos estados. À época da conversa filmada não havia o problema de como prender o presidente do Sudão, que conta com o apoio de alguns chefes de estado e se recusa a comparecer a seu julgamento. Sendo o TPI um órgão ainda novo, e enfrentando de uma situação absolutamente nova, a engenhosidade jurídica dos seus juízes certamente encontrará a solução mais sensata e possível para o delicado impasse. Sua Excelência aproveitou a oportunidade da entrevista para dar algumas “dicas” aos interessados em crescer profissionalmente na área internacional.

Regressando ao Brasil ocorreu-me a idéia de entrevistar o Min. Francisco Rezek e depois o Prof. Luiz Olavo Baptista, dois nomes que dispensam apresentação. Quem os ouvir e sentir, ao vivo, a evidente sinceridade de suas palavras ficará, não há dúvida, estimulado a estudar o Direito Internacional, tanto o público quanto o privado. Embora consciente de que, profissionalmente, no momento, o Direito Internacional Privado oferece mais campo que seu “irmão” jurídico, pois o Brasil não tem tido necessidade, felizmente, que demandar contra seus vizinhos, em questões de fronteira. E nosso atual presidente — também felizmente, a meu juízo — é propenso à conciliação. Tenta resolver os problemas mais com um gesto amigo e compensações do que com gritos ou socos. O Brasil está inserido em um continente coberto por nuvens políticas carregadas de eletricidade anti-americana, prontas a emitir raios à menor provocação. Fosse o nosso presidente um homem de pavio curto já estaríamos em guerra pelo menos com a Venezuela, Equador, Paraguai, Uruguai e Argentina.

Nos próximos dias verificarei o interesse das livrarias e faculdades de Direito e Relações Internacionais em distribuir cópias do referido DVD, transformando o disco em incentivo para o estudo dos temas internacionais. Em vez de um DVD para uso apenas particular — como era meu objetivo inicial —, poderei transformá-lo em fonte de incentivo cultural. Assim espero.

Como toda idéia puxa outra, penso que o atual momento de dificuldade econômica global e o relativo prestígio brasileiro nos foros internacionais, é propício para o Brasil criar, aqui mesmo, um centro de estudos e preparação de profissionais na área internacional. Um centro realmente internacional — sobretudo sério... —, estimulando jovens bacharéis de toda a América Latina — e talvez de outros continentes — a aqui vir estudar e se preparar para o novo mundo — retificado! — da globalização. Por que, pergunta-se, não criar, no Brasil, o equivalente qualitativo cultural dos grandes centros de estudos internacionais, hoje existentes em Paris, Oxford, Cambridge e Harvard? Alguns professores que lecionam lá não fariam objeção a aqui também lecionar em determinados períodos do ano. Tais convites, obviamente aceitos, dariam o tom de respeitabilidade cultural necessária a uma iniciativa desse gênero. E a “Sorbonne brasileira” teria um diferencial: além de ensinar o que já se ensina nas grandes universidades de Direito Internacional estudaria, com especial empenho como apressar o criação de um governo mundial democrático, hoje um tema ainda algo marginalizado.

A globalização é irreversível. Recentemente, já foi acolhida a idéia, externada por alguns chefes de estado, de que é urgente a necessidade da criação de mecanismos controladores e moralizadores das altas finanças. Controle impossível se mantida, fanaticamente, a soberania absoluta, cada país fazendo o que bem entende, indiferente à repercussão de suas práticas na área internacional.

Um detalhe que me surpreendeu, no depoimento de Francisco Rezek — e ninguém conhece o assunto melhor do que ele — foi a informação de que temos, no Brasil, juristas monoglotas que conhecem o direito norte-americano melhor que muitos juristas daquele país. Falta-nos, porém, para nos habilitar ao trabalho na área internacional, o domínio de algumas línguas estrangeiras, falha a ser sanada com o centro de estudos acima sugerido. Não basta “falar” inglês ou francês, por exemplo. É preciso dominar o vocabulário jurídico específico em tais línguas.

Deixo aqui a sugestão que, por mero acaso, poderá cair em ouvidos alertas. O Min. Celso Amorim, coincidentemente, é alerta, lúcido e equilibrado. Bem que poderia pensar no assunto. Se não ele, outros, igualmente competentes, poderão acariciar e materializar essa idéia, que não pertencerá a qualquer partido político, mas ao Brasil e ao Mundo.

(19 - 5 - 09)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O poder da mídia

Recebi, ontem, um “newsletter” (boletim informativo) do site “Praça Virtual” dizendo que no dia 6 de maio, uma quarta-feira, à noite, cerca de 300 pessoas haviam se reunido em frente do Supremo Tribunal federal exigindo, aos gritos, inclusive com auto- falante, o impeachment do Min. Gilmar Mendes, presidente do STF e do CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Este, relembre-se, é o órgão encarregado de fiscalizar o Poder Judiciário, o que inclui, obviamente, a fiscalização do próprio ministro fiscalizador. Por outras palavras, existe, no caso específico de qualquer presidente do STF — seja ele quem for —, uma auto-fiscalização, só evitável quando o possível investigado se afastar, voluntariamente ou não, da sua função de presidente do CNJ. Algo difícil de ocorrer porque o instinto de defesa é inerente a todo ser vivo.

O “newsletter” veio acompanhado de filme demonstrando a presença inegável de uma multidão. Apenas assistindo o filme torna-se impossível fazer uma avaliação mais correta do número de pessoas participantes porque o operador, obviamente amador, filmava dentro da multidão, gritando contra o atual presidente do STF e elogiando o Min. Joaquim Barbosa. Diz, o mesmo boletim, que foram acesas 10.000 velas no local. Com ou sem exageros, justa ou injusta o manifestação, o fato é que ocorreu um protesto, inusitado em seu volume e finalidade.

As queixas, veementes, giravam em torno do temperamento dominador do magistrado visado; do seu gosto pela presença da mídia; da sua atuação mais para político do que para magistrado; da suposta ou real parcialidade em favor de um conhecido banqueiro, sob julgamentos, e dos criminosos do colarinho branco, em geral. O boletim em referência censurava, especialmente, o fato do controvertido magistrado ser “dono” de um centro de estudos jurídicos, em Brasília, que conta, entre seus professores remunerados, vários magistrados, inclusive do próprio tribunal. Circunstância que — segundo opinião de pessoas que acrescentaram comentários à notícia — poderia, em tese, abalar o grau de independência dos seus colegas de toga em relação às opiniões do referido jurista, nos julgamentos mais controversos.

Antes de prosseguir nesta narrativa deixo registrada minha convicção de que a mera circunstância de alguns ministros do STF darem aulas no centro de estudos do Min. Gilmar Mendes não terá influência na manifestação de seus votos. Juristas que chegaram ao cargo de ministro do tribunal mais alto do país não iriam vender suas almas por uns poucos mil reais a mais no seu ganho mensal. Seria verdadeiramente estúpido rebaixar-se, mormente por tão pouco. Se isso, por descabelada hipótese, ocorresse, seria assunto mais de interesse da Psiquiatria do que da Moral. No entanto, considerando o pouco conhecimento do que seja a função judicial, por parte da maioria de nossa população, mais cautelosos serão os magistrados que preferirem não dar aulas ou palestras remuneradas na escola jurídica do ministro. Dizendo isso estou sendo subserviente à desconfiança instintiva das “massas”? Estou, mas com fundamento, porque as “massas” compõem a maior parte da nação: trabalham, produzem riqueza, pagam tributos — diretos ou indiretos — e, conseqüentemente, têm o direito de ter alguns preconceitos de ordem moral. E não são apenas os componentes das “massas” que preferem ver seus magistrados máximos livres da mais remota hipótese de influência anômala. Magistrados devem ser influenciados, claro, mas pelas provas e argumentos da partes, dentro dos autos dos processos.

Agora, um detalhe que me intrigou e indica uma perigosa distorção do papel informativo da mídia brasileira, distorção aprofundadora da fenda que separa “ricos” e “pobres”. Tal brecha não deveria chegar a envolver a Justiça, concebida, pelo menos teoricamente, para proteger os direitos de todas as classes sociais.

Assinante, que sou, de um importante jornal paulista, não constatei, no dia seguinte, nem no outro, qualquer notícia a respeito da manifestação que, pelo filme, não era insignificante. E a televisão de canais principais também silenciou sobre o protesto, seja ele justo ou injusto. O que isso comprova? A perigosa convicção da mídia mais importante de que não é sua obrigação retratar o que ocorre. Escolhe e publica somente o que agrada aos interesses dos donos dos jornais. E parece ter havido, no caso, um acordo de omissão deliberada de notícia desagradável, a presunção de que o que não está na mídia — jornais e televisão — não existiu, é pura ilusão de ótica.

Argumentam os estudiosos das “sociedades secretas” que se um pequeno grupo de poderosos, realmente poderosos, quisesse tanger o gado — digo, a população mundial — em uma determinada direção, bastaria comprar ou convencer os donos dos principais jornais e televisões do mundo para direcionar a formação da opinião pública em um determinado sentido. Obviamente, nunca contrário aos interesses dessa pequena minoria. A voz de um ou outro discordante, “a besta excêntrica”, pouco poderia fazer para impedir isso. Algumas décadas atrás, quando se queria abafar uma voz inconveniente, embora verdadeira, uma artilharia de críticos bem remunerados fazia isso com alarde e eloqüência. O público, com pouco tempo para ler e meditar, ficaria desnorteado com tantos ataques bem redigidos e concluiria contra o discordante, assim pensando: — “Não é possível que só “ele” — o “espírito de porco” — esteja certo!”.

Hoje, essa técnica está superada: em lugar da crítica é melhor o silêncio. Nos jornais e televisões. Muito mais eficaz que a crítica expressada. É que, ao criticar os argumentos verdadeiros que incomodam, o crítico encomendado não pode deixar de apresentá-los, ainda que de maneira retorcida. Porém, torcida, a verdade reage — à semelhança do que ocorre com um pano molhado — fazendo pingar suas gotas de veracidade. Gotas com um poder de persuasão triplicado só pelo fato da tentativa de esmagamento. Melhor, portanto, hoje, o silêncio total da imprensa interessada em direcionar a opinião pública.

Um exemplo da força persuasiva da mídia – seja ela mentalmente honesta ou desonesta — está nas palavras de um chanceler (primeiro ministro) alemão, Otto Von Bismarck, o “Chanceler de Ferro”, falecido em 1898. Possuidor de uma forte personalidade, unificador da Alemanha, exerceu grande influência no século dezenove. Conhecia, íntima e pessoalmente, os embates de interesses subterrâneos que precedem os fatos que apareciam na imprensa de seu tempo. E o que disse Bismarck sobre a Guerra de Secessão dos Estados Unidos? Explicou que essa famosa carnificina entre o norte (anti-escravista) e o sul (escravocrata) foi, de certa forma, “fabricada”, ou altamente estimulada, por poderosos interesses econômicos europeus, preocupados com o crescimento econômico da América do Norte. Temendo a concorrência americana, no século XIX, esse grupo de altos financistas europeus decidiu enviar à América do Norte seus inteligentes formadores de opinião pública para enfraquecer o “perigoso concorrente”, dividindo-o em dois: norte e sul. Dois países, talvez com interesses conflitantes. Se Lincoln não tivesse reagido, impedindo a separação do sul, os EUA não teriam se tornado a grande potência que todos conhecemos. A técnica de “fatiar o inimigo”. Quem quiser saber melhor sobre o assunto, que consulte, mesmo na internet, as citações, ou pensamentos do arguto político alemão.

Meditando sobre a explicação de Bismarck, ela me parece de toda verossimilhança. Sempre considerei espantoso, desconfiável, que cidadãos americanos, os “ianques” do norte, grande maioria branca, fossem se oferecer para morrer ou ficar aleijados apenas para que os negros, do sul, fossem libertados da escravidão. Sentimentos de solidariedade contra injustiças sociais praticadas apenas contra terceiros — que não são nem nossos amigos nem parentes — dificilmente chegam ao ponto de colocarmos em risco nossas vidas e patrimônios. Ainda mais quando os injustiçados são diferentes de nós, até na cor. A “libertação dos escravos”, motivação oficial para o violento conflito que quase arruinou a “promissora” — na época — nação americana parece mesmo algo “armado” pelo grupo de financistas europeus, interessados apenas em proteger seus interesses comerciais, como nos explica Bismarck. Este não teria motivo para distorcer a realidade. Pronunciou-se como um historiador.

Voltando ao Brasil e ao protesto contra Gilmar Mendes, minha irrelevante opinião pessoal é a de que o referido jurista deveria, por sua própria iniciativa, e no momento próprio — não exatamente agora, porque pareceria ter sido forçado — deixar a magistratura e ingressar de corpo inteiro na política, espaço mais adequado a seu temperamento e às suas convicções. Será mais útil — e falo sem ironia — como político, porque como tal poderá mexer em um vespeiro — a evasão de divisas — que explica o atual conflito brasileiro entre prender ou não prender os “ricos”. Como magistrado ele não poderá, às claras, dizer que esse negócio de guardar dinheiro no exterior não é tão grave, considerando a pesadíssima carga tributária brasileira e o medo — justificado após o Plano Collor —, do governo congelar as reservas de pessoas que não são nem traficantes nem contrabandistas.

Como dublê — talvez não muito consciente disso — de magistrado e político, sugerindo, ou melhor, pressionando isso e aquilo, Gilmar Mendes acaba desfrutando de uma condição privilegiada no jogo político: ataca mas quase não pode ser atacado. Há o receio da crítica franca a um homem com tanto poder. É como acontecia com os padres que entravam na política, décadas atrás. A batina era uma proteção extra. Isso sem falar no medo do castigo divino por parte dos eleitores. Como magistrado, e justamente no cargo mais alto, Mendes dispõe de um escudo invisível, porém real. Advogados temem se pronunciar contra ele, na mídia, porque podem precisar de seu voto em um eventual futuro julgamento. Se a crítica, em um jornal, for pesada, embora talvez verdadeira, há o risco de prejudicar o interesse do cliente, que não tem nada com isso. E qual o jornalista absolutamente certo de que um dia não estará como réu em um crime de imprensa? Juízes também guardam para si opiniões desfavoráveis ao ministro porque, como é normal, querem crescer dentro da carreira. Manifestar-se contra um alto magistrado que ocupa o cargo máximo e, além disso, preside o órgão disciplinar dos juízes, é correr o risco de não ser promovido, mesmo merecendo. Isso, ainda, se o juiz, como “autoridade”, não for processado criminalmente por ter autorizado uma escuta telefônica que ao ministro parecer ter sido abusiva. O que é “abusivo”? A atuação do ilustre ministro tem sido quase toda no sentido de intimidar a repressão aos criminosos do colarinho branco.

Gilmar Mendes está certíssimo no proibir a invasão de escritórios de advocacia para apreensão de computadores documentos de clientes confiados a seus patronos. Certo, também, ao criticar um excesso de escuta telefônica. Errado, porém, quando sugere processo criminal contra qualquer vago “abuso” na escuta, mesmo autorizada por juiz. Receosos, os juízes tenderão a não permitir escuta alguma.

A crítica maior contra ele está na total falta de interesse, ou sugestão para modificar a presente legislação, ou jurisprudência, que assegura total impunidade dos criminosos do colarinho branco. Antes do derradeiro julgamento, no STF, o acusado poderoso aguardará, em prudente distância, o resultado, celular na mão, talvez com passaporte e passagem aérea no bolso. Se condenado à pena privativa de liberdade, sumirá. Se condenado a prisão domiciliar talvez não fuja. Para corrigir isso bastaria que a jurisprudência mudasse no sentido de que, confirmada, em apelação, a condenação, o réu aguardaria, preso, futuros julgamentos, seja no STJ, seja no STF. Do contrário, a fuga será sempre um fato. Quem seria tão tolo e passivo, deixando de fugir, dispondo de dinheiro para tanto?

Cumpre frisar, aqui, que “colarinho branco” não é sinônimo de desonestidade. A criminalidade é um fungo humano que pode brotar em qualquer camada social. Pode surgir nos pobres, nos ricos e na classe média. É uma espécie de fatalidade na imaginativa espécie humana. Talvez ocorra em menor proporção na classe média porque ela está mais livre das duas tentações extremas: a privação de quase tudo — como ocorre na pobreza —, e a ganância, força ou vício quase irresistível que atormenta as pessoas que já conseguiram muito mas acham, por vaidade, que não podem parar onde estão, em posição inferior aos concorrentes, “que só por isso se imaginam mais inteligentes do que eu”.

O “colarinho branco”, no geral, presumo, gostaria de viver em um país ordeiro e justo. Se alguns resolvem sair um tanto da linha o fazem mais na área tributária, porque se sentem um tanto “roubados” pelo governo. E quando o empresário vê os concorrentes se beneficiando com a impunidade — subornando fiscais e fazendo truques de contabilidade —, pergunta-se se não está sendo tolo cumprindo rigorosamente a lei. Daí o apelo quase irresistível para o Caixa 2. Mas onde guardar o dinheiro, senão no Exterior? Aí está, penso, o foco do tumor, cuja secreção purulenta acaba afetando a saúde funcional de um Paulo Lacerda, homem de valor. Gilmar Mendes, fora da magistratura — dentro, não teria condições —, poderia tentar convencer a comunidade de que as evasões de divisas e crimes assemelhados poderiam, com uma nova lei, ter conseqüência apenas econômica, com substancial fatia do dinheiro “devolvido” aos cofres públicos. Solução jurídica infinitamente melhor, para o país, no ângulo econômico, do que colocar — hipoteticamente apenas — na prisão um talentoso financista que poderia aplicar sua “expertise” gerando riqueza para a comunidade. Do jeito que está a jurisprudência hoje, o réu nem será preso nem o dinheiro devolvido.

O “povão” — a “rua”, no dizer do Min. Joaquim Barbosa — tem razão em seu grito de inconformidade. Isso porque, na prática, na realidade nua e crua, os poderosos autores de crimes financeiros não pagam pelos seus crimes, tecnicamente falando. A punição é moral — o abalo da reputação — e, claro, a saudável obrigação de remunerar muito bem seus competentes advogados, que acabam funcionando como peculiares e involuntários justiceiros, merecendo elogios isso. Essa é a realidade, percebida, sem panos quentes, pela comunidade brasileira. Daí o desejo de que Gilmar Mendes utilize sua energia e cultura na área própria, atacando e sendo atacado como um político igual aos outros. Impeachment, hoje, a meu ver, não tem possibilidade de sucesso, porque ele sempre poderá argumentar que agiu dentro de suas convicções estritamente jurídicas. E quem pode fotografar o que ocorre na intimidade do cérebro humano?

(8-5-09)