sábado, 21 de janeiro de 2023

EXPLOSÃO NO VENTRE DO MACGYVER

 


Foto divulgação 

            Soube, dias atrás, através de um jornalista de crimes — sempre exagerando nas descrições —, que o MacGyver faleceu, vítima de uma explosão que lhe “dilacerou o ventre, espalhando suas poderosas tripas”. Quem me contou isso não resistiu à imitação da contundência dos roteiristas de filmes policiais americanos. Acrescentou ainda que “os intestinos dele foram recolhidos às colheradas”. Imagem forte, despertando imediato interesse dos leitores, pois vem sendo repetida com alguma frequência na fala dos endurecidos policiais cinematográficos de Los Angeles, Chicago e Nova Iorque. Ou onde quer que rechonchudos mantenedores da lei — bebendo café em canecas e comendo rosquinhas — troquem piadas cínicas sobre os pedaços das vítimas estraçalhadas. A explosão ainda feriu um médico cirurgião, bem como uma enfermeira. É possível que ela venha a ficar cega.

            A junção do nome à referida explosão leva qualquer leitor a pensar imediatamente em terrorismo. Seria esse MacGyver algum irlandês revoltado com o domínio inglês sobre a Irlanda do Norte? O artefato teria detonado no momento errado, quando manipulado no colo? Era para ser disfarçadamente “esquecido” dentro de uma sacola em um aeroporto?

            Mais. Se o leitor ainda for informado de que nosso homem, quando bem jovem, era conhecido, dentro da sua turminha, pela alcunha de “Maçarico”, a conclusão lógica é a de que ele, além de um tremendo terrorista, “detonador” de bombas, era também um ardiloso arrombador de cofres-fortes. Enfim, um homem execrável.

            Sirva este relato como advertência pedagógica contra a fácil tendência humana de formar juízos distorcidos pela imaginação que, como um cavalo doido, desembesta pelo mundo, relinchando estórias sem conexão com a realidade. É um relato — desculpe a falta de modéstia —, que deveria ser imposto como leitura obrigatória a todos os juízes em início de carreira, obrigados que são a julgar seus semelhantes com provas indiciárias e depoimentos de falíveis testemunhas.

     Para começar, esse MacGyver não era irlandês, nem escocês, nem americano. Era brasileiro, cearense. “MacGyver” era apenas seu apelido, recebido logo que surgiu na televisão, na década de 1980, um seriado — “Profissão Perigo” — em que o personagem principal inventava saídas geniais, mecânicas ou elétricas, para qualquer tipo de dificuldade criada pelas forças do mal. O simpático e ruivo herói da televisão está, mero exemplo, amarrado a uma cadeira. Pode movimentar apenas o dedão do pé, aproveitando o buraco de um tiro no sapato, enquanto, ao seu lado, o tique-taque angustiado de uma bomba-relógio cochicha que a coisa vai explodir em cinco minutos. O recinto, por sua vez, está impregnado de gases letais. Mas, de repente, olhando para o chão, o imaginativo agente da lei vê, digamos, um prego, um arame e uma porca — de metal, claro. Mesmo que fosse de carne, a porca na certa teria serventia. Genial, com um Q.I. improvisador inimaginável, o herói do seriado logo arquitetaria uma combinação engenhosa de prego, arame e porca. Esta, sendo eventualmente um animal, é induzida a roer a corda que prende seu tornozelo — o dele, MacGyver —, após o que ela recua até que seu gordo traseiro funcione como uma tampa, interrompendo a saída do gás venenoso. Então, agarrando o arame com o dedão liberado, o herói mexerá no ponto certo do artefato, desarmando a bomba segundos antes de explodir. Tudo sem muita pancadaria porque a marca registrada do simpático herói era a inteligência.

            Nosso “MacGyver” cearense não chegava ao ponto de se igualar ao homônimo do seriado — não promovido, nunca teve o convite de um diretor de cinema —, mas foi sua propensão para as invenções e “saídas” inesperadas que gerou o apelido entre a rapaziada. Além disso, tinha o cabelo avermelhado — resultado da sensualidade holandesa por cima de nossas índias mais bonitas — não sendo de estatura muito mais baixa que seu original americano. Era também muito brincalhão.

            Que o nosso “MacGyver” cearense, tinha uma mente fértil, ninguém pode negar. Bastariam dois ou três exemplos para ilustrar os recursos inesperados de sua imaginação.

            Quando na faixa dos vinte nosso biografado passou vários meses na Alemanha. Foi lá com a cara e a coragem. Era maluco por alemãs doidonas e conhecia um pouco a língua local. Se desembarcou na pátria de Goethe com algum dinheiro, seriam no máximo uns duzentos dólares. Voou aproveitando o preço da “baixíssima temporada” — mais baixa seria impossível —, utilizando diversas rotas, dormindo horas e horas nos aeroportos, enquanto esperava o embarque para o voo seguinte. Dava como certo que, com sua engenhosidade natural, conseguiria trabalhar, mesmo com a polícia da imigração vigiando. No seu caso, não haveria tanto perigo porque seu cabelo ruivo despistava a origem sul-americana. Poderia passar por alemão, antes de falar.

            Ocorre que, como é sabido, uma coisa é viajar como turista; outra, como imigrante. Sabe-se que os empresários locais tiram proveito do medo que acossa o trabalhador irregular. Pagam bem menos. E nosso amigo, se se livrou da fome, não conseguia se defender do desgraçado inverno alemão.

            Como tudo é pago na Europa, o aquecimento de seu quarto dependia da inserção de uma moeda em determinado aparelho de aquecimento, que não posso aqui bem descrever porque não o vi, sabendo do caso pelo próprio MacGyiver. O fato é que, com a moeda introduzida na fenda, o quarto esquentava. Se não, o frio congelante penetrava nos seus ossos, roendo-os, chupando e dando risadinhas sádicas.

            Ocorre que, certa noite de sexta-feira, o MacGyver, acompanhado de uma garota meio taradona, gastou, entre bar e hotel, muito além da conta, voltando para casa praticamente sem tostão. E só receberia seu parco salário dias depois, não havendo a mais remota possibilidade de um adiantamento. Assim, em pleno mês de janeiro, num dos invernos mais rigorosos da década, com registro de várias mortes, mesmo em ambientes fechados, viu-se no terrível dilema de, ou gastar as últimas moedas comendo — mas congelando-se em seguida —, ou se aquecendo — mas depois perecendo de fome. E o frio era duplamente torturante porque, nos últimos dias, nosso cearense não parava de pensar nas cálidas areias da praia de Iracema na saudosa Fortaleza de seu Ceará.

            Passar dois dias no quentinho, mas em jejum, seria exigir demais, mesmo porque seu apetite era excelente, apesar de magro. Mas como vencer o frio? Usar jornais entre dois cobertores era uma boa ajuda, mas insuficiente, porque o frio parecia congelar até as notícias. Se os jornais lhe permitiam escapar da morte, não conseguiam vencer a insônia. O mero ato de dormir exige algum conforto. O sujeito só dorme, no extremo frio, quando já está morrendo.

            Aí o MacGyver resolveu utilizar sua veia inventiva, que alguns anos depois acabou virando profissão. Levantou-se da cama, envolto no cobertor, os dentes batendo como castanholas, e passou a estudar o aquecedor. Como o estudo demorasse, ele, para se aquecer — talvez por sugestão do som das castanholas de seus dentes —, sapateou um pouco, erguendo os braços como um dançarino de flamenco, lembrando-se de uma fogosa espanhola de pernas cabeludas, perita nessa dança, com quem tivera um caso rápido um mês antes. Pensando nela terminou o artístico aquecimento com um grito de “Olé!” — inexplicável como tantas outras coisas em sua vida.

            Após várias espiadas e reflexões em frente do aparelho, descobriu que talvez tivesse encontrado a solução para seu problema. Teria que ser algo que não envolvesse um risco muito alto de processo criminal — como seria o caso se arrombasse o aparelho. Cadeia, mesmo em Primeiro Mundo, faz mal à alma e ao casto traseiro, como era o seu. Pensou ainda que, se introduzisse na fenda um objeto semelhante a uma moeda — um disco de lata, por exemplo —, “enganando” a engenhoca com seu formato e peso — o aquecedor talvez até funcionasse porque, falta-lhe, por enquanto, a malandra inteligência humana. Mas o funcionário da empresa que explora tais aparelhos, quando fosse recolher as moedas, encontraria o objeto do crime. E aí ele, MacGyver, entraria em cana pela falcatrua.

            Teria, portanto, que inventar uma “moeda” que “se evaporasse” depois de acionado o mecanismo. Desaparecendo a “moeda”, o funcionário pensaria que se tratava apenas de um defeito da máquina. Assim, pensando, pensando e repensando, agora deitado de costas — sua posição preferida para solucionar problemas — descobriu a chave do enigma.

            Levantou-se novamente e pôs-se a examinar as diversas tampinhas de garrafas de refrigerantes e outras bebidas que havia em cima da mesa de seu quarto. Escolheu uma delas, pelo formato e tamanho, e a encheu de água. Após, com extremo cuidado, colocou a tampinha do lado de fora do batente da janela, esperando que a água congelasse. E como a temperatura era baixíssima, não demorou muito para que o líquido se transformasse em gelo em formato de moeda. Torcendo para que desse certo, porque o frio estava de rachar, MacGyver introduziu o disquinho de gelo na fenda do aparelho, ato que imediatamente provocou seu funcionamento.

            Foi uma descoberta e tanto, permitindo que nosso amigo passasse um fim de semana bem mais confortável e sem jejum. Mas, como sempre, as pessoas tendem a abusar das soluções fáceis. Aqueceu o quarto durante algumas semanas, sem gastar uma única moeda. Chegou a esquecer que ali, ao contrário do Ceará, o calor era pago.

            Até que a casa caiu. Um dia, ao chegar do trabalho, estava sendo esperado por dois funcionários da empresa que explorava os tais aquecedores. E uma viatura policial, com dois agentes, estava estacionada em frente, junto à calçada, como que aguardando uma decisão.

            — “Estou frito!” — deduziu o MacGyver. Mas a coisa não terminou tão drasticamente como ele imaginara.

            Um dos homens à paisana, muito seguro de si, não perdeu tempo com amabilidades. Sem sequer lhe apertar a mão, foi logo dizendo:

            — Nós sabemos que você está utilizando o aparelho... Não adianta negar... O que nós não sabemos é que técnica você usa. Já imaginamos tudo que é possível imaginar mas não conseguimos descobrir o artifício. Não há sinais de arrombamento ou coisa parecida... Trabalhamos no setor técnico da empresa e nosso papel é corrigir qualquer falha que permita aos usuários o uso de algum truque, como aquele que você está utilizando. Se você nos disser como consegue fazer a máquina funcionar sem usar moedas, não será preso. Somos engenheiros. Modificaremos o aparelho para que ninguém possa repetir a manobra. Se não quiser contar o segredo será detido agora mesmo e levado à Delegacia. O que decide?

            Não havia muito o que escolher. Revelou o truque, o que provocou uma expressão de espanto no técnico, que ficou de boca aberta.
                       O alemão cumpriu a promessa, não levando o assunto formalmente à esfera policial. Mas nosso amigo, por via das dúvidas, no dia seguinte mudou de pensão.

            Um outro fato que explica a origem de seu apelido ocorreu antes de sua ida à Alemanha.

            Um tio dele vinha se queixando de que os frequentadores de bares, perto de sua casa, costumavam à noite “aliviar os rins”, como se diz, num canto do muro, aproveitando a escuridão propiciada por algumas árvores.

            Ocorre que, se a bexiga dos bêbados ficava, com essa prática, aliviada, o mesmo não acontecia com as ventas do tio e muito menos com o da tia, mulherzinha nervosa, azeda, que não parava de infernizar o marido, exigindo que “tomasse logo alguma providência!”.

            Mas que providência tomar? Chamar a polícia? Colocar uma placa dizendo ingenuamente que “É proibido urinar neste local”?

            O MacGyver, ouvindo a queixa, saiu da sala para examinar a área — sempre fedorenta, porque não adiantava lavar semanalmente — e logo encontrou a solução: instalou, no dia seguinte, um fio elétrico, descascado, na junção das duas paredes — no “mictório” de fato, não de direito —, protegendo-o com uma tela, de um modo que não pudesse ser tocado por alguma criança.

            A invenção deu certo. Quando os “aliviadores” devolviam a cerveja metabolizada no cantinho eletrificado, a eletricidade chegava aos mal-educados através do jato, punindo o infrator com um inesquecível choque educativo, pois aplicado em região muito sensível. Como a corrente elétrica era de 110 volts, não havia perigo de morte, mas a “cadeira elétrica genital” fez com que o mau-cheiro local quase desaparecesse. E o tio, prudentemente, jamais disse às vítimas indignadas — ainda ficavam bravos, os porcalhões! — que o choque era proposital.

            Explicada a origem do apelido do MacGyver, cumpre esclarecer as circunstâncias de sua morte. Se não era irlandês, nem terrorista — pergunta-se —, como foi que morreu de uma explosão no ventre?

            Havia realmente — e dizemos isso com toda seriedade científica — um certo mistério biológico relacionado com o aparelho digestivo do nosso amigo, de saudosa memória. Aliás, fatos estranhos podem acontecer em qualquer parte do mundo. No Japão, por exemplo — deu no jornal —, um cidadão ficava literalmente de porre mal acabava de almoçar. E não bebia. Foi preciso uma cirurgia para curar a anomalia. O estômago desse japonês segregava uma química toda peculiar — uma enzima, talvez —, que transformava em álcool, em alguns minutos, os carboidratos ingeridos. Assim, uma simples porção de arroz, por exemplo, transformava-se no equivalente a vários copinhos de saquê. Enfim, o estômago do oriental era uma destilaria viva. Defeito que, felizmente, não pode nem deve ser reproduzido por via cirúrgica porque, caso contrário, não faltaria ansiosa clientela a implorar aos cirurgiões uma conversão estomacal, visando a “ficar igualzinha ao estômago do japonês”. Muita gente dispensaria a compra do saquê no bar da esquina, optando pela produção caseira. Economia até de garrafa e de copos.

            Mas o mistério biológico do MacGyver não estava no estômago propriamente. Estava mais em baixo, nos intestinos.

            Expliquemos sem rodeios: o MacGyver, assim como fermentava de inventividade na cabeça, borbulhava espantosamente na área intestinal — não sei se intestino grosso ou delgado. Algo impressionante, merecedor de monografia em Congresso de Gastroenterologia. Alguma coisa havia na flora — ou fauna, ou que melhor explique o diabo, porque aquilo não podia ser obra de Deus — dos seus tubos intestinais que fazia com que a produção de gases de nosso amigo fosse pelo menos cinco ou dez vezes superior à normal. Cinco ou dez é algo impreciso, reconheço. Mas tais coisas não se medem, apenas se sentem. E talvez houvesse algo genético nessa anomalia porque, não o pai, mas o avô dele era conhecido no sertão alagoano como “Coronel Ventania”. Cognome estranhável numa região conhecida pela suavidade de seu clima e seus ventos. E não se levante a hipótese de que o apelido poderia ter origem em um temperamento turbulento. Todos os que o conheceram afirmavam ser ele um velho sereno, acomodatício, amigo da leitura e que passava o dia sentado em alguma cadeira de balanço com assento de palha trançada, tinha que ser. E era especialmente preocupado com as vias respiratórias das pessoas que viviam sob o seu teto. Por causa disso, mantinha as janelas sempre abertas — dizia que era por causa do calor.

            Mas, dirá o leitor que gosta de exibir sua inteligência: — Tudo bem, mas “Maçarico” implica fogo. E onde está, no caso, o fogo do apelido?

            É um outro ponto em que, para explicar verdadeiramente, necessito ainda mais tolerância, ou até mesmo caridade do refinado leitor. Eu bem gostaria que nosso amigo se notabilizasse por uma outra característica excepcional qualquer, como por exemplo a memória. Ou mesmo algo corporal, como a força muscular. Ou até mesmo algo visceral, vá lá, como, por exemplo, a capacidade de beber muito sem ficar embriagado. Mas os caprichos da natureza são insondáveis e eu me vejo agora hesitante entre a elegância, a compostura, e a necessidade de relatar um fato da vida real que teve consequências na área médica e resultou em morte.

            Fosse ainda vivo o escritor Émile Zola, eu lhe pediria uma mãozinha para redigir o trecho que se segue, pois o velho mestre daria um jeito de conciliar tópicos “baixos” com a alta literatura. Para ele, realismo não era problema. Como não adianta sonhar e não seria justo deixar as coisas pelo meio, vejo-me obrigado a prosseguir sozinho, jurando de pés juntos que não se trata de apelação.

            No caso, a denominação “Maçarico” originou-se de uma infeliz brincadeira feita pelo MacGyver quando ele tinha uns quinze anos. Muito brincalhão, e querendo ganhar uns cobres, fez uma aposta de que “criaria” um jato de fogo igual ao de um maçarico” sem usar nada mais que um palito de fósforo. Seus colegas de escola — uma canalhada esperta que até se deu bem na vida, algo nada estranhável — disseram que aceitariam a aposta mas com a condição de que ele não poderia se limitar a encher a boca com alguma bebida alcoólica, devolvendo-a, em seguida, na chama. Isso seria um truque banal, muito comum em circos do interior.

            MacGyver aceitou a restrição. Acendeu o fósforo, ergueu uma perna e colocou a chama na posição adequada. O jato de fogo — um lança-chamas em miniatura — que emitiu foi de assustar, chamuscando os cabelos de uma mocinha que estava de costas, conversando com uma amiga. Todos esperavam que o dragão largasse fogo pela frente. Assim, ganhou a aposta, mas também um apelido pernicioso que sempre o embaraçava quando era indagado quanto à origem do apelido, “Maçarico”. Seus amigos, ex-colegas perdedores da aposta, gostavam de, em festas e reuniões sociais, induzir as moças a lhe perguntar a origem do apelido. E riam abertamente quando o MacGyver inventava uma mentira inocente para explicar tão estranha ventilação. As moças, vendo as risadas dos amigos, ficavam meio desconcertadas, não entendendo onde estaria a graça na explicação tão banal.

                        Dizem que o inventor nato tem uma mente toda especial. Ele não se interessa muito por saber como são as coisas. Quer saber é como alterar ou substituir essas coisas, de modo a se tornarem mais úteis ou interessantes. Veem sempre mais adiante, certa ou erradamente — alguns são meio amalucados —, e a todo momento nos impressionam pela visão antecipada que têm do mundo. É uma qualidade necessária para a evolução da humanidade, mas oferece também os seus perigos, como aconteceu com o MacGyver.

            Finalmente, o fato principal. Como se explica a explosão que arrebentou os intestinos de nosso pranteado amigo?

            Pode-se dizer que ele foi, paradoxalmente, uma vítima da tecnologia moderna. Se a técnica operatória estivesse mais atrasada, estaria vivo. Explico.

            Durante décadas, os pacientes foram operados com bisturis comuns, de aço, claro. Até que inventaram o tal do bisturi elétrico, que corta melhor e talvez tenha outras utilidades. Mas ele tem uma peculiar desvantagem: pode emitir uma minúscula faísca. MacGyver estava no hospital em razão de uma obstrução intestinal. Se qualquer obstrução normalmente provoca uma retenção de gases, imagine-se esse problema no caso especial do nosso amigo. Esses gases — metano? — são realmente explosivos, desde que surja mínima fagulha.

            Assim ocorreu a tragédia. A faísca do bisturi, no ventre gasificado do paciente explodiu no rosto do cirurgião e da moça que estava bem perto.

            E assim morreu bestamente meu interessante amigo, vítima da invenção de um colega inventor que, eletrificando o bisturi, jamais previu que poderia ferir ou matar um operado e seu cirurgião. E não sei se, afinal, o tumor que causava a obstrução era ou não maligno. A notícia que li no jornal — nem me lembro qual era —, não entrava em detalhes.

            Dirá o leitor mais sisudo que o escritor, eu, não se revelou tão amigo assim do seu amigo MacGyver pois, se o fosse, jamais colocaria no papel passagens tão grotescas.

            Respeito o enfoque, mas fico com a opinião oposta, do próprio morto. Quando em vida, sabendo de minha preferência para buscar na vida real a inspiração para minhas estórias, por duas vezes chegou a dizer que eu tinha plena liberdade para usar as passagens acima em um livro de ficção, desde que mantivesse no anonimato seu verdadeiro nome. Só não me autorizou o relato da explosão porque seria humanamente impossível prever tal coisa. Não sei se houve outros acidentes iguais, mas lembro-me perfeitamente que o jornal também informava que depois dele os hospitais, em casos iguais, de excesso de gases, passaram a aconselhar ou obrigar uso de bisturis não elétricos.

     O MacGyver cearense, quando morreu, não vivia mal, financeiramente, porque inventou e patenteou duas ou três invenções. Perdemos contato durante os últimos vinte anos. Se não tivesse morrido precocemente, teria resolvido vários problemas, porque sua imaginação não era normal. Se quisesse ser um escritor, enriqueceria nossa literatura. Mas nunca demonstrou interesse nesse sentido. Preferia inventar coisas e solucionar dificuldades.

Se existe um céu, o MacGyver deve estar lá, sugerindo alguns truques a São Pedro, ajudando-o a barrar a entrada de alguns pecadores disfarçados em santinhos.

      FIM 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br

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sábado, 14 de janeiro de 2023

GENTILEZA ANTIDROGAS

                      

Foto divulgação 

O narcotraficante, grau médio na hierarquia criminosa, bem-vestido, envolvente, esperto, de regular instrução, procura convencer a velha senhora, uma mulher alta, magra, visivelmente angustiada.

— Vamos logo, dona Genoveva! Decida-se! A senhora nunca mais vai ter uma oportunidade igual a essa!

Ela reluta, torcendo as mãos:

— E se a polícia me pegar? Não aguentarei a vergonha! Eu tenho netos, meu senhor... 

— Que a senhora tem neto, eu sei. Conheço um deles. Por isso estou aqui, para ajudá-lo... Mas quem disse que a senhora pode ser presa? As apreensões da “mercadoria” são raríssimas! Um quilo por tonelada. E não vá em conversa de jornal. Se a senhora soubesse como são as redações! Ninhos de fungadores! Todos eles “cheiram” para ficar mais inteligentes, faiscantes, escrevendo com mais nervo, mas alguns nem assim conseguem... Agora, para efeito externo, posam de grandes moralistas. Fique sossegada. Será apenas um passeio.

— Mas comigo pode dar azar! Nunca tive sorte em coisa alguma. Em toda a minha vida, já devo ter comprado umas quarentas rifas e jamais ganhei nem mesmo o prêmio de consolação. Pedacinhos de loteria, então!... No máximo, o valor do próprio bilhete. Se tivesse economizado meu dinheiro, teria agora uma geladeira nova e um forno de micro-ondas.

— Olha... eu não devia contar isso... mas, vá, lá, em confiança... — Fez uma pausa, como que hesitando em tomar uma decisão difícil. — Até agora, nada aconteceu com aquela senhora da esquina. Aquela, da casa bonita, do lado esquerdo. Há tempos que ela trabalha para nós, discretamente. Quem a senhora pensa que paga as viagens dela?

Ele sacava as mentiras conforme surgiam as resistências. Inventava tudo na hora, porque cada pessoa tinha um medo ou tentação diferente. Basicamente, tudo se resumia em falta de dinheiro e medo da prisão; mas havia muita variação quanto ao envoltório desses dois sentimentos. As hesitantes “mulas” velhas nunca eram iguais. Algumas se convenciam com um argumento. Outras, com outro. E na escolha do veneno específico, ele tinha boas antenas, sendo muito persuasivo. Mentia com facilidade, até mesmo com certa graça. Sabia, por experiência, que a virtude apoia-se em algumas estacas morais que podem ser removidas, uma a uma, com golpes nos pontos certos. Removidos os apoios, bastava um piparote para derrubar todo o edifício.

A velha espantou-se com a referência à mulher da esquina: — O quê?! A dona Heloísa? Aquela orgulhosa, dona da verdade, que me olha de cima? Não acredito!

— Ela mesma... — Sorriu, tranquilo, com a falsa verdade no olhar franco, pois era um artista. — Mas o que estou dizendo agora é estritamente confidencial. Se a senhora abrir o bico, mesmo para contar à melhor amiga, não garanto pela vida da senhora. Não por mim, claro, mas meu chefe não perdoa. 

Ela balançou a cabeça, espantada com a informação sobre a vizinha, mas de certa forma sentindo uma pontinha de satisfação. Afinal, encontrara um “podre” na “ricona”, toda superior. Saberia como lhe devolver o olhar, na próxima vez em que se cruzassem na calçada. 

— Quem diria... A dona Heloísa... Minha filha disse que ela parece um bispo de peruca... Toda cheia de dignidade... 

— E sou capaz de apostar que a senhora conhece mais duas pessoas insuspeitas aqui no bairro que, de vez em quando, fazem alguns servicinhos para nós. Só que não posso revelar nomes. Por isso não vejo razão para tanto medo. A gente tem que reagir contra a própria covardia. Todos nós somos um pouco covardes, mas é nossa obrigação lutar contra sentimentos inferiores.

— Mas não é só medo... É saber que estou fazendo uma coisa errada, criminosa... 

Ele a interrompeu:

— Criminosa... Formalmente, pode ser, porque está na lei. Mas errada, não! A senhora já ouviu falar de Freud, Einstein, Salvador Dali, aquele pintor aloucado de bigodes retorcidos e outros homens famosos? Todos eles eram exímios cheiradores. Sem a coca não teriam brilhado, aparecido. Ao que dizem, o descobridor da penicilina também consumia. Moderadamente, como deve ser. O mal está no excesso, não no uso. Daqui a algumas décadas, os cientistas vão dizer que o uso do pó branco foi um grande avanço da humanidade. Um cientista já escreveu que, sem a coca, não existiriam os computadores.

— O senhor falou no Flemming, aquele que inventou a penicilina? Nunca soube disso!

— Fica sabendo agora. São coisas que os governos mantêm em segredo. Porque, infelizmente, muita gente exagera. E aí faz mal. Controlando, só estimula o cérebro. A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.  É o mesmo que comer, tomar remédio, etc. Coma muita feijoada e a senhora vai passar mal — sorriu. — Mas, como é, vai ou não vai fazer essa viagem pra gente?

— Ainda não sei... 

Ele fez um gesto de impaciência. Erguendo mais a voz, pressionou: — Sejamos práticos: teu neto, como a senhora sabe, vai ser preso, se não devolver o dinheiro do banco onde trabalhava. O banco está até fazendo um favor, não levando o caso à polícia. Se, na hora do desfalque, tinha ou não a intenção de devolver, isso não tem a mínima importância legal. Desfalque é desfalque. Apropriação indébita, um crime muito sério. Se não estou enganado, é crime hediondo. Vai ter que cumprir a pena inteirinha. E vocês não têm de onde tirar essa quantia. A pensão da senhora é uma piada. O governo está pouco ligando, tanto pra senhora quanto pro teu neto. Ele vai ser preso, preso! se não devolver a grana! E a senhora aí, indecisa, rejeitando ganhar uma bolada no mole, sem qualquer risco!

— Como sem qualquer risco? Posso ser presa!

Ele pareceu hesitar, como se novamente em dúvida se deveria revelar mais um segredo da organização. Após pequena pausa, decidiu largar a melhor mentira de seu estoque. Mas fez antes um pouco mais de teatrinho:

— ... Estou me desmoralizando — disse, balançando a cabeça. — Falo coisas que nunca deveria falar...Mas vá lá: no aeroporto onde a senhora vai desembarcar, todos os policiais são gente nossa... Eles não vão nem chegar perto da senhora. Já estão sabendo de tudo. Vão ficar de longe, até mesmo dando uma cobertura disfarçada. 

Ela ainda relutava:

— O senhor talvez não acredite, mas nunca fiz coisas erradas. Meu único defeito foi ser um pouco preguiçosa e, desorganizada. Mas nunca traí meu marido, nem mesmo em pensamento... Como é que, agora, com setenta e três anos, vou virar traficante de cocaína?! Vou ser “mula”! Até o nome é feio!

Ele já estava perdendo a paciência:

— Mulher burra, medrosa! Desculpe a franqueza! Este é um momento de emergência para a senhora, não para nós! Nós a procuramos porque soubemos da situação do seu neto e porque a senhora tem um porte e rosto distintos, respeitáveis. Mas não se esqueça que existem centenas, milhares de mulheres necessitadas e com boa aparência! Afinal, a senhora não liga pro rapaz? Que tipo de avó insensível é a senhora? Aqueles banqueiros pilantras, encharcados de uísque e amantes, ganhando rios de dinheiro sem risco — porque o Governo os garante nas crises —, bem que poderiam perdoar o pequeno desfalque. Mas isso nunca! O dinheiro deles é sagrado! Só o deles! Não passam de agiotas legalizados. Vão levar o caso à polícia, jogar teu neto numa cela cheia de tarados. A senhora já viu, já esteve dentro de uma cela? Aquilo é um viveiro de piranhas. Por acaso, não sabe o que um rapaz bonito como ele pode passar numa cela superlotada? Pretos, brancos, mulatos, todos avançando, excitados. Sairá no mínimo aidético!

A visão do neto sendo violentado na cela a fez decidir-se:

— Para! Cala a boca, por favor! Não me martirize... Está bem, aceito, mas com uma condição.

— Qual?

— Que seja uma única vez. Ouço falar que quem entra no tráfico não consegue sair. Faço uma única vez. Não quero morrer com esse peso na consciência.

— Quanto a isso, não tenha medo... A própria idade da senhora já é sua proteção. E nada vai conhecer sobre nossa organização. Sabe apenas que foi procurada por um homem, cujo verdadeiro nome nunca conhecerá. Assim, não nos oferece perigo. A senhora nem pode dizer que “saiu” da organização, porque sequer nela “entrou”. Entregue a mercadoria, a senhora receberá no ato o seu dinheiro, salva o neto e nunca mais nos veremos. E volta pro Brasil no dia seguinte porque a passagem é de ida e volta. Se, por acaso, um dia, me vir na rua, finja que não me conhece porque vou fazer o mesmo. Agora, preste atenção ao que vou dizer. Saindo do aeroporto, a senhora vai encontrar uma mulher de casaco verde segurando um papelão com o nome da senhora — E deu uma série de instruções. 

Alguns dias depois, munida de passaporte, a velha estava sentada dentro de um avião com destino a Portugal, suando frio em razão da tensão e quente em consequência da temperatura propriamente dita. Sentia-se abafada naquele casaco, que não podia tirar por causa dos inúmeros saquinhos de cocaína presos em volta do tronco. À aeromoça, que lhe sugeriu tirar o casaco, explicou que estava muito gripada. 

Logo após a decolagem, começou a orar em pensamento, alternando rezas e pedidos. Rogava duas coisas: primeiro, que o avião não caísse; segundo, que tudo desse certo. No meio de uma “Ave-Maria”, lembrou-se que o segundo pedido, se atendido, transformaria o Criador em cúmplice do narcotráfico. Aí parou a reza, explicando a seu Deus, mais uma vez, que fazia aquilo, não por egoísmo, mas por amor ao neto. Sua filha, a mãe do rapaz, era uma coitada, largada do marido, que mal conseguia arranjar comida para o dia seguinte. O pai estava sumido há anos. Deus, que tudo sabe, leria dentro de seu coração e a perdoaria por essa viagem horrível. Tinha certeza disso. Por que seria gravemente punida por um único erro, cometido para salvar um neto? Deus não seria jamais injusto. Via mais longe que qualquer juiz de carne e osso. Um pecado, sim, mas para salvar um corpo e uma alma. Na verdade, uma vida. 

Desceu do avião sem incidentes. — “Daqui a uma hora, estarei livre!”, pensava, quase aliviada. — “O homem garantiu que nenhum policial ia me abordar”.

Não gostou quando se deparou com uma grande fila à sua frente. As pessoas teriam que mostrar seus passaportes. Ao que presumia, seu documento, providenciado pelo traficante, deveria estar na mais perfeita ordem. Eles não seriam tão estúpidos de falhar no detalhe. O desagradável era a tensão da espera. Havia muitas pessoas à sua frente.

Nesse momento, dois policiais à paisana, mas com distintivos bem visíveis no paletó, conversavam a uma certa distância. Nada desconfiavam. Um deles acabara de contar uma anedota a respeito de sogras. O outro, mais velho, precocemente calvo, disse que não compreendia essa prevenção dos humoristas porque jamais conhecera mulher mais generosa e distinta que sua sogra, falecida uma semana antes.

Mal ele disse isso, seus olhos avistaram aquela senhora alta, pálida, de feições cansadas que, na fila dos passageiros chegados do Brasil, parecia sofrer mais que os outros pela demora.

— Está vendo aquela velha? Aquela meio barriguda, de casaco cinza, atrás do japonês? É parecidíssima com minha falecida sogra. Tem, como ela, a retidão no semblante... 

— Ela parece doente... 

— Deve estar exausta... Sabe de uma coisa? Vou resgatar, por via indireta, uma dívida moral que tenho com dona Lourdes — era o nome da falecida. — Fui um pouco impaciente com ela nos dias que antecederam o derrame que a matou. Vou fazer essa velha passar na frente de todo mundo. 

— O pessoal pode estrilar... Há outras velhas também esperando... 

— Eu disfarço... Pode vir comigo? — E os dois caminharam na direção da tensa senhora, que, vendo-os aproximar-se, sentiu crescer o medo.

— Somos da Polícia... — disse o agente calvo. — A senhora quer nos acompanhar?... — E, dizendo isso, segurou no braço da velha, uma forma de lhe dar apoio, retirando-a da fila. 

Mal deram uns dez passos, a velha, apavorada, tremendo, gaguejou:

— Olha, quem me mandou foi o senhor Oliveira... O senhor sabe... 

— Sei o quê?

— Ele me disse que... me disse que tinha uma mulher me esperando lá fora... Que nada aconteceria... Que estava tudo combinado... 

— Combinado?! A senhora vai contar essa estória direitinho... 

Aí, o salão todo, com pessoas, malas, poltronas e letreiros, começou a girar vertiginosamente na cabeça da pobre mulher. Ao turbilhão seguiu-se a perda da consciência.

Pouco depois ela acordou numa sala do próprio aeroporto. Estava sem o casaco. Os saquinhos de cocaína haviam sido agrupados em cima de uma mesa para serem fotografados. Agentes policiais tomavam notas e um médico recomendava algum cuidado com a angustiada porque havia o perigo de um infarto.

No fim do dia, a velha foi ouvida no flagrante. Narrou os fatos conforme descritos acima.

Os dois policiais que a retiraram da fila, ao se despedirem, porque findara o turno de trabalho, conversavam a respeito da apreensão da droga. O calvo, não obstante o casual sucesso funcional, parecia aborrecido:

— Eu deveria estar feliz porque peguei uma traficante... Mas não estou!... Acredito piamente no que ela disse... Foi a primeira vez... Uma mulher escolada não se denunciaria tão depressa. Eu só queria ajudar... Agora vão ser duas gerações em cana: a avó e o neto.

— Foi bancar o bom samaritano das velhinhas e se deu mal... — brincou, irônico, seu colega, policial bem mais endurecido.

— Não fosse a sua piada sobre sogras, eu não teria me lembrado da minha. Não teria pensado em ajudar... Para você ver o peso acidental das palavras em determinados momentos... Mas, eu me pergunto: se tudo tivesse dado certo, será que ela não faria isso de novo? Nunca vi ninguém chorando, arrependido, quando o crime foi bem-sucedido. 

Esse pensamento o tranquilizou, parcialmente. Afinal, os policiais são seres humanos. Precisam também de apoio para continuar nas suas funções, mas essa teorização não conseguia sossegar a sua alma. A seu julgamento, a velha era sincera, não voltaria a fazer esses transportes. Que pelo menos cumprisse prisão domiciliar. Se fosse intimado para depor, diria ao delegado e ao juiz que estava convencido da boa índole da idosa que apenas tentava salvar um neto.

          FIM

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

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