sexta-feira, 25 de maio de 2012


A “Comissão da Verdade” se tornará revanchista, “sem querer”. 

Lendo, ontem, 20-5-12, no “Estadão”, o erudito artigo “Sobre a Comissão da Verdade”, da lavra do Prof. Celso Lafer — cuja prestigiada biografia não precisa ser relembrada aqui, porque todos a conhecem —, não posso, lamentavelmente, endossar seu ponto de vista. Atrevo-me a dizer que S. Exa. — intelectual que sempre sustenta o que considera certo —, daqui a um ano, talvez se arrependa de ter dado seu respeitado apoio à má-ideia . Alguém já disse que escrever História impregnada de mágoas políticas é como tentar enfiar um prego de geléia na parede. Mesmo com a ajuda das melhores estopas teóricas a falta de solidez do doce atrapalhará a função martelo dos “pedreiros” nomeados, que juram apenas procurar uma verdade — torturas e outras crimes. Mazelas que, data venia , todos já conhecem de sobra porque a imprensa é livre e ninguém foi nem está proibido de publicar livros e artigos sobre o que aconteceu no tempo do regime militar, ou em qualquer período.

Prevejo também, com o devido pedido de desculpa pela ousadia, que o íntegro Min. Gilson Dipp, acostumado — como magistrado de grande envergadura —, a ver as coisas de modo equidistante, não se sentirá confortável na função inevitável de conter os impulsos vingativos — talvez até inconscientes —, de alguns membros da Comissão, impregnados de rancores inconformistas e mesmo justos, que pedem vingança em forma “oficial”, apoiada pelo governo.

Segundo o Prof. Lafer, a Comissão da Verdade será útil porque — nas suas palavras —, apenas “deverá examinar graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um  direito à memória e à verdade histórica. Suas atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Ou seja, ela nem pune, pois não é justiça de transição retributiva (...) nem indeniza (...). A natureza da verdade que cabe à comissão apurar não é a verdade jurídica proveniente da judicialização de processos políticos. É, para recorrer novamente  Arendt, a verdade factual dos fatos e eventos, que é a verdade da política”.

Desnecessário transcrever o artigo por inteiro. Resumindo o pensamento do erudito professor, essa Comissão, diz ele,“visaria apenas impedir o esquecimento por apagamento de rastros da violação de direitos humanos”. Mas quem disse que tais rastros foram apagados? Quantos artigos, filmes, reportagens, entrevistas televisionadas e livros já foram publicados e vistos sobre tais mazelas? A censura nunca impediu a difusão de informes sobre torturas, homicídios e abusos de algumas centenas de sádicos por vocação ou por ódio político  — existentes em todos os países e raças, na direita e na esquerda — que aproveitam o momento de qualquer “virada” para dar vazão aos seus instintos. Se a esquerda tivesse vencido, em 1964, esses ou outros sádicos equivalentes teriam também, sem constrangimento, cometido barbaridades, com largo uso do cárcere, torturas para obter informes e “paredón” contra os que lutaram contra eles.

No meu modesto ponto de vista, essa Comissão, só pelo fato de ser criada, oficialmente, por um governo composto de pessoas, na sua maioria, oriundas da esquerda e mencionando, de antemão — nas palavras de Paulo Sérgio Pinheiro —, que só se interessará, unilateralmente, por violação dos direitos humanos cometidos por agentes do governo, está destinada a fazer muito mais mal do que bem ao país.  Será uma típica “Comissão revanchista”, ainda que prometa — com ou sem sinceridade —, não o ser. Isso porque muitos juristas e políticos, não só no Brasil mas no mundo todo, entendem que crimes contra os direitos humanos não prescrevem. Se não prescrevem, será necessário — até por coerência —, punir criminalmente dezenas ou centenas de pessoas, a grande maioria já bem idosa, em todos os escalões, que agiram pessoalmente. ou por omissão, na vigilância de seus subordinados, como seria o caso de oficiais de alta patente.

Nossa Presidente, quando ocupava importante cargo no Governo Lula — salvo engano, na Casa Civil — dizia que os direitos humanos são imprescritíveis.  Se ela continuar pensando do mesmo modo, nada mais coerente com ela mesma que, constatados, com testemunhos colhidos na governamental Comissão, os crimes de agentes do governo ditatorial, ela ordene ou estimule seus subordinados da área jurídica a processarem criminalmente todos os oficiais militares que ocuparam cargos de relevo, em uma verdadeira “caçada” de culpados, os sádicos ou meramente distantes e omissos. Não é impossível, hoje, garantir que daqui a dois anos, terminada a tarefa da Comissão, o STF, com nova composição, decida que os direitos humanos são imprescritíveis.

Essa inoportuna  Comissão acabará funcionando, possivelmente, como uma espécie de Inquérito Policial, colhendo provas que poderão servir de base para um posterior denúncia e processo criminal de enorme repercussão e agitação no país. Agitação que deveria estar pacificada com a Lei da Anistia. Pelo menos por suposto delito de “omissão”, poucos e idosos generais, almirantes e brigadeiros escaparão da tortura mental, e moral até financeira de contratar defensores caros e competentes para poderem morrer com dignidade. E morrerão revoltados, porque a maioria deles estava sinceramente convicta de que agiram por idealismo, impedido que o país “descambasse” para um comunismo que consideravam equivocado, lesivo ao país, conforme ficaria depois comprovado com o desmantelamento da União Soviética e toda a pobreza do Leste Europeu, quando sob domínio russo.

Essa já confessada — pelo sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro — intenção de somente “pegar” quem cometeu ou indiretamente apoiou torturas  estimulará pessoas “com mentalidade de direita” — parcela minoritária mas composta de milhões de brasileiros desiludidos com a corrupção e a impunidade atual do país — a reagir, formando uma outra Comissão,  não estatal — a “Comissão 2” —, colhendo testemunhos de parentes de militares ou civis que foram prejudicados pelos revoltosos de esquerda, assaltando bancos e cometendo outros ataques. E nada impede que essa provável “Comissão 2” procure, indo mais a fundo na motivação do Golpe Militar, demonstrar — colhendo depoimentos de natureza teórica —, que era intenção da esquerda brasileira, no início dos anos 1960, instaurar uma “Cuba n.2” no hemisfério sul. Uma “Cuba-Brasil” que teria sido obviamente estrangulada economicamente, durante décadas, pelo poderio norte-americano, como ocorreu com a Cuba do regime castrista. À época, os EUA tinham poder militar, econômico e diplomático para isolar o Brasil. Com sanções econômicas impediria que outros países fizessem negócios com o Brasil.

Essa provável “Comissão 2” se especializará, certamente, em demonstrar que houve apenas um “golpe preventivo” das Forças Armadas, abortando um golpe comunista que amadurecia a olhos vistos, com desafios de cabos e sargentos à hierarquia militar; com políticos de esquerda seguindo ordens da União Soviética, belo ideal socialista transfigurado em impiedosa ditadura. Dirão, os depoentes da “Comissão 2”, que o comunismo só empobreceu a própria Rússia e os países que dominou com punho de ferro. É fácil prever que a “Comissão da Verdade 2” se orientará para a justificação política do golpe militar porque a esquerda de então, sem força governamental, não teria mesmo condições materiais para  prender e torturar membros do governo, em grande escala, pois não dispunha de cadeias, recursos e locais à sua disposição.

Como bem lembra o cuidadoso texto de Celso Lafer, os últimos governos já se interessaram em reparar, com duas Comissões — a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, no governo F. H. Cardoso e a Comissão de Anistia, no governo Lula — as injustiças cometidas nos chamados “anos de chumbo’. Indenizações já foram pagas àqueles que pessoalmente sofreram com a repressão, o mesmo ocorrendo com os familiares de tais vítimas. Tendo em vista as reparações governamentais anteriores, não haveria, acrescento, mais razão para criar nova Comissão, agora destinada a apurar, unilateralmente, uma verdade já mais do que sabida e com finalidades — talvez inconscientemente secretas — de revanche.

Fosse essa Comissão da Verdade um empreendimento apenas cultural, privado, acadêmico, composto de historiadores — sem interferência governamental —, não haveria o que censurar, porque toda verdade deve ser investigada. Mas não é isso que está ocorrendo, porque, repita-se, trata-se de uma comissão criada pelo governo, e governo oriundo da esquerda, com as naturais mágoas. A “verdade histórica”, já conhecida, dificilmente será vista como a meta verdadeira dessa Comissão.

De uns tempos para cá surgiu no mundo uma nova, absurda e retrógrada mania de governos interferirem  no exame do passado, favorecendo ou proibindo tal ou qual investigação, segundo as preferências de quem manda no momento. Dizem que os historiadores são mais poderosos que Deus, porque este não pode modificar o passado, mas os historiadores podem.

Poucos anos atrás, o Parlamento Europeu baixou uma norma considerando crime alguém negar o Holocausto. Simplesmente isso. Não obstante milhões ou centenas de milhares de judeus tenham realmente perecido no impiedoso massacre, nenhum governo ou Parlamento culto deveria impedir alguém de querer provar, com bons ou mal argumentos, que o número de judeus assassinados foi diferente dos usualmente mencionados seis milhões. Se algum maluco, com pretensões de historiador, quisesse demonstrar com dados pesquisados, que o número de mortos não foi de seis, mas de, digamos, três milhões, ou dois, ele se sentiria inibido e em perigo de ser processado criminalmente, porque, de forma indireta, estaria contrariando a versão semioficial, de seis milhões de mortos, que foi sempre mencionada na mídia. Agora, se um outro historiador quisesse escrever um livro comprovando que foram dez milhões os assassinados pelos nazistas, essa pesquisa não sofreria nenhum risco de processo, porque não estaria negando o Holocausto. As pesquisas históricas não devem ser “orientadas”, em um sentido ou outro.

O governo turco seguiu o exemplo: baixou uma lei proibindo que alguém dissesse ou provasse que houve um massacre de armênios no início do século passado. Como os armênios se recusaram a lutar no exército turco contra um país vizinho, foram violentamente reprimidos, com mortes ou deportação violenta, variando a cifra de mortos em torno de um milhão e meio. Que o governo turco negasse ter havido um massacre de armênios, dizendo que houve apenas uma guerra civil, estaria em seu direito. Proibir, no entanto, sob pena de processo, que alguém investigue o assunto e escreva a respeito já é um regresso às trevas da ignorância. Curioso, e agravante, é que o governo Sarkozy, pouco depois, baixou uma ordem equivalente — mas de sinal contrário —, proibindo que alguém, na França, negasse o chamado “holocausto armênio”. Uma ridícula troca de proibições quanto à História. Cabe apenas o consolo de que é melhor uma guerrinha de travesseiros do que uma guerra trocando chumbo.

Repito: governos não têm o direito de criminalizar a busca da verdade ou mesmo a suposta busca da verdade. Quem quiser, que investigue o que bem entenda e depois seja, se for o caso, ridicularizado pelas bobagens que concluir. Inversamente, não devem os governos, sob o falso pretexto de perpetuar o “mero registro” da verdade — já bem conhecida e sempre disponível a jornalistas e historiadores particulares — criar Comissões confessadamente tendenciosas que poderão resultar em processos que afrontam o que foi acordado na Lei de Anistia.

 A nossa Lei da Anistia não vale mais? Como reagiriam os adeptos de uma Comissão da Verdade se ela fosse criada, hipoteticamente, por um governo eventualmente hoje de direita, com  finalidade exclusiva de apurar as violações de “terroristas de esquerda”? Ninguém pode negar que, caso triunfasse a esquerda no governo de Jango Goulart, o “paredón” seria o destino de inúmeros políticos e militares que se opunham ativamente ao movimento de esquerda. Sempre foi assim em tais movimentos, seja de esquerda, seja de direita. Lenine mandou matar o Czar |Nicolau II, mulher, filhos e empregados domésticos, só para diminuir a possibilidade dos adeptos da monarquia russa voltarem ao poder. Para Lenine, não haveria nada de moralmente censurável nisso porque o que interessava era o “bem maior”, o superior interesse de uma causa justa que corrigiria todas as injustiças sociais.

A atual Comissão da Verdade só será útil para realimentar o ódio entre a esquerda e a direita brasileiras e para a venda de revistas e jornais. Nada mais. Colher informações? Elas podem, repita-se, serem colhidas por comissões e pesquisas particulares. Não envolvam o governo nisso.

Agentes torturadores — quando fazem esse trabalho sem serem coagidos — são realmente uma escória moral. Em todas as raças e povos há um pequeno percentual de pessoas que têm propensão ou indiferença sádica. É um dado biológico. Nasceram assim, “não têm culpa”. Não sentem aversão em infligir sofrimento. Carrascos que operavam a guilhotina, ao tempo do Terror francês ou, na Idade Média, usando forca ou o machado para cortar pescoços, certamente não vomitavam depois. Até preservavam o emprego, tentando passar a “boquinha” para o júnior. Alguém dirá que a Comissão da Verdade” poderia se limitar a investigar apenas os relatos contra as pessoas que, pessoalmente, praticaram as torturas, sem alcançar a cúpula da Revolução de 1964. Isso, porém, é impossível ou dificílimo, porque o torturado não sabia, com certeza, quem ordenara a tortura. Na dúvida, seria “alguém lá de cima”, um oficial de alta patente.

O leitor deve estar se perguntando: — “Quem é esse cara” — este seu criado, leitor — “que escreve contra a Comissão? Deve ser um tremendo fulaninho de direita...”

Respondo: não sou. Se o fosse, diria, porque não é crime ter convicções políticas. Situo-me politicamente equidistante,  um tanto mais próximo da esquerda. O Socialismo tem um belíssimo ideal a realizar  na Terra, esse planeta tão cheio de injustiças contra os que tiveram o azar de nascerem em família pobre.

 O lema comunista de exigir, de cada um, conforme sua capacidade e dar a ele conforme sua necessidade é Cristianismo puro. Uma orientação que seria aplaudida por todos os anjos do céu. Só que é um ideal prematuro, em termos práticos, porque a raça humana ainda está imensamente impregnada de egoísmo, ganância e desejo de status. Basta ver os escândalos financeiros revelados semanalmente no Brasil, cometidos não por pessoas famintas, mas por gente rica e bem educada. A ganância e o desejo de ser melhor que os outros está tão ínsita no ser humano que mesmo nos países comunistas, antes da dissolução da União Soviética, formou-se uma “nova classe”, a “nomenklatura” com direito a um conforto inacessível à “massa ignara”. Ingressavam no partido único para terem direito a cartões de racionamento especiais e para “subir na vida”.

Esse lema comunista, acima enunciado — “à cada um conforme sua necessidade, etc. — não é aceito nem mesmo por operários. Se dois deles, trabalhando na mesma função, diferem na capacidade de trabalho e de gerar filhos, o trabalhador que é mais inteligente e produtivo, mas tem apenas um filho, considerará injustiça se o operário vizinho — lento, mole, confuso e com prole numerosa —, ganhe mais que ele só porque, tendo muitos filhos, precisa receber salário maior.

Karl Marx resumiu, em curta frase, seu ideal comunista: “a abolição da propriedade privada”. Noventa e oito por cento dos trabalhadores, porém, não gostariam de viver em residências coletivas, com intimidade forçada. Além disso, um socialismo ditatorial — no começo, longo começo, sempre ditatorial, temendo o regresso do regime deposto — apela ao terror, aos julgamentos sumários. Esse socialismo “virulento” simplesmente “congela” a iniciativa e a criatividade. Daí a pobreza que sempre desaba sobre os países sob ditadura comunista, com seus habitantes travados pelo medo de demonstrar qualquer “tendência capitalista”. O belo ideal socialista terá que ser atingido gradualmente, como ocorre nos países nórdicos, em que a ambição individual, mesmo sendo eventualmente gananciosa, é empreendedora, cria novos horizontes. Enriquece, evidentemente, uma pequena parte da população mas boa fração dessa riqueza é canalizada, pelo governo, para as populações mais pobres. O egoísmo capitalista é moralmente antipático mas como promove o enriquecimento do país, acaba elevando o padrão de vida de todos: pobres, remediados e ricos.

O bom futuro do planeta está na aliança da liberdade econômica — leia-se criatividade — com o planejamento de retaguarda, isto é, na união do Capitalismo com o Socialismo. O primeiro para criar a riqueza, soltando as rédeas das pessoas mais ousadas, mesmo gananciosas. O Socialismo, para zelar pela utilização mais justa dessa riqueza. Vigiando os “gananciosos” mas não a ponto de quase sufocar os produtores de riqueza com tributos exagerados e desestimuladores. E será desnecessário lembrar que os tributados excessivamente não se deixam saquear passivamente. Para isso existem os Paraísos Fiscais, e outros truques — lícitos e “semi-lícitos”, criados pelas infatigáveis criatividades contábeis e jurídicas. Segundo Everardo Maciel — “As raízes da corrupção no Brasil”, jornal “O Estado de S. Paulo”, de 2-1-12, pág. B-2 —  os débitos inscritos na Dívida Ativa da União ultrapassam a soma de um trilhão de reais, a demonstrar que há muita coisa a consertar neste país, na área tributária e na legislação processual que rege as cobranças em geral.                                                                                                            
                  Já que citei Marx, cito agora um seu grande amigo, Engels, por sinal filho de um rico industrial alemão. Engels dizia que “Tragédias genuínas no mundo não são conflitos entre o certo e o errado. São conflitos entre dois certos”. Há também uma pequena dose de “certo” na direita política.

Capitalismo e Socialismo precisam andar de mãos dadas — ou até mesmo, inicialmente, amarradas, meio que à força. E uma Comissão de Verdade que só retardará o ajustamento dos dois grandes sistemas — reacendendo velhos ódios —, só atrapalhará o futuro do país. A China vem crescendo mais que as demais nações porque fez uma acomodação entre os dois sistemas. Podemos fazer o mesmo, no Brasil, com métodos próprios. Aliás, isso vem sendo feito, sem alvoroço, pela Presidente Dilma. A Comissão da Verdade parece ter sido apenas um ligeiro escorregão de uma mulher muito autêntica, sentimental, honesta, corajosa, mas ainda abalada emocionalmente pelo que sofreu em mãos perversas. Há, porém que, como estadista que é, ajudar a esquecer um pesadelo ou sonho mau que ainda pode voltar a nos manter em sobressalto.

Talvez, em outro artigo, faça uma síntese bem apertado das virtudes e vícios dos dois sistemas políticos que poderiam ter torrado, atomicamente, o planeta caso Nikita Kruschev não tivesse recuado, sensatamente, aceitando o papel de fraco, quando Kennedy ameaçou atacar, em 1962, a frota russa que conduzia mísseis para Cuba. Kruschev desprestigiou-se, foi censurado pelos seus generais mas salvou a Terra da mais mortífera das guerras.


(24-5-2012)

domingo, 20 de maio de 2012

Quando a gratidão torna-se um mal

Não existe sentimento mais digno e nobre que a gratidão. Se consultado algum livro, ou site, de citações famosas na internet sobre essa bela virtude, a grande maioria delas esmera-se em por nas alturas esse fenômeno psicológico e moral que praticamente nos obriga,  com paradoxal prazer — toda obrigação é meio desagradável... — a agradecer e retribuir quem nos estendeu a mão. Mão que provavelmente nos foi negada, anteriormente, por várias pessoas que, da boca pra fora, davam a entender, ou mesmo garantiam, que poderíamos sempre contar com elas.

Os moralistas, frequentemente, insistem na comparação entre o homem e o cão, pois este, se tratado com bondade, mesmo sendo mal alimentado, pode ficar dias perto do túmulo do dono; talvez uivando, o equivalente canino do choro humano. Alegam que homem nenhum passará longo tempo chorando pelos cantos a morte de seu cão. A comparação é obviamente desproporcional porque o “horizonte” mental do cão é tremendamente restrito enquanto que o pensamento do homem sofre miríades de interferências diárias exigindo contínua atenção sobre variados assuntos, práticos e teóricos. E talvez alguns cães sejam mais “sentimentais” que outros...

Há, também, os pensadores “cínicos”, ou “céticos”, que tudo encaram com desconfiança, sempre propensos a investigar o possível “lucro”, financeiro ou social, de todo agir humano.Um grande moralista do passado, François de La Rochefoucauld, dizia que a gratidão pode significar apenas o desejo de novos favores. É claro que há gente dessa laia, mas presumo que representem minoria. O leitor, certamente — se chegou a ler este artigo até aqui é porque tem preocupações morais —, já sentiu algum sentimento de gratidão e ao externar esse sentimento ao benfeitor não teve a mais remota intenção de pedir novo favor, consciente de que gratidão com olho em nova vantagem é “negócio”, ou abuso da bondade alheia.

A gratidão, porém, tem um ferrenho e, no fundo, biológico inimigo: o amor-próprio, o orgulho, a necessidade de preservar o próprio valor. Pessoas que se consideram “especiais” — poucos não se consideram — não gostam de dever favores. Recebê-los é uma admissão de que estão em posição algo inferior, dependente; tanto assim que precisaram “pedir” algo. E, mais vexatório: pedir temendo um “não”. Pedir um favor não é o mesmo que pedir uma informação na rua. Fossem “fortes”, pensam, não pediriam nada: — “Odeio que sintam pena de mim!”. E frequentemente é mesmo a comum compaixão que leva pessoas a atender pedido de amigo, parente, ou mesmo do simples conhecido. Foi pensando nisso, no orgulho ferido, que o “Marquês de Maricá” — pseudônimo de Mariano José Pereira da Fonseca, um carioca  falecido em 1848, que foi senador e Ministro da Fazenda de D. Pedro I,—, chegou a mencionar, em suas “Máximas”, que algumas pessoas “vingam-se dos benefícios recebidos”.

Realmente, “dever favor a um sujeito antipático e que está, talvez, se pavoneando por aí dizendo que me ajudou, é carregar uma ferida que exigiria certa vingançazinha: uma futura posição trocada, ele me pedindo algo que eu talvez negasse de início, só para vê-lo implorando, de joelhos, como me senti quando pedi a ele aquele favor”.

Para evitar a ingratidão por orgulho ferido recomendam, os entendidos em venenos d’alma, que o benfeitor não fique muito tempo perto do ajudado e nunca mencione — em público ou em particular — o favor prestado. Isso cutuca a velha ferida. Um outro fenômeno mental — até mesmo inconsciente — relacionado com a ingratidão é que o orgulho magoado torna seu portador, quando beneficiado por favor em dinheiro, tremendamente sensível a qualquer palavra, gesto, sorriso ou olhar que possa, mesmo remotamente, significar alguma forma de desprezo. O inconsciente do devedor orgulhoso fica o tempo todo em alerta máximo para detectar e valorizar um detalhe que se tornará pretexto para não pagar o que deve: — “ O desgraçado me ofendeu com aquele olhar! Ele pensa que se tornou meu dono só porque me fez um favor?! Vou ensinar a esse camarada! Pagarei quando puder, ou quiser...”

É por isso, evidentemente, que favor em dinheiro vem sempre garantido com um título de crédito. Do contrário, qualquer ligeira demora em responder a um aceno, ou outro ritual de cortesia pode “justificar” o não pagamento de uma dívida sem comprovação documental. E quando o pagamento da dívida for feito com trabalho futuro, o problema será o mesmo. Sair de casa para trabalhar e receber logo a paga é muito mais estimulante do que sair de casa para trabalhar e voltar com as mãos vazias, embora com a velha dívida ligeiramente menor. Sei, porém, de alguns casos em que o devedor de serviço cumpriu direitinho seu dever de pagar dívida de dinheiro com serviço pontual, mas isso é raro.

A frase mais brutal que encontrei entre os pensamentos sobre a gratidão veio da boca de um ditador notório por sua grosseria, tenacidade e impiedade. Ninguém menos que Joseph Stálin, que preferiu trocar seu sobrenome verdadeiro,  Djugashivilli, por “Stálin”, que significa “homem de aço”,”durão”. Referindo-se ao sentimento da gratidão, Stálin assim se expressou, segundo citação, em inglês, constante da internet (BrainyQuote): “Gratitude is a sickness suffered by dogs” ( “Gratidão é uma doença que ataca os cães”). Transcrevi como está na internet porque alguém poderia duvidar do que eu escrevi, contrariando o universal elogio de uma virtude mundialmente admiradíssima.

No mesmo site consta que Stalin também disse: “Death is the solution to all problems. No man - no problem”( “A morte é a solução de todos os problemas. Nenhum homem, nenhum problema”). Ainda tenho alguma dúvida sobre a veracidade dessa citação. Stálin nunca diria isso em público. Se alguém duvida que o Socialismo mundial — ideal concebido para tornar o mundo melhor — esteve sob o mau comando de uma vocação de gangster, essas duas frases tirariam qualquer dúvida. Ou será que um certo grau de “gangsterismo” é indispensável na área internacional, onde impera a força, de braço dado com a mentira?

                    Voltando ao tema mencionado no título, o lado negativo da gratidão, quis me referir à gratidão indevidamente aplicada na política, quando lesiva ao bem comum. Uma ingratidão política pode, às vezes, ser melhor, para a coletividade, do que a gratidão. Cito, a seguir, um exemplo concreto. Omito nomes para evitar problemas com possíveis herdeiros, zelosos em manter a reputação de um ancestral incapaz de se defender, porque já não mais entre os vivos.

Contaram-me, décadas atrás, que um grande político brasileiro, quando candidato a governador, foi muito bajulado por um cidadão que dispunha de uma frota de peruas para sua atividade comercial. Perto da eleição, esse indivíduo teria oferecido os préstimos de seus veículos para fazer a propaganda desse candidato, percorrendo cidades com aparelhos de som. O político venceu as eleições, elegeu-se governador e o indivíduo em questão — conhecido por seu amor ao dinheiro e falta de escrúpulos — passou a assediá-lo, na sede do governo estadual. Queria, a todo custo, ser nomeado para determinado cargo de grande significado financeiro. O então governador instruía seu secretário a dizer sempre que ele, governador, estava em reunião, ou dando outra desculpa. Imaginava que, com o tempo o pretendente acabaria desistindo, o que não ocorreu. O secretário, cansado de tourear, convenceu o governador a receber o ganancioso. Cara a cara, o dono das peruas alegou que o governador, quando candidato, lhe prometera esse tal cargo, se eleito. Argumentou que com a propaganda das peruas, teria, influído na sua eleição. Exigia, portanto, o cumprimento da palavra. Aí o governador lhe teria dito: — “Se cheguei, eventualmente, a prometer, quem lhe prometeu foi o candidato Fulano de Tal” — disse seu nome —, “mas o governador Fulano de Tal” — repetiu o nome — “nega o pedido!” E negou, de fato.

Se houve, realmente, uma promessa formal, ou uma vaga promessa, não sei — por isso não mencionei nomes envolvendo pessoas já falecidas — mas o fato é que a provável ingratidão do político foi muito mais virtuosa que a gratidão.

Outro potencial perigo relacionado com a gratidão está no critério para a escolha de Ministros de Tribunais Superiores, principalmente do STF. Como todos sabem, os Ministros do STF são nomeados após indicação do Presidente da República. Incidentemente, até hoje não compreendi a justificação lógica para tal critério, copiado dos Estados Unidos da América do Norte. Lá com a agravante de que o jurista é nomeado não para ser um dos  membro da Suprema Corte. É nomeado para ser dela presidente, e por toda a vida. Algo que evoca a monarquia, incompreensível em uma nação que pretende espalhar a democracia em todo o planeta, com periódico revezamento do poder.

Uma total independência de Poderes proibiria qualquer Presidente da República, de qualquer país, “escolher”, à vontade, quem vai votar em julgamentos importantíssimos, inclusive das suas próprias decisões presidenciais. Será que o Ministro nomeado, por mais idôneo que seja — e uma grande idoneidade tende, até mesmo inconscientemente, a valorizar a gratidão — não teria dificuldade em livrar-se da obrigação moral de retribuir quem tanto o ajudou? Principalmente quando a matéria sob julgamento for especialmente delicada, comportando decisões opostas e defensáveis em matéria constitucional. Dizer que nesses casos o Ministro “grato” deve dar-se por impedido não é uma saída prática porque pode ocorrer que largo percentual dos Ministros tenha sido nomeado pelo mesmo Presidente da República.

A faceta perigosa, porém, da gratidão em assuntos públicos não está apenas na nomeação dos Ministros pelo Chefe do Executivo. Maior perigo está na gratidão do nomeado para com algum figurão, não magistrado, que se empenhou para a transformação do  jurista em um juiz do mais alto tribunal do país. Assim como forma-se espontaneamente um lobby de admiradores em favor de candidatos a cadeiras nas Academias de Letras e nas vagas dos Tribunais Internacionais, presume-se — agora com razões bem mais concretas —, que o próprio Presidente da República seja pressionado para escolher tal ou qual jurista para preencher  as vagas no STF, onde são disputados interesses econômicos e pessoais bem mais concretos que pendências em tribunais internacionais. Nestes últimos será remotíssimo, ou nenhum, o interesse pessoal dos admiradores de tal ou qual especialista de Direito Internacional. “Torcem” por um ou outro candidato ao cargo porque simpatizam e admiram sua competência e personalidade.

 Na batalha de bastidores dos tribunais locais alguns pressionam o chefe do Executivo apenas por admiração pessoal pela capacidade do amigo. Outros, porém, pressionam por motivos estratégicos, prevendo que um dia poderão precisar da boa-vontade desse amigo. Grandes financistas e empresários, principalmente aqueles em constante perigo de serem acusados de infringir a lei — cada vez mais sutilizada e amplificada com preocupações de “crime organizado”, “tráfico de influência”, “enriquecimento ilícito”, “evasão de divisas”, “fraudes em licitações”, “fraude fiscal”, etc. — certamente veem em cada vaga no STF uma conveniência de preencher essa vaga com um “amigo do peito”. Lutarão seriamente para “emplacar” esse amigo e este, se escolhido para o cargo, terá que — quando surgir uma demanda envolvendo interesse, mesmo indireto, desse amigo — lutar para resistir ao próprio impulso de retribuir, por gratidão, o favor recebido quando for possível fazer isso com um voto bem fundamentado. E todos sabem como o Direito não é uma ciência exata.

Acredito e espero, porém, que o paradoxal dever moral da “ingratidão cívica” esteja sempre presente na formação da futura jurisprudência brasileira.

As considerações acima não contêm indiretas à situação brasileira. Têm apenas a intenção de analisar, genericamente, uma virtude que, como todas as demais, não pode ser vista de forma rígida, carimbada como calculada “obrigação de retribuir”.  Uma espécie de compra e venda moral. Traficantes, em favelas, costumam “ajudar”, com dinheiro, alguns moradores, já contando com sua futura colaboração, avisando a proximidade da polícia. Ser grato, nessas circunstâncias, é apenas colaboração com o crime. Mesmo as virtudes podem ser desvirtuadas. Se o benfeitor agiu apenas por malícia, não é malicioso ser ingrato quando cobrado o benefício.

Estou hoje com a veia moralista, mas espero que isso passe logo, porque assuntos dessa natureza em geral apenas enfadam os leitores.

                  (20-5-2012)























                    




sábado, 5 de maio de 2012

O “ativismo” judicial deve ser ainda maior.

                 Com alguma freqüência, recentemente, lemos, na mídia, reclamações contra o suposto “excesso de liberdade” do STF no decidir sobre temas polêmicos. A alegação seria de que a mais Alta Corte estaria, em última análise, legislando, com isso usurpando função reservada ao Congresso que, juntamente com o presidente da república, representam o povo  brasileiro. Como os juízes não foram eleitos, algumas de suas decisões — na opinião desses críticos — configurariam violação do princípio da separação dos poderes. Em português mais franco: o STF estaria distorcendo a Constituição e ampliando um “ativismo” judicial que não deveria existir nem mesmo em escala mínima.

Com a recentíssima decisão do STF — permitindo que a mulher grávida de um bebê anencéfalo possa, querendo, interromper legalmente a gravidez —, alguns legisladores, fortemente impregnados de valores religiosos, chegaram a propor uma lei que permitiria ao Congresso invalidar aquelas decisões que — no entender deles —, significam uma “nova lei”, lei que, certamente, não seria aprovada no Congresso. Insistem que o juiz deve apenas julgar, não “inventar” normas, como se legisladores fossem. 

Cabeças mais lúcidas já protestaram, de imediato, contra essa esdrúxula proposta legislativa que só mereceria alguma consideração se ocorresse um súbito e patológico ataque de insânia, de origem até criminosa, figurando como vítimas os ministros do STF.

Se — em pitoresco mas demonstrativo exemplo —, algum bioquímico excêntrico e inovador pingasse alguma substância sutilmente tóxica no café dos senhores Ministros e esses decidissem, durante uma ou duas semanas, que um marido pode, por exemplo, torturar e matar sua esposa quando desconfia que ela o trai ou que o filho dele na verdade não é dele; ou que o credor pode mandar espancar, em “legítimo reforço de seu crédito”, o devedor que se serve da justiça para retardar ou não pagar o que deve; ou que jornalistas mais atrevidos possam ser torturados quando não respeitarem a intimidade de pessoas socialmente respeitável, aí, sim, caberia a anulação de tais delirantes decisões, frutos de um desarranjo doloso da química dos neurônios. Obviamente, a própria Corte, se conseguisse voltar ao normal, tomaria decisão de anular o decidido porque a aberração jurídica seria evidente conseqüência de uma nova forma de terrorismo, agora químico e em gotas.

Não foi isso, evidentemente, que ocorreu no caso da anencefalia. A Alta Corte decidiu o caso depois de inúmeras horas de debates logicamente fundamentados, embora impregnados das filosofias subjacentes na mente de todo magistrado, como ocorre em  decisões envolvendo valores abstratos. E decidiu, a nosso ver, como deve decidir um estado laico, como é o estado brasileiro. Obrigar u’a grávida a manter no útero um bebê sem cérebro é violentar a liberdade individual. Se, abusando dos exemplos, em lugar de uma cabeça sem cérebro, o raio-x, ou outra técnica equivalente, verificasse que a criança nasceria com cinco membros, uma perna saindo do pescoço, assim mesmo seria a grávida obrigada a suportar esse desconforto psicológico durante meses? Não seria isso uma forma indireta de tortura?

Quando a natureza erra grosseiramente, sem possibilidade de conserto, por que, pergunta-se, o homem — após séculos de estudos e pesquisas científicas visando aliviar o sofrimento humano  —, não poderia “apagar” o erro da natureza? Uma vida foi ceifada? Foi, mas, a rigor, não era uma vida propriamente “humana”, porque é o cérebro humano que  distingue seu portador do animal. No caso, menos que animal, porque este pelo menos tem a capacidade de se defender e de sentir, o que não acontece com o anencéfalo. A “vida” tem seus limites, porque ela também erra. Aberrações genéticas ocorrem vez por outra.

Países democráticos que adotam a pena de morte sabem perfeitamente que toda vida é importante; inclusive — e principalmente —, a vida de pessoas inocentes que morrem, sem julgamento, de forma abusiva e cruel, nas mãos de assaltantes e outros criminosos. Juristas que apóiam a pena de morte não são necessariamente maus, somente presumem que essa punição extrema contém um poder de intimidação geral mais eficaz que o medo de um mero e eventual processo que pode resultar em nada, por prescrição ou fragilidade da prova. Presumem que esse medo da morte legal certamente diminuirá os casos de latrocínios e homicídios, com isso protegendo vidas inocentes, mais merecedoras de proteção que vidas até mesmo profissionalmente criminosas. 

Voltando ao tema “ativismo judicial”, este deve é ser aumentado, e não restringido, no caso brasileiro, porque é impossível exigir do legislador —  qualquer legislador, de qualquer país — a capacidade de prever todas as hipóteses e variantes do comportamento humano. É por isso — pelo licença para pequena divagação — que sou favorável à edição de uma lei que permita ao juiz criminal condenar o réu a uma pena abaixo da mínima, ou até mesmo nenhuma, quando as circunstâncias do crime, comprovado, evidenciarem que naquele caso específico — evidentemente raro —, a pena, mesmo em sua forma mínima, representa uma injustiça.

Recentemente, na zona rural de Pernambuco uma mulher foi absolvida, por unanimidade, pelo júri, em um caso, comprovado, de homicídio contra o pai. Este, violento, ameaçador, manteve a filha como sua escrava sexual por muitos anos, gerando vários filhos/netos. Quando ele começou a externar mesma intenção contra uma neta, a filha reuniu toda a coragem que lhe restava e contratou um matador. A prova do domínio e escravidão sexual da filha era tão robusta que o promotor disse que não se sentia moralmente em condições de apelar contra a absolvição. Foi, de certo modo, um caso de “ativismo” judicial, mesmo ocorrendo no tribunal do júri, porque este integra o poder judiciário. 

Com essa possível lei, agora sugerida, o juiz, para poder desobedecer o comando legal em fato provado, teria que fundamentar  convincentemente sua decisão, mostrando que não agiu por capricho. Se o Ministério Público discordasse desse entendimento, recorreria da decisão, o mesmo podendo fazer a vítima do crime. Melhor assim, de modo franco, do que o juiz ficar obrigado a fazer malabarismos jurídicos e verbais para concluir, falsamente — embora visando uma justiça superior — que o “crime não ficou caracterizado” ou que “não ficou provado”, quando o fato restou mais do que provado. É o que ocorre, por exemplo, com o furto esporádico de mercadorias, em supermercados, quando uma “ladra” muito pobre — e não sendo ladra habitual —, furtou um pote de margarina ou objeto de pequeno valor. Dizer, o acórdão, para absolver a ré, que a justiça não deve se ocupar de coisas mínimas é perigoso e incentivador do roubo de lojas e supermercados. Se os miseráveis souberem, de antemão, que roubar alimentos em lojas e supermercados não significa cadeia, estimularíamos saques diários. 

A sugestão acima, de edição de uma lei, foge, porém, do tema central deste ensaio porque o objetivo deste é defender o ativismo judicial na interpretação das leis. Existindo uma lei nos moldes acima sugeridos —, autorizando pena abaixo da mínima —, não haveria propriamente ativismo judicial porque qualquer cidadão, inclusive o juiz, tem o direito de sugerir ao legislador a edição de leis. Voltemos, pois, ao ativismo judicial. 

É comum, na disputa política, um partido guardar carinhosamente um “podre” qualquer — até mesmo sexual —, de político ou partido adversário para utilizá-lo, via mídia, no pior momento do denunciado, impressionando a opinião pública a ponto de inverter o resultado de uma eleição bem próxima. Pouco antes desta surge, nos jornais, a “notícia bomba”, com pedido formal de abertura de inquérito. O denunciante sabe que o acusado não terá tempo para se defender razoavelmente, mesmo em termos midiáticos. 

Pergunta-se: nesses casos, deve o juiz “fazer o jogo” do “estrategista sabido” que guardou carinhosamente a divulgação de algo errado — ou aparentemente errado — que conhecia há muito tempo? Não haveria, nesse caso, uma tentativa de utilização da justiça para vantagens estritamente políticas? Ou poderia, o juiz, usando um prudente “ativismo” judicial, desconfiando da real intenção do acusador, despachar nos autos dizendo que a notícia do crime só seria examinada após a eleição, considerando a inoportunidade de sua apresentação? Em suma: é obrigação do juiz agir como um marionete, um tolo incapaz de reagir mesmo ciente de que está sendo usado? 

Cito um outro exemplo de recomendável ativismo jurídico: na interpretação dos testamentos já vi caso em que o testador, querendo, obviamente, proteger  sua possível viúva, estabeleceu no testamento a cláusula de inalienabilidade vitalícia de dois imóveis que ficariam em condomínio da viúva e dois herdeiros necessários, filhos do casamento anterior. Enquanto a viúva estivesse viva, os dois imóveis não poderiam ser alienados. A intenção do testador era, claro, proteger a viúva, mas a realidade econômica mostrou que essa inalienabilidade se tornou apenas um ônus inútil e prejudicial à própria viúva que ele queria proteger. Um dos imóveis era um terreno perto da praia que só serviria para alguma coisa se nele fosse construída uma casa. Mas a viúva não tinha dinheiro para construir. Conseqüência:                    a viúva, após pagar IPTU sobre esse terreno, por cerca de 15 anos, já gastou mais com imposto do que vale o terreno. E os herdeiros necessários, condôminos, também só se viram prejudicados com a tal cláusula de inalienabilidade. Todos, viúva e herdeiros, precisariam vender os dois imóveis e partilhar o resultado econômico da venda, mas o testamento é expresso no sentido de que a inalienabilidade existiria enquanto a viúva vivesse. O pedido da viúva e dos herdeiros necessários foi negado pela justiça porque o Código Civil obriga um respeito total à vontade do testador. 

O testador, no caso, simplesmente errou, por falta de orientação, ao declarar sua vontade quando da redação do testamento. Se ele, por milagre, voltasse a vida, imediatamente corrigiria o que escreveu no testamento. Houvesse maior “ativismo”judicial o juiz poderia deixar de cumprir a vontade ditada pelo testador — e o próprio comando do Código Civil —, demonstrando, na sentença, que essa vontade, embora nitidamente expressa, foi conseqüência de má-informação evidente do testador que, mesmo querendo fazer o bem, acabou fazendo o mal a todos os contemplados no testamento. O pior é que o caso já foi decidido, em definitivo, contra a pretensão da viúva e dos filhos do falecido, tendo já decorrido o prazo de uma ação rescisória.

Na área penal, o acanhamento — dos próprios juízes — no encarar o “ativismo” judicial vem ocasionando uma evidente desmoralização da justiça. É caso da impunidade em crimes do colarinho branco. Como a Constituição Federal diz que só se considera culpado aquele cuja condenação transitou em julgado, quem for tecnicamente primário, tiver residência fixa e renda suficiente para viver bem só poderá ser preso depois de transitada em julgado sua condenação. Réus culpadíssimos, mas abonados, conseguem levar, com extrema lentidão proposital, à instância máxima, seus casos, “engordados” em vários e volumosos autos. Quando seus processos entram em pauta para julgamento no STF, os réus desaparecem e aguardam, em local desconhecido, o resultado do julgamento final. Se absolvidos, ou prescrita a ação, ou condenados a prisão domiciliar, voltam para casa. Se condenados a prisão em regime fechado, simplesmente somem, podendo até mudar de nome. Essa impunidade desperta rancor justificado naqueles “não privilegiados” que, por falta de recursos, não podem “esticar”seus processos. E leitores de jornais ficam pensando, cada vez mais descrentes. 

Mesmo sem uma lei específica contra a impunidade — sempre contornável —, um “ativismo” judicial bem intencionado poderia consertar a grande falha desmoralizadora. Bastaria ser criada uma jurisprudência dizendo que, confirmada uma condenação pela segunda instância, o réu seria preso preventivamente — só para garantir o cumprimento da pena. Sendo pessoa “distinta”— isto é, com recursos e residência fixa —, poderia ficar em prisão domiciliar, com passaporte confiscado e com tornozeleira monitorizando sua presença no lar. Em crimes de alto valor financeiro, o juiz poderia congelar parte de seus bens, como modo de garantir a não fuga do réu. E, se o réu sumisse antes do julgamento de seus recursos a fuga implicaria em confissão e desistência de todos os seus recursos, expedindo-se mandado de prisão. Estando o réu preso preventivamente já é de lei que seu processo tem preferência de julgamento. Não haveria tanta demora para seu julgamento. 

Duvido que o Congresso edite uma lei com esse rigor, porque a necessidade de dinheiro para financiar campanhas eleitorais sempre implica em risco de transformar o político eleito em réu. Ninguém legisla contra si próprio. Se, no entanto, a jurisprudência criar tais cautelas, visando impedir o réu de fugir antes de ser julgado em definitivo, quem poderia deixar de cumprir a decisão judicial? E a Constituição não estaria sendo violada, porque a prisão preventiva está prevista em lei. 

Outra possível criação jurisprudencial — fruto de um sadio “ativismo” capaz de trazer de volta o prestígio da nossa justiça — seria a “autorização”, implícita em Súmula do STF, permitindo que os juizes possam decretar a prisão preventiva levando em conta também a gravidade do delito, desde que convincente a prova colhida no inquérito policial ou nos autos judiciais. 

A população revolta-se, com razão, contra a liberdade de um indiciado, ou réu, que — em exemplo forte —, está sendo acusado de haver abusado sexualmente e assassinado dez crianças, enterrando-as depois em imóvel de sua posse. O denunciante do caso mostra as fotos horrendas; as cenas filmadas pelo próprio acusado — há malucos de todos os tipos — em que ele aparece cometendo suas barbaridades; o quintal do réu onde estão os cadáveres meio apodrecidos; as gravações telefônicas em que o réu se gaba de suas façanhas e, não obstante isso tudo, o juiz permita que o réu continue solto — porque não houve prisão em flagrante — até que, muitos anos depois, receba uma condenação com trânsito em julgado, que provavelmente não cumprirá porque fugiu. Essa benevolência, ou apatia, é um insulto às pessoas de sentimentos normais. 

Obviamente, não tem sentido decretar a prisão preventiva apenas porque, em tese — com discutíveis “indícios” —, haveria uma acusação greve.  Se, no entanto, o crime é gravíssimo e as provas documentais — fotos, filmagens e “grampos” — apresentados são muito convincentes, seria até obrigação moral do juiz decretar a preventiva, mantendo-a até o julgamento porque é de se esperar que o réu fugirá antes da sentença. 

A atual campanha de desmoralização da justiça, promovida por jornais — por alegados vencimentos acima do teto remuneratório — encontrou repercussão favorável na opinião pública porque esta acha-se revoltada, com razão, com a “bondade inexplicável” de nossas decisões judiciais — principalmente nos processos contra os poderosos — e também contra a “moleza” com que são julgados assaltantes e sádicos e perigosos. Para consertar isso é preciso, pelo visto, um crescimento do “ativismo” judicial, porque esperar muita “firmeza” de nossos legisladores é problemático enquanto boa parte dele se vê em perigo, acusados de tráfico de influência. Quando um Poder se omite na sua missão, é dever dos demais Poderes preencher tal omissão. O que não cabe é dizer ao povo que ele dever perder a esperança e rezar para não ser a próxima vítima. 

Como já ocupei espaço demais, fica por aqui a mensagem.



(4-5-2012)