quarta-feira, 30 de abril de 2014

“Mensalão”. É lícito, ou moral, exacerbar a pena para evitar a prescrição ou a desmoralização da justiça? É.


Não sei se, no processo referido, houve ou não exacerbação proposital da pena, segundo o quase ilegível e complexo conjunto de regras legais e teóricas engessando a mente do juiz.
O tema “fixação da pena” tornou-se um assunto de extrema complexidade jurídica. Existem divergências doutrinárias dificilmente compreensíveis para saber qual a “corrente” mais certa no modo de compatibilizar pena base, agravantes e atenuantes. Como se, na avaliação de qualquer crime o juiz tivesse que seguir um manual redigido em sânscrito, ou compêndio de física quântica, inacessível ao conhecimento do comum dos homens. Com tanto tecnicismo, como o país poderá saber se a pena foi ou não exagerada?
Se, eventualmente, o Min. Relator, e os colegas que o apoiaram, exacerbaram a dosagem da pena — em crimes provados nos autos — para evitar o triunfo da impunidade, essa exacerbação seria perfeitamente moral e merecedora de total apoio da maioria dos brasileiros que preferem a não desmoralização do país.
Durante e após o julgamento da Ação Penal 470, os combativos defensores e também alguns Ministros do STF, censuraram as penas altas impostas aos réus, porque todos, se não todos, são tecnicamente primários.
Quanto ao julgamento da culpa ou inocência dos acusados, poucos — quando desinteressados — criticam o resultado do julgamento, que se desenvolveu segundo as normas processuais vigentes, sem cerceamento do direito de defesa. Se, eventualmente, algum excesso houve, como disse, seria apenas dosagem da punição.
Censuras não foram poupadas contra o Min. Relator Joaquim Barbosa que, possivelmente, escolheu pena base acimo do mínimo, para com isso evitar uma conclusão de que vários crimes já estariam prescritos. Como todos, da área, sabem, “escolhida”, ou fixada, a pena base, sobre ela são calculadas as agravantes e atenuantes.
Por que o Min. Joaquim Barbosa talvez tenha adotado uma “filosofia mais severa” na fixação da pena?
Essa pergunta poderia ser respondida com outra pergunta: O que as brasileiras e brasileiros e honrados — são dezenas de milhões — pensariam de nossa Justiça, de nosso caráter, de nossos juízes, da Polícia Federal, do Ministério Público, de nossa legislação em geral, de nossa moral e até mesmo de nossa mera inteligência, se tudo terminasse em uma gigantesca “pizza”, quase tudo prescrito, caso as penas fossem fixadas em seus limites mínimos? Ou com réus de alta “periculosidade financeira” condenados a pagar algumas cestas básicas, ou pequenos trabalhos comunitários? 
Após muitos anos de tramitação processual, enredada pelo compreensível esforço profissional de inteligentes advogados criminalistas — eles faziam o papel que se espera deles, defensores — o mensalão chegou à fase de julgamento, propriamente dito. E aí o País como que “travou”, na área política e judicial.
 O STF foi “requisitado” para o famoso julgamento, atraindo a atenção distraída do mundo jurídico. Foram mais de 50 sessões, acompanhadas ao vivo em milhões de aparelhos de televisão. Uma autêntica mas sisuda e tensa ‘Copa Judiciária”, que serviu para mostrar à população como funciona, na vida real, a justiça no seu nível hierárquico mais alto. Por sinal, uma iniciativa midiática pioneira — pelo menos na escala —, usual que é o segredo, ou discrição, das cortes máximas, em todos os países, quando certas discussões — e atritos temperamentais entre magistrados... — ocorrem em salas fechadas. Se tudo terminasse prescrito ou transformado em “cestas básicas” — após um imenso desvio de centenas de milhões de reais —, o Brasil seria motivo de gargalhadas desmoralizadoras — até mesmo em países de mínima relevância política, econômica e cultural —, a comprovar nossa “atávica leviandade carnavalesca” no tratar assuntos sérios.
Não se alegue que, se o processo do Mensalão prolongou-se demasiado, isso é culpa do próprio Poder Judiciário, conhecidamente moroso, não podendo o réu “pagar por falha que não é dele, mas do Estado”.
Só quem desconhece a realidade dos milhares de processos judiciais em tramitação no STF é que pode dizer isso. Os processos — no caso com quase 40 réus politica e socialmente importantes — demoram muito porque as leis processuais requintam-se em proteger os direitos dos acusado, sendo muito menos “requintados” no proteger os direitos de suas vítimas, sejam elas pessoas físicas ou morais. E as petições dos acusados são extensas, com conteúdos complexos que, se não conseguem convencer, servem pelo menos para retardar. E multiplique isso por 40, para exame de um só Relator (que não trabalhou exclusivamente com o processo de que foi relator).
Elogiável, portanto, moralmente, o esforço do Relator do Mensalão no sentido de impedir que o famoso processo se transformasse em anedota antibrasileira, em propaganda de rebaixamento de nossa Justiça, de nosso próprio país, e de nós mesmos. Quando um país fica desmoralizado seus nacionais também ficam. Isso é , ou era, perceptível em aeroportos de países do primeiro mundo. Brasileiros têm, ou tinham, a fama de inconfiáveis...” Tal baixo conceito foi perceptível para mim, em uma estada de pouco mais de um mês em Londres, 22 anos atrás. Um senhor  inglês, brincalhão, sem nenhuma intenção de ofender, referiu-se, rindo, ao Brasil como sendo “o país do futuro, nunca do presente”. Não esquecer, leitor, que nossa legislação penal oferece generosas vantagens na progressão da pena. Cumprido apenas um sexto, começam as facilidades. Quando não há prisões albergues o réu cumpre prisão domiciliar. Bem-vinda para esposas ciumentas, casadas com maridos travessos, mas encarada com revolta por viúvas de assassinados e vítimas em geral, não só em crimes de sangue.
É lícito ao juiz pensar na dimensão também moral da aplicação da lei? A meu ver, e na opinião de muitos, a justiça só cresce quando procura diminuir o espaço entre lei e moral. Se não é possível uma coincidência perfeita entre lei e moral, que se tente ao máximo essa justaposição. Mas a complexidade da vida moderna trabalha, talvez inconscientemente, para distanciar ao máximo essas duas noções, como se fossem universos distintos, ou até hostis. Os “espertinhos” de sempre esforçam-se para um máximo de distanciamento “frio” entre lei e moral, obviamente por motivos interesseiros.
Relembro o caso — já mencionado em outro artigo —, do noivo que, duas ou três décadas atrás, após casar-se, no cartório, pelo regime de comunhão universal de bens, deixou a noiva esperando no altar da igreja. Vários anos depois, sabendo que a frustrada “esposa” — sem mesmo a lua de mel — havia progredido de vida, apareceu com um processo de divórcio baseados na fala de coabitação por mais de cinco anos. Queria a metade dos bens da mulher. Tecnicamente, teria direito, porque a noiva, emocionalmente arrasada, não anulara o casamento. Sabiamente, o T. Justiça de S. Paulo indeferiu a pretensão do noivo “esperto”. Deu mais valor ao aspecto moral que à legislação em vigor.
A legislação penal, em todo o mundo, foi resultado da ânsia coletiva por uma moral superior. O primeiro “Código”, pelo menos o mais conhecido, os “Dez Mandamentos”, procurou catalogar, em forma sintética, o que considera errado. A sanção, embora apenas moral, produzia efeito, porque o homem de então tinha medo real de um castigo divino, esperável até mesmo antes da morte.
Com o avanço do ceticismo, o legislador precisou transformar a lei moral em lei escrita. E para forçar seu cumprimento criou as penas, a perspectiva  intimidante de um sofrimento imposto legitimamente pelo Estado. Crescentemente ameaçador, conforme o grau de maldade humana, ou prejuízo geral, do agir do infrator. Era o único meio conhecido de afastar ou contrabalançar a tentação do crime. De início, penas extremamente cruéis, provocando repulsa em pessoas de sensibilidade mediana.
 Chegamos, finalmente, ao estágio da privação da liberdade como forma de punir. Uma “meia tortura” psicológica, que pouco recupera quem não quer “ser recuperado”, mas pode, pelo menos, alfabetizar o detento analfabeto e talvez habilitá-lo para uma profissão útil enquanto ele espera o término da pena. Para políticos, financistas e pessoas socialmente bem sucedidas — adeptos da “via rápida” para a riqueza —, a única utilidade da pena é mesmo incutir o temor do sofrimento moral: a reclusão em um ambiente de desconforto, por melhor que, eventualmente, seja, fisicamente, a sua cadeia. Aí não se trata de “recuperar” um pobre diabo que nunca teve chance na vida. Um banqueiro ou político corrupto não se interessará em aprender, na cadeia, o ofício de encanador ou eletricista. O aborrecimento, o desprestígio social, a “grana” que não vem mais e as despesas com a defesa judicial já representam um tremendo desestímulo para novos crimes.
Se a prisão raramente recupera, o oposto da prisão — a impunidade —, não só não recupera, mas estimula novos crimes. Tanto do próprio condenado quanto de inúmeros indivíduos que estão com a intenção de cometer crime igual, ou assemelhado, mas receosos das consequências. Se não há consequência, se a justiça é uma piada, por que não aproveitar? O crime pode trazer riqueza, poder, prazer sexual ilimitado, conforto, luxo e até mesmo o respeito decorrente do medo.
Clamar que a prisão não recupera é um juízo incompleto  porque só pensa no que está na cabeça do condenado. Mesmo porque o orgulho, humano e universal, raramente nos permite dizer com  sinceridade: — “Confesso-me derrotado pelo Estado; renego o que fiz;  prometo abaixar a cabeça e andar na linha, como um menininho medroso punido pela professora”.
 Quando um empedernido bandido, entrevistado para exame de uma liberdade condicional, diz “Estou recuperado!”, raramente estará sendo sincero, porque isso não confere com a natureza humana. Eu, juntamente com o leitor — imagino —, não aceitaríamos mudar nossas personalidades de modo forçado, pressionados “de fora’. Como sou pessoa de reações medianas, suponho que outras pessoas sentem de forma igual.
 O sofrimento da privação da liberdade recupera, sim, em muitos casos. Cansado de sofrer com a privação da liberdade, o infrator — embora por mero cálculo de conveniência — prefere evitar novos problemas com a lei. É previsível que os réus condenados no Mensalão, depois de cumpridas suas penas, mesmo em prisão albergue, fugirão horrorizados de qualquer convite para participar de um “esquema malandro” acenando com milhões. “Ao diabo com os milhões!”, dirão. Isso porque a consequência, no caso, foi arrasadora.
Como digo sempre, enquanto não for possível modificar, por métodos educativos ou neurológicos de extrema perfeição — ainda inacessíveis —  o que se passa dentro da caixa craniana, o único remédio para evitar condutas antissociais é ainda o medo da punição. E não basta o medo de ter que devolver a riqueza desviada. Com esse tipo de punição, valeria a pena continuar desviando: — “Se eu tiver o azar de ser descoberto, eu devolvo, ora! Se não for descoberto, prossigo! Vale a pena arriscar”.
Concluindo, tenha, ou não, ocorrido alguma eventual                                                                  severidade maior na fixação da pena, no Mensalão, para evitar a desmoralização descrita neste artigo — prescrições ou apenas cestas básicas —, tal preocupação só mereceria encômios. Ergueu o Direito Penal a um patamar mais elevado. E para isso foi necessário certa dose de coragem, teórica e até mesmo física.

(29-04-2014)

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