domingo, 3 de junho de 2012

Direito ao silêncio, sem consequência?

                Respeito e faço questão de manter amizade com os poucos advogados criminalistas com quem tenho mantido algum contato. Especialmente com o Dr. Tales Castelo Branco, que sempre me distinguiu com sua amizade desinteressada. Já a minha amizade com ele não é tão desinteressada assim, porque não é impossível que venha a precisar da sua competência profissional, algum dia, quando minha ingênua mania de escrever o que realmente penso — as “minhas verdades” — me condene a figurar como réu por suposto crime de injúria, difamação ou preconceito “anti-qualquer coisa”. Vivemos uma época de exagerada criminalização de quase tudo que uma pessoa normal faz, diz, ou apenas resume o que vê. O mero abrir — ou fechar, quando deveria abrir — a boca pode originar um processo judicial. 

Lendo os jornais, recheados de intrigas políticas, com deduções tremendas de “exploração de prestígio” e “tráfico de influência”, a mera proximidade corporal, eletrônica ou cibernética se tornou um perigo. A qualquer político, magistrado, ou empresário, zeloso da sua reputação, recomenda-se levar uma vida de ermitão social. Nunca aceitar uma carona de automóvel, avião, helicóptero ou barco sem antes exigir, de quem o convida, certidões negativas, atualizadas, de todos os cartórios judiciais, com “um nada consta”. E convém, para maior garantia, que contrate detetives para sondar o passado dos eventuais contatos porque eles podem ser marginais enrustidos. 

Ser fotografado ao lado de pessoa com possíveis inimigos está se tornando uma atitude temerária porque sabe-se lá o que a mídia concluirá dessa aproximação. Até que se prove sua inocência, sua reputação estará arruinada. E mesmo se nada for apurado, a má-fama continuará porque a população não tem como ler tudo o que aparece nos jornais. E caso leia, não terá certeza se “o cara” não é mesmo bandido, escapando da cadeia apenas porque “contratou um bom advogado”. 

As genéricas considerações acima não têm — é bom deixar claro — conexão com os atuais escândalos relacionados com um empresário dos jogos de azar cujo nome lembra água que despenca de grande altura. Isso porque se um político alega nunca ter tido contato com um suspeito e a mídia prova — com fotos, e-mails e registros telefônicas —, que esse contato era frequente, essa diligência investigadora mostrou-se pertinente, no sentido de que o político está mentindo. E quem mente está, em tese, escondendo algum malfeito, porque ninguém mente à-toa . Agora, se o político, magistrado ou empresário admite, de pronto, que manteve contato social, comercial ou institucional, com Fulano ou Sicrano, explicando com naturalidade e verossimilhança a natureza desse contato, que este não seja motivo para jogar o cidadão aos leões e hienas da mídia. Leões são a grande mídia. As hienas devoram o que sobra.  

Os criminalistas são, de modo geral, profissionais simpáticos, curiosos, inteligentes, comunicativos, receptivos ao humor, alguns até engraçados no momento certo — em defesas no júri uma “sacada” pode decidir um julgamento —, bem informados e com alguma veia literária. Tenham ou não escrito, ainda, trabalhos de ficção, ou fora dos autos. De tanto ouvir, dos clientes, desabafos, verdades que não podem ser ditas a mais ninguém, mentiras que precisavam ser ditas para salvar a pele — a própria ou de um grande amigo ou parente que quis apenas ajudá-lo —, acabam se tornando ótimos psicólogos, conhecedores dos recantos morais mais escuros, inacessíveis a outros profissionais, instruídos apenas com o habitual jogo de mentiras de todo tipo de comércio. Imagino que os sacerdotes de antigamente, calejados na escuta de pecados e manobras para “dourar a pílula” — tentando inconscientemente enganar o próprio confessor —, não ficavam muito atrás de Freud no conhecimento da alma. Pelo menos o que ocorre no porão, ou banheiro. 

Feito esse introito, demonstrativo de respeito por uma profissão muito ingrata, porque a comunidade gostaria de ver muitos de seus clientes atrás das grades, por décadas, ou mesmo enforcados — isso não ocorrendo “por culpa dos “advogados espertos que aproveitam as falhas da lei” —, sinto-me obrigado, como simples cidadão, a sugerir algumas alterações — na lei ou na jurisprudência —, que diminuiriam a evidente impunidade reinante. 

Deixo claro que se eu vivesse da advocacia criminal e precisasse sustentar minha família, faria exatamente o que todos fazem — se dentro da legalidade —, porque é da essência da advocacia defender o cliente usando os instrumentos processuais disponíveis. Assim como um cirurgião do governo, designado para operar o coração de um financista desonesto, não pode errar, de propósito, na operação — visando eliminar um homem daninho  —, não pode o criminalista deixar de usar seus conhecimentos em benefício do cliente. E ficar recusando ricos clientes é suicídio profissional. Por que, afinal, estudou tanto se não pode usar tais conhecimentos? 

A comunidade revolta-se, com razão, contra a impunidade dos ricos que se veem processados e, se condenados, não cumprem pena de prisão em regime fechado. Esse sentimento de que existem duas justiças, a do rico e a do pobre, é bem compreensível. Mas a impunidade, nesses casos, não é total. Existe um castigo moral e social. Primeiro, porque a desmoralização do réu sempre lhe é desagradável. Por mais cínico que seja o réu, não lhe agrada ser visto como ladrão. Seus filhos, nas escolas, também passam vexames e não há muito o que se fazer a respeito, se o “bullying” não é físico. As esposas de tais marginais veem muitas amigas afastarem-se discretamente, com medo do “diz-me com quem andas...”. Os negócios sofrem grande queda, ou mesmo fecham, muitos amigos afastam-se, fingem que não o veem, etc. E seus advogados, quais justiceiros particularizados, extraem o que podem — o contratado não é caro — para evitar o grande pavor do desonesto: o xilindró. Um banqueiro, sem privilégios, nas sujas cadeias dos países subdesenvolvidos viveria — mera hipótese — a antecâmara do inferno, com dezenas de diabos de carne e osso tentando sacar alguma vantagem. 

Passemos, agora, a examinar alguns pontos fracos da nossa legislação e jurisprudência que precisariam ser modificados para recuperação do prestígio da justiça criminal. Comecemos com o bafômetro, quando recusado por motoristas que se envolvem em acidentes. 

Essa recusa não pode deixar de gerar alguma consequência legal, como se vem pretendendo. É evidente que seria ridículo forçar o motorista a assoprar no aparelho. Não porque ele “não pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo” — invocação que, por si só, é uma confissão de culpa. É como se ele dissesse: — “Como estou alcoolizado, não vou permitir que se constate isso com um aparelho!” 

Não é possível “forçar” porque, para isso, teria que haver ameaça e talvez luta corporal, até com a possibilidade cômica de um motorista — fortíssimo, alterado pelo álcool e acompanhado de amigos —, inverter os papéis, colocando o aparelho na boca do guarda alegando que era este que estava bêbado. Bêbados têm ideias inesperadas. Um deles, pescando nos EUA, aborrecido porque um pequeno tubarão roubava suas iscas, atirou-se à água, atracando-se com o esqualo, que fugiu apavorado sem dar no agressor uma única mordida. Uma sensata jurisprudência teria que, maciçamente, presumir que o motorista só não assoprou o bafômetro porque reconhecia estar com alta dose de álcool no sangue. A presunção de embriaguez estaria no simples fato da recusa, cabendo ao motorista provar depois, em juízo, querendo, que essa presunção não se aplicava, no seu caso. 

Alegará talvez, seu defensor, que a presunção não poderia prevalecer porque o motorista, por exemplo, não estava, momentaneamente, em seu juízo perfeito, porque tomara remédio com efeitos colaterais que ele desconhecia; ou que é insano desde que nasceu; que é índio não inserido na civilização, ou qualquer condição excepcional. Tudo isso exigiria prova difícil. Se o réu é louco não poderia guiar automóvel; se estava fora de si porque é consumidor de drogas, não poderia estar ao volante; o mesmo se diga do suposto índio não civilizado que, como tal, não teria habilitação para dirigir. 

Em suma, a mera recusa em praticar um ato legal que, de imediato, poderia comprovar sua inocência, já encerra uma presunção de culpa. Alguma pena teria que sofrer o recusante para não tornar inútil uma lei que visa diminuir o número de mortos no trânsito. As leis não são criadas apenas para proteger acusados. Visam defender também o interesse da sociedade. 

                   Nos aeroportos de todo o mundo o cidadão que quer entrar em um avião de passageiros é obrigado a passar por sistemas de alarme e permitir que sua bagagem passe pelo raio-x. Se ele se recusa a fazer isso, simplesmente não embarca. O efeito da recusa é imediato e sem apelação. Ridículo seria, nesse caso, ele dizer que não aceita ser revistado porque não é obrigado a produzir prova contra si mesmo mas que, precisando viajar, seria inconstitucional impedir seu direito de ir e vir, inclusive pelo ar. E, ainda no caso do bafômetro, dizer que a prova da embriaguez poderia ser comprovada com prova testemunhal é desconhecer a vida real. Dificilmente curiosos que pararam no local para olhar o que aconteceu vão aceitar ser arrolados como testemunhas, sendo depois convocadas a depor em juízo, dizendo se o motorista estava ou não com jeito de embriagado. 

Outra distorção abusiva da ideia de que “ninguém pode produzir prova contra si mesmo” está no uso do silêncio nos depoimentos judiciais, sem nenhuma consequência jurídica. Imaginemos um perigoso e rico traficante que é requisitado para o interrogatório. Chegando ao fórum — escoltado por viaturas e até helicóptero, mobilizando dezenas de policiais — ele decide calar. Que não seja forçado a falar é compreensível, mas que essa recusa não gere qualquer consequência é irracional e um insulto à sociedade. A pegar essa moda, seria melhor intimar, bem antes da audiência, o defensor e o réu a se manifestarem quanto à intenção, ou não, de silenciar. Porem, mesmo que diga, o réu, que vai falar, nada impede que ele mude de ideia ao chegar ao fórum, ridicularizando a justiça. “Mudar de ideia é um direito constitucional”, diria. 

Um detalhe que desmoraliza as comissões parlamentares de inquérito, está na permissão do “cochicho” entre o convocado e seu advogado, ou mais de um, antes do convocado responder às perguntas. Afinal, é um depoimento ou junta consultiva? A comissão quer extrair a verdade do convocado, ou do seu advogado? O depoimento pessoal não pode ser apenas um meio de defesa. Deve ser muito mais a uma busca da verdade. Se fosse encarado apenas como meio de defesa, quando o réu caísse nunca contradição que, por si só, implicasse em confissão de um crime, essa confissão — pergunta-se — não serviria para nada porque teria funcionado como acusação, violando a “essência” defensiva do interrogatório. As “essências” filosóficas permitem concluir qualquer coisa, conforme o interesse de quem as invocam. 

Concluindo, se o Poder Judiciário não reagir, na área penal — principalmente formando um lobby atuante no Congresso Nacional e criando uma jurisprudência mais valorizadora da busca da verdade real — o destino da magistratura está selado, não obstante a vasta maioria dos magistrados seja estudiosa e se guie por padrões éticos. A companha jornalística contra a violação do teto salarial, no judiciário, foi aplaudida pela população porque ela está muito decepcionada com a justiça. Tão decepcionada que se o ganho máximo, comprovado, dos juízes fosse de seis mil reais, a população diria “Ainda é muito!” 

Que as considerações acima não assustem os criminalistas mais estudiosos. Uma maior “dureza” interpretativa — maximizando o bom senso —, valorizará sua atividade profissional. Hoje, a “coisa” está tão fácil para “anular tudo” que já não é mais necessário muita leitura e saber para soltar criminosos em “habeas corpus”.  Ou então, que o Congresso confesse abertamente que essa história de prisão é velharia, vingança social inútil e dispendiosa, e invente uma nova técnica que desestimule as pessoas propensas a cometer “crimes”, digo, “fatos socialmente incorretos”.

(3-6-2012)

 




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