quinta-feira, 20 de maio de 2010

E agora, senhores lobos?

Para quem não se lembra como La Fontaine — na fábula “O lobo e o cordeiro” —, retratou a constante prevalência dos argumentos da parte mais forte, repito-a aqui, com discretos floreios — liberdade literária... —, mostrando sua pertinência analógica com a reação das grandes potências ao acordo nuclear firmado entre o Irã, a Turquia e o Brasil em 17-5-2010.

Diz a fábula que um cordeiro bebia água de um córrego que fluía em um terreno inclinado quando viu um lobo se aproximando para saciar a sede. O lobo estava em plano mais alto que aquele ocupado pelo cordeiro. O indefeso herbívoro tentou se esconder mas já havia sido avistado pelo lobo. Este, carrancudo, certamente já salivando a iminente refeição, iniciou o seguinte diálogo com o cordeiro:

— Como se atreve a sujar a água que estou bebendo? — Não estou sujando nada, porque a água corre do alto para baixo e o senhor está acima — Isso não importa, porque você andou falando de mim um ano atrás! — Mas, senhor lobo, um ano atrás eu não havia ainda nascido! — Se não foi você, cordeiro safado, deve ter sido seu irmão! — Não pode ser, porque sou filho único... — Então deve ter sido algum cordeiro seu amigo, ou o cão que guarda o rebanho, ou mesmo o pastor, essa cambada. O fato é que sinto-me juridicamente ofendido!

Com essa altiva argumentação o lobo deu por encerrada a artificial polêmica, carregando nos dentes sua presa para devorá-la em local tranquilo. Mastigando o ex-argumentador, talvez tenha pensado : “Cala-te, consciência! Lobos também são “seres humanos”. O Criador não me construiu para comer verduras. Se alguém é culpado pelos sofismas capengas que inventei na hora, culpa não me cabe”.

A moral da história já foi mencionada no início do artigo: não é difícil forjar “argumentos” para justificar os interesses do mais forte. No atual momento internacional a força está toda em favor dos países que simpatizam politicamente com Israel — notório possuidor de armas atômicas, sem ser incomodado — e temem, ou fingem temer, que o Irã está planejando fabricar bombas atômicas para despejá-las em Israel; mesmo sabendo — o próprio Irã —, que seria triturado e torrado, em assadeira nuclear, logo em seguida ou até mesmo simultaneamente ao ataque “trapalhão” iraniano.

Uma perspectiva de conflito armado é o sonho dourado da lucrativa indústria bélica de vários países, e serve ainda aos interesses políticos do grande inimigo do Irã na região, nem um pouco satisfeito com a perspectiva de ter que retomar as desagradáveis conversações bilaterais que tentam discutir a criação de um Estado palestino vizinho, com crescimento populacional muito superior ao de Israel. Com o acordo celebrado no dia 17 de maio de 2010, os “lobos”, pesarosos com a diminuição do risco de conflito armado, precisam inventar novos argumentos para turvar as águas; e já o fazem, conforme a mídia de hoje, 19-5-10.

Para entender, com clareza, e globalmente — sem a visão geral do problema é difícil compreender os fragmentos — o “problema Oriente Médio”, cumpre insistir na visão sintética, no “bê-á-bá” da questão palestina e seus desdobramentos que chegam até o acordo nuclear referido no início do texto. A exposição, curta, esquemática, será considerada “primária”, ou “ingênua” pelos interessados em manter um clima pré-bélico, ou francamente bélico, mas o autor ainda confia na existência da honestidade intelectual e inteligência da maior parte dos que lêem artigos sobre a controversa questão. Façamos um resumo, apertadíssimo, da chaga que apresenta potencial para transformar o planeta em uma imensa ferida, infectada de ódio e com pressentimentos de carne assada.

Como já disse, segue-se uma “cartilha”, muito simplificada, justamente para permitir um rápido entendimento do assunto.

No ano 70 da Era Cristã. Jerusalém foi destruída pelos romanos. Os judeus viram-se forçados a abandonar Israel, a conhecida “segunda diáspora”, não se vislumbrando nessa expulsão a participação incentivadora de árabes palestinos. Até então, árabes e judeus conviviam razoavelmente. A maior parte dos judeus espalhou-se pelo sul da Europa mas foi se movendo paulatinamente em direção ao norte. Não obstante essa diáspora, os judeus, zelosos de seus costumes e tradições religiosas, pouco se mesclaram com os europeus e foram perseguidos, de variadas formas, inclusive — em alguns países —, com a proibição de adquirir terras para a lavoura.

Como decorrência dessa proibição, precisando ganhar a vida, os judeus especializaram-se no que lhes era possível: comércio e finanças, tornando-se muito hábeis em assuntos de moedas e negócios em geral. Mais que os cristãos porque o cristianismo não via com bons olhos a “vulgar” e terrena atividade mercantil. Os olhos cristãos miravam o infinito, espiritualismo bonito mas que, como todos sabem, não paga as contas. Quando faltava dinheiro, alguns governantes cristãos pediam-no emprestado aos judeus, mas na hora de pagar, se não havia como, inventava-se um “pogrom”, alegando que os judeus eram os assassinos de Jesus Cristo. E a turba, invejosa da riqueza judia, dava plena vazão aos sentimentos reprimidos. Cabe ainda salientar que os judeus, em decorrência dos negócios com outros povos, cultivaram o aprendizado de línguas estrangeiras, poderosa ferramenta que os manteve, em média, mais bem informados que os praticantes de outras religiões.

Vítimas de periódicos “pogroms” (massacres), confiscos e humilhações, seria natural que ansiassem por um “lar”, um país que fosse e próprio, não como meros hóspedes, mais ou menos tolerados. Mas qual seria esse país, depois de quase dois séculos espalhados pelo mundo?

Com a subida ao poder, na Alemanha, de Adolfo Hitler — poderoso orador mas medíocre pensador, violentamente anti-semita —, os judeus europeus tentaram obter autorização de outros países para uma migração em massa, fugindo da ameaça nazista. No entanto, não obstante declarações formais de solidariedade, tais países, inclusive os EUA, não concordaram em receber milhões de judeus alemães, o mesmo ocorrendo com outras nações, simpatizantes — da boca pra fora —, do anseio dos semitas de viverem em segurança.

Bem antes de Hitler, em 1902, o Secretário Colonial Britânico chegou a oferecer aos judeus uma área — “Mau Plateau” — de 5.000 milhas quadradas, em Uganda — hoje essa área faz parte do Quênia —, mas o oferecimento foi rejeitado com o fundamento de que havia muitas feras na região e a presença de nativos Massai, poderia representar um problema. O clima, em si, não era mau, porque o platô estava em boa altitude e se assemelhava ao clima do sul da Europa. Tal proposta acabou sendo rejeitada em um congresso sionista. A meu modesto ver, uma decisão errada porque com o tempo Israel teria se tornado uma potência, com seus habitantes livre das inquietações inerentes a todo país que se transforma em força de ocupação, como ocorre na Palestina. O máximo que poderia ocorrer seria alguma revolta de nativos locais, caso não fossem tratados com respeito.

Enfim, com o incessante afluxo de judeus para Israel, vindos de toda parte, sem um “basta!” dos sucessivos governos israelenses, a mera quantidade de pessoas ocupando um mesmo espaço resultou no que seria mesmo inevitável: a expulsão, pura e simples, sem indenização, dos mais fracos, no caso os palestinos. Aí está a grande ferida, cada vez mais infeccionada e se expressando em “homens bombas” e foguetes pouco mais que caseiros que — por enquanto... —, causam mais ruído que matam pessoas. Não matam muito mas servem de pretexto para interromper as conversações que visam partilhar a Palestina em dois Estados. Algo que o atual governo israelense, no fundo, não aceita de forma alguma, embora não diga isso de forma explícita, temeroso de perder apoio internacional.

Onde entra o “Irã nuclear” nisso tudo? Haveria apenas solidariedade ao sofrimento palestino, ou desejo de aumento de poder na região, como alega Israel? Arrisco afirmar que a solidariedade deve ser o fator preponderante porque o mero desejo de aumento de influência, via crescimento nuclear, tem se mostrado imensamente contraproducente, “desinfluente”, um tiro no pé, perigosíssimo para o futuro do próprio Irã. O país tornou-se, por obra e graça de seus inimigos, um vilão internacional, sofrendo progressivas sanções, com nova safra à vista, conforme jornais de 19 de maio. Hillary Clinton já deixou expresso que o Conselho de Segurança não vai levar em conta o acordo celebrado, dias antes, entre o Irã, Turquia e Brasil. Hillary reedita a fábula do lobo e do cordeiro, “se não foi você, Irã, que sujou a água, foi seu parente, seu cão ou seu pastor”. A ordem é devorar o Irã, seja qual for o pretexto, aproveitando a circunstância de seu atual presidente, Ahmadinejad, ser um boquirroto que pronunciou algumas frases tolas no passado e tem medo de passar por covarde — ante seus cidadãos —, caso retire a bobagem sobre a inexistência do Holocausto e a promessa infantil de varrer Israel do mapa.

Várias décadas atrás, o Xá da Pérsia assinou o TNP, mas, segundo o art.X desse tratado, pode se retirar do mesmo alegando, por exemplo, questão de segurança (em relação a seu inimigo Israel). Acesse, o leitor, na internet, o referido Tratado de Não Proliferação e verá como seria fácil, pelo menos sob o ângulo jurídico, livrar-se de críticas e inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.

Decorridos três meses após apresentado o pedido, o Irã estaria livre da acusação de descumprir qualquer norma internacional. Ficaria em posição igual a de Israel, que sempre deixa implícito possuir armas nucleares e nem quis assinar o TNP, ficando isento de inspeções. Não sei se o Irã deixou de fazer um pedido de exclusão do TNP, por incompetência — falta de lembrança de seu Ministério de Relações Exteriores — ou se deixou de fazer o requerimento porque se o fizesse agora o “lobo” da fábula, ou a alcatéia subserviente, diria que o pedido, agora, seria uma confissão implícita de que está fabricando bombas nucleares, sendo necessária uma urgente invasão do país, antes de decorridos os três meses.

Quem acompanha, diariamente, pela mídia, o que acontece com o “problema do Irã”, fica admirado com a quase ausência de menção da desigualdade de tratamento internacional das posições “atômicas” de Israel e Irã. O primeiro, repito, não assinou coisa alguma e pode se dar ao luxo de fabricar armas nucleares à vontade, apesar de possuir as forças armadas mais bem equipadas do Oriente Médio. Irã é “vilão’ — poderia deixar de sê-lo em três meses —, apesar de haver agora concordado em entregar boa parte de seu urânio para ser beneficiado na Turquia. Assim mesmo sofrerá novas sanções, porque ainda ficou com muitos quilos desse material, necessários ao trabalho normal para fins pacíficos. Frise-se que se o Irã entregasse todo o seu urânio para ser beneficiado em outro país, teria que desativar suas instalações por um longo espaço de tempo. Talvez por décadas, porque ninguém pode garantir como será o futuro. E o Irã faz bem em desenvolver o conhecimento da aplicação do átomo porque o petróleo é um bem finito, poluidor e até mesmo estimulador de ambições energéticas inconfessadas de potências que se supõem “espertinhas”. “Pero no mucho”, porque ainda há milhares de leitores inteligentes, não facilmente enganáveis e que conhecem a fábula, tanto na aplicação antiga quanto na moderna.

(19-5-2010)

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