segunda-feira, 10 de junho de 2024

“Os próximos 100 anos”, de George Friedman”.

Depois de, digamos, certa idade —, no meu caso muita —, passamos a ver o mundo de uma forma bem diferente. Diria exageradamente redutora. Mesmo gozando de razoável saúde quando redigia a primeira versão desta crítica de livro, quando penso na proximidade do meu fim — vira essa boca prá lá... — brota a impaciente tendência de ver todas as coisas de forma sintética. Nós, idosos, queremos conhecer — logo! — não só a conclusão de um livro ou artigo, ou debate, ou notícia, mas o que, verdadeiramente, está por detrás. Em tudo fiquei, ou ficamos assim: conversas, relações sentimentais, comerciais, exposições teóricas, assistindo um filme, lendo livro, etc. O idoso — eu não! — sente que não mais tem o direito de perder tempo. O destino biológico inevitável não está longe e a velha caveira da foice o espia esfregando os ossos das mãos. Como se a natureza, sabendo que o condenado não vai ficar muito tempo usando o oxigênio dos mais jovens, sentisse pena dele, acelerando a manipulação dos seus pensamentos. Preocupamo-nos muito mais com os filhos, netos e com aquelas pessoas de nosso relacionamento que nos parecem economicamente mais indefesas. De certa forma, considerando a origem biológica comum, monocelular, de todos os seres vivos, tais pessoas, e até os animais, são também nossos “parentes distantes”. “O que acontecerá com eles, depois que eu me for?” 

Essa preocupação também se estende aos rumos da humanidade, ao que nos reserva um futuro não excessivamente distante. “Os próximos 100 anos” é um prazo interessante. Dá para tolerar. Já “milênios” é algo distante demais. Daí a motivação para adquirir o livro de George Friedman, que acabei comprando em inglês porque não sabia que já havia tradução para o português. Mas acabei comprando, dias depois, a tradução porque, tendo prometido a um site de relações internacionais que faria uma avaliação da obra, pensei que lendo a tradução minha tarefa seria mais rápida.

 O conteúdo me provocou muita surpresa, até mesmo decepção, reação que provavelmente acometerá todo leitor mais crítico, que não aceita facilmente as opiniões, um tantos excêntricas, mesmo revestidas de autoridade, como é o caso do autor do livro, húngaro de nascimento, respeitado como globalista e conhecedor do mundo. Cem anos, porém, é um tiro superior ao alcance do mais brilhante canhão mental, por mais competente que seja o autor do disparo, como de fato é. 

Livros proféticos nunca me provocaram respeito. Nostradamus sempre me pareceu um esperto aproveitador da credulidade humana. Não há dúvida de que era inteligente e culto. Tinha o coração fraco e precisava cuidar da família. Daí a necessidade de uma fonte de renda: suas abundantes profecias. Todo ano — à maneira do cantor Roberto Carlos, com suas canções —, Nostradamus lançava um almanaque vazado em linguajar algo hermética, possibilitando interpretações ao gosto do freguês. Sempre dá para “encaixar” qualquer desgraça nas inúmeras visões proféticas.

Quem aprecia horóscopos, astrologia, pedra filosofal, alquimia, data do fim do mundo, desdobramento, levitação e coisas do genro só pode prestigiar o mais famoso profeta, que tinha algumas qualidades. Por exemplo, Nostradamus empenhou-se, diversas vezes, com risco pessoal de contágio, nas lutas contra a Peste Negra, que ceifava vidas aos milhares, incluindo sua primeira mulher e dois filhos. Ele também se opunha firmemente ao uso de sangrias (isso por volta de meados do Século XVI). Os médicos da época eram apenas ligeiramente menos ignorantes que a maioria da população. Sabiam Latim mas pouco de Medicina. Sangravam o paciente, enfraquecendo-o ainda mais. A chance de sobreviver era maior quando o paciente fugia dos médicos.

 As profecias de George Friedman, no livro em referência, não padecem das obscuridades de seu famoso maior predecessor. Pelo contrário, Friedman até exagera nos detalhes. Por exemplo, leiam os tópicos abaixo, entre dezenas que sublinhei na tradução: “O que procurei mostrar nos capítulos anteriores é como os Estados Unidos, a Polônia, a Turquia e o Japão se engalfinharão no próximo século e porque turcos e japoneses se sentirão ameaçados a ponto de não terem outra escolha a não ser travar uma guerra preventiva” (pág. 234) — contra os EUA, esclareça-se. E no parágrafo seguinte ele, após pedir licença ao leitor pelo exercício imaginativo, passa a usar seus talentos de romancista: “A destruição das três Battle Stars” (estações espaciais com finalidade estratégica) “será planejada para o dia 24 de novembro, às 17 horas. A essa hora do Dia de Ação de Graças, a maioria das pessoas nos Estados Unidos estará vendo futebol ou descansando depois de uma lauta refeição. Alguns estarão voltando de carro para casa. Ninguém em Washington antecipara um problema. É nesse momento que o Japão vai querer atacar”. Seria o caso de Pearl  Harbor? “Finalmente, “Às 19 h, a força espacial e hipersônica dos Estados Unidos será devastadora. Os Estados Unidos perderão o comando do espaço e só dispõem de umas poucas centenas de aviões. Seus aliados na Europa tiveram suas forças aniquiladas. Navios de guerra norte-americanos ao redor do mundo terão sido atacados e afundados. A Índia terá perdido seus ativos também. A coalizão americana estará militarmente arrasada” (pág.238). Depois ele descreve o contra-ataque. 

Qual a impressão disso tudo? Pura imaginação. 

Alguém poderá argumentar: “Prove que as profecias dele estão erradas!” Impossível, são cem anos, eu teria que usar a mesma técnica abusiva que estou censurando. Crítica e contra crítica assemelhar-se-iam a uma partida de futebol entre internos de manicômio, uma guerra de “chutes” em qualquer direção. 

Só mesmo sua leitura convencerá o leitor quanto ao grau de probabilidade de acerto das “profecias”. 

O livro em exame não tem nenhuma qualidade? Não digo isso. É útil como manual simplificado de Geografia e História, particularmente das guerras e geopolítica. Contém elucidativos desenhos à guisa de mapas. O leitor médio fica sabendo, exatamente, onde fica “o tal” Bósforo, do qual eu tinha antes uma vaga ideia, sabendo apenas que era ali por perto da Turquia. 

Uma outra qualidade do livro é a de revelar os talentos de romancista do autor, um especialista de política internacional. Se lida, a obra, como um mero romance sobre o futuro, nada a opor ao trabalho, porque no reino da imaginação tudo é válido. E não se põe em dúvida seus conhecimentos de estratégia. O que assusta é a sua imensa audácia de prever coisas que tanto podem, quanto não podem acontecer, embora recheando suas afirmações com informações destinadas a impressionar aqueles que pouco frequentam textos sobre política internacional. 

Há também omissões em sua obra. Ele parece ignorar que existe uma União Europeia. Quando fala em futuras reações da Alemanha, Inglaterra, Turquia, Polônia, Rússia e demais integrantes da UE, não leva em conta que tais países já não decidem tudo sozinhas. 

Outra omissão está em imaginar que nos próximos 100 anos o planeta continuará do jeito que sempre foi mas já está, há décadas, deixando de ser: preocupado apenas com o próprio interesse, principalmente estratégico. Seu livro, o tempo todo, tece considerações sobre nações mais fortes tentando dominar as mais fracas e estas tentado ficar mais fortes para dominar as demais. Praticamente ignora a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, e a própria Organização das Nações Unidas. Sobre o esforço das almas mais bem intencionadas — e são milhões — visando um mundo mais justo, nem uma palavra. A consciência universal pede menos guerras e pré-guerras. Como já disse Bertrand Russel, a guerra não determina quem está certo, apenas quem sobrou. 

Se o mundo, nos próximos 100 anos, será como “prevê” o livro em exame — e presumo que ele está totalmente errado —, a humanidade terá dado a si mesma um incontestável atestado de estupidez. Agravada pelo fato inegável da proliferação nuclear. E essa proliferação o autor admite, acertadamente, que será inevitável. Haverá outros Irãs, e Coreias do Norte, digo eu, todos reivindicando o direito de se defender com as mesmas armas dos maiorais de hoje, que se outorgaram, mas só a eles, o direito de manter seus arsenais nucleares”. 

O autor presume —  nisso concordo com ele —, que nos próximos cem anos os países mais importantes serão conduzidos por líderes de segunda ou terceira categoria, só pensando, e de modo estreito, no “interesse nacional”. Esquece que nem sempre os povos erram na escolha de seus líderes. Se o mundo do próximo século for conduzido por políticos tipo Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Benjamin Netanyahu, Joseph Stalin e assemelhados, ainda seria possível vislumbrar imutáveis dias negros no horizonte. Mas isso não é inevitável. Barack Obama é um exemplo de que, mesmo países extremamente fortes dispõem de uma massa de eleitores suficientemente inteligentes, capazes de discernir o que é melhor para o futuro, globalmente. E com a mundialização, o que melhora um país acaba melhorando os demais. Países “piorados”, “bagunçados”, produzem líderes ressentidos, belicosos, provocadores, patrioteiros. 

O autor não se interessa muito pela questão palestina, esta chaga que, a meu ver, está na origem do ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas e ao Pentágono. Bin Laden foi um fanático, envenenado de ódio contra o estilo de vida do Ocidente, mas na motivação para o referido ataque a situação lamentável dos palestinos teve especial relevância. 

Por elementar e evidente necessidade de sobrevivência a humanidade terá que decidir entre continuar existindo pacificamente, obedecendo as regras internacionais sem malícia, ou vivendo em contínuos sobressaltos guerras, ciumeiras de poder, abuso dos mais fracos e o restante do entulho moral que explica porque, ainda hoje, vemos crianças esquálidas procurando restos de comida nos “lixões” enquanto países gastam bilhões e trilhões de dólares em armamentos e despesas com deslocamento de tropas. 

O autor do livro desculpa da acusação dizendo que não lhe cabe “consertar” o mundo, mas prever o que ocorrerá. Só que prevê com excesso de pessimismo, presumindo que a humanidade não fará qualquer tentativa de reorganização no modo como a solucionará seus conflitos mais graves. Não se trata de imaginar que o mundo do futuro será “santinho”. Trata-se de pensar na própria sobrevivência da espécie humana. Mesmo os mais poderosos governantes têm filhos, netos ou até bisnetos. 

Um outro ponto que merece reexame, nas conclusões do autor, é a sua constante preocupação com o declínio do crescimento populacional, quando sua reação deveria ser o contrário. O mundo já está superpovoado. E o desemprego cresce, em razão da informática e da robotização. Será uma bênção o encolhimento da população mundial, porque à medida que cresce a tecnologia e o desejo de conforto, em todos os países, aumenta a poluição ambiental, a escassez de água, etc. O futuro não é estático. Chega dia por dia, imprevisivelmente. Não se pode presumir, como pretende o autor, que daqui a vinte anos as pessoas sintam e raciocinem como ontem ou hoje. O leitor, por experiência própria, sabe que mesmo na semana que vem talvez se comporte de maneira diferente, conforme o que suceda hoje ou amanhã. Essa variação, essa inevitável criatividade humana é algo que nos impede de aceitar as profecias sempre pessimistas do autor do livro. 

Tentei saber a idade exata do autor.  Consegui: 75 anos. Não estará entre os vivos no que se refere à maioria das suas previsões. Essa é uma vantagem para quem escreve profecias de cem anos. 

Estou, aqui, por acaso, recomendando ao leitor que o livro não seja comprado? Pelo contrário, para tranquilizar minha consciência — em tese, vá lá, eu poderia estar errado — recomendo, que ele seja comprado e lido de cabo a rabo.

 Se, porém, como já disse, o livro for lido como um romance de ficção político-científica, sem policiamento crítico, aí não digo nada. George Wells também não acertou em tudo.

Encerrando, revelo minha intenção ao escrever o presente texto: Protestar contra a existência de qualquer guerra, milhões de pessoas, principalmente jovens soldados, morrendo bestamente porque alguns velhos e maduros políticos, com ou sem farda , arriscam só as vidas alheias. É, para mim, inacreditável a estupidez do ser humano, assassinando, legalmente, a nata da juventude, crianças, mulheres e velhos, destruindo cidades, pontes, fábricas, ferrovias, construídas com tanto trabalho.

É assunto para outro artigo.

FIM

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br

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