quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A PECHINCHA

 

Foto divulgação 

            Era um senhor muito interessado em finanças. Via nelas uma certa sofisticação intelectual. Mais isso, talvez, do que a pura e simples cobiça, pois, vez por outra, sofria esquisitos ataques de liberalidade. Se bem que jamais escondendo tais impulsos. Por que ocultar — justificava-se —, algo tão nobre e contagioso: o bem que fazemos aos nossos irmãos? Fazendo uma “honesta” autoavaliação — mais tortuosa que um saca-rolhas —, não lhe seria difícil argumentar, confundindo detratores, que, se era esperto, também ajudava pessoas quando podia. E citaria exemplos. Insistia em definir-se como um homem de arguta visão comercial, capaz de extrair de todas as situações um específico proveito econômico.

            É claro que, neste mundo cruel, sempre existe uma alma invejosa pensando, a nosso respeito, coisas más. Um outro senhor, com quem mantivera pequena sociedade — dissolvida quase a tiros — dizia, abertamente, sem escolher audiência, que “se houvesse, na Europa, uma máquina capaz de extrair o mau cheiro de um fedorento resíduo humano, ele” — o nosso biografado — “importaria essa máquina para tirar o fedor, comendo depois seu próprio resíduo, economizando o gasto com a própria alimentação”.

Esse ex-sócio, escritor frustrado, era um tanto maníaco por metáforas, como é fácil perceber. Gostava de se expressar com rodeios, o que irritava nosso financista, adepto da fria objetividade. Pelo menos entre sócios. Com os fregueses e fornecedores — era sua opinião —, tudo bem com as voltinhas, reticências e mal-entendidos propositais porque “guerra é guerra”! Esclareça-se, porém, que a briga com o sócio foi mesmo por dinheiro, não por questões de estilo.

            Admitia que “não gostava de perder dinheiro”, ocasião em que seus empregados comentavam, à boca pequena: — “Mas não precisa exagerar...”. E ficava doente quando lucrava menos que seus concorrentes. Enganado, então, mesmo em centavos, sentia vontade de agredir, morder; impulsos só contidos porque um processo criminal implicaria gastos com advogado.

            Aos domingos, bem cedo — antes que algum outro, seu igual, corresse na frente — gastava uma ou duas horas lendo, nos jornais, anúncios de vendas, na esperança de localizar uma pechincha. Se encontrasse alguém “com a corda no pescoço” por que não aplicar as normas do capitalismo? Se não o fizesse, algum outro o faria, não é verdade?

            Tendo acumulado, em “verdinhas” americanas, uma boa reserva de dólares, guardada em casa num pequeno cofre metálico, disponível precisamente para negócios urgentes, percorria, naquela manhã, os classificados. E seus olhos brilharam ao se depararem com um pequeno anúncio: uma senhora “de oitenta e um anos” — a menção da idade era estimulante — vendia “bem barato” seu apartamento de quatro quartos, com duas vagas na garagem em excelente bairro. Pedia noventa mil dólares, mencionava a grande área útil, endereço e horário para visitas.

            “Caramba! Se o apartamento estiver em bom estado” — logo pensou —, “e não houver problemas de vizinhança, é uma pechincha! Não haverá alguma cilada? Está bom demais! Um apartamento com essa área, em bairro tão bom, deveria valer no mínimo o dobro, ou triplo”!

            Como o anúncio não mencionava telefone, o arguto financista acabou de engolir às pressas o café, pegou o carro e rumou para o endereço, já pensando em como ser simpático com velhinhas. Sabia que pessoas idosas frequentemente perdem o senso de proporção em negócios imobiliários. O cérebro delas — era sua opinião, não a minha, prezada e inteligente leitora — não acompanhava as mutações do mercado. Às vezes exageravam, pedindo preços altíssimos, irreais. Outras vezes, quando não tinham parentes mais moços que as orientassem, pediam muito menos do que valia a coisa. Quem sabe, no caso, a velha vivia sozinha e não tinha aqueles mesquinhos parentes, espertos, mesquinho, justamente porque interessados na herança. Era sua convicção, por experiência pessoal, que o interesse financeiro multiplica a força dos neurônios.

            Localizado o prédio, o financista não se dirigiu de imediato à portaria. Não, um grande general nunca se precipita em qualquer refrega. Sem descer do carro, percorreu lentamente a redondeza. Deu uma volta completa no quarteirão, examinando tudo com olhos de lince. Um satélite artificial da mais alta tecnologia, na Guerra do Golfo, não esquadrinharia com tanta exatidão uma determinada área terrestre.

            Tudo bem. Nenhuma casa de comércio. Apenas uma banca de jornal, limpa e organizada, instalada quase em frente.

            Por via das dúvidas, seria bom sondar o ambiente. Desceu do carro e dirigiu-se à banca. Comprou um jornal qualquer, só para ter a oportunidade de bater um ligeiro papo investigatório com aquele senhor que, pela roupa, parecia ser o dono da banca. E este confirmou a tranquilidade local. A criminalidade ali era muito baixa.

            Não satisfeito, espiou as paredes laterais do prédio, à procura de manchas de infiltrações ou rachaduras, perceptíveis mesmo com eventuais disfarces de pinturas. Nada viu de suspeito.

            Terminada a arguta inspeção, no item engenharia, dirigiu-se à portaria do edifício, explicando a razão de sua presença. E, em tom casual, indagou se ali havia problemas de condomínio; isto é, se o pessoal pagava direitinho, se existiam conflitos. O porteiro, com a naturalidade de quem diz a verdade, informou que os condôminos eram muito pontuais. — “A maioria, aqui, é gente velha, acomodada”, explicou.

            O apartamento localizava-se no sétimo andar, de frente para a rua. O elevador, bem conservado, subiu sem muito ruído e, quando ele saiu do elevador, a autora do anúncio, avisada pelo interfone, já o aguardava, sorrindo, convidando-o para uma xícara de chá.

            A velha chamava-se Dona Philomena. Era viúva, morava sozinha e parecia uma personagem extraída daquelas inocentes novelas inglesas do início do século 20. Magrinha, pele clara, enrugada, olhos azuis e um jeitinho de olhar que lembrava um passarinho assustado. Usava um vestido leve, simples, que parecia feito em casa, cheio de desenhos florais. Ela e a roupa formavam um conjunto bonitinho, adequado para um camafeu ou lata de biscoitos finos importados da Dinamarca. Enquanto ela servia o chá em xícaras antigas, delicadas, o visitante sentiu-se como que transportado para uma Inglaterra de antes da Primeira Guerra Mundial.

            Nosso financista vistoriou o imóvel e nada encontrou de suspeito. Realmente era um “negocião”. Considerando-se um grande psicólogo, concluiu que, não obstante o jeitinho saltitante, a velha era bem tolinha. — “Esse tico-tico tem apenas a vivacidade física. O cérebro é mesmo de passarinho”.

            Todavia, não queria correr o risco de comprar o imóvel de uma velha gagá, com a possibilidade, depois, de enfrentar uma ação judicial visando à anulação do negócio. Era preciso verificar melhor seu grau de discernimento. Faria isso com sua indiscutível habilidade:

            — O chá está excelente, dona Philomena — agradeceu, devolvendo a xícara à mesinha baixa, cheia de vidrinhos, caixinhas de remédio e chocolates. Sem tocar nos remédios, pôde ler os rótulos com máxima atenção, isso porque entendia um pouco do ramo. E, no chão, perto da poltrona onde estava a dona da casa, havia empilhados três ou quatro livros de Direito Civil, dois deles com o título “Direito das Sucessões”.

            — A senhora é advogada?

            — Por que pergunta? — ela indagou, sorrindo, algo envaidecida.

            — Porque estou vendo esses livros de Direito aí no chão.

            — Ah! Mera curiosidade! São de uma amiga, advogada, do apartamento de baixo. Sou muito curiosa... Mas, para dizer a verdade, não consegui entender muito. Como esses juristas escrevem difícil!

            — Sabe de uma coisa? — ele perguntou, sorrindo, dando ao rosto o máximo de inocência e simpatia. — Olhando para a senhora, nesta sala, servindo chá com bolachinhas, parece que estou visitando a Agatha Christie, aquela novelista inglesa. Nunca vi uma foto dela, mas suponho que as duas são muito parecidas. É impossível alguém ser mais “lady” do que a senhora...

            — Ah! Que chique! — gorjeou a velha, dando um gritinho e batendo as mãos, enquanto se inclinava para trás, quase se deitando de costas. Postura exagerada que logo corrigiu, voltando o tronco à posição vertical. — Já li um livro dela... melhor, quase li, mas gostei demais de um pedacinho. Hoje leio pouco, a vista não dá... E tudo parece muito longo, complicado. Os escritores ficam dando voltas...Prefiro os jornais ou até mesmo um livro, mas com letras grandes. Só que de Direito ou de Economia não adianta! É nó mental... Minha cabeça esquenta e acabo desistindo. E tem ainda o problema da vista, como disse. Um início de catarata nesta vista — e pôs o dedo embaixo do olho direito. — Quando operar, se operar!, voltarei a ler jornais. Exceto a seção de Economia porque tenho verdadeiro horror, horror! a questões de dinheiro!

            — Caramba! Somos iguaizinhos nesse ponto! Se há um tema que detesto, é dinheiro! Acho que se houvesse um jeito de a humanidade se livrar dessa praga, viveríamos felizes e bem mais sadios.

            — É exatamente o que penso! — ela assentiu, com expressão preocupada. — Preciso cuidar da minha saúde. Estou com oitenta e um. Apesar deste meu jeito vivo, enérgico, sou diabética, sofro dos rins e do coração. Quando começo a sentir uma opressão no peito, no coração, tomo logo uma aspirina e isso alivia. Estou rezando para não precisar fazer hemodiálise. A trabalheira que isso vai causar! Meu neurologista me deu, sobre o conjunto de minhas doenças, uma explicação tão complicada, que pouco entendi. Toda vez que eu tentava resumir o que ele explicava, só para poder entender, ele corrigia dizendo “que não era bem assim”, ou “a não ser que...”. Acabei desistindo porque fiquei com medo da resposta... Sou fatalista... O que tiver de ser, será! E não vou comer sem sal, como ele quer! Gosto do salgado bem salgado e do doce bem doce. Depois da janta como meu chocolate, não aceito viver como uma condenada... Bom, deixa pra lá... Não vou aborrecer o senhor com lamúrias de velha doente.

            — Protesto! A senhora não é uma velha. Está muito forte. Vai chegar aos cem anos! Mas, passando ao motivo de minha visita, quero dizer que li hoje, por acaso, o seu anúncio e estou mais ou menos interessado no apartamento. O preço não está excessivo mas...

            — Excessivo?! — a velha o interrompeu, quase ofendida. — O preço está ótimo! Este apartamento vale o dobro!

            Por essa, ele não esperava. A velha não era tão tola. Fingindo surpresa, justificou-se:

            — Desculpe, não quis ofender. É que não estou familiarizado com preços de imóveis. Mas, se vale o dobro — o que não sei, realmente — por que está pedindo só a metade, segundo diz?

            — Porque gostaria de continuar morando aqui até morrer. Apesar de muito grande para uma pessoa só, tenho um apego sentimental a este apartamento. Acontece, porém, que preciso muito de dinheiro. Minha aposentadoria é uma merreca. Se for necessário fazer hemodiálise, onde vou arranjar recursos?  Ou operar o coração?  Ou um transplante de rim? A proposta que faço ao comprador do imóvel é a seguinte: eu vendo ao senhor por noventa mil dólares, mas fica constando na escritura que tenho o direito de continuar morando aqui até morrer, sem pagar aluguel. Minha vizinha advogada, essa que me emprestou os livros, disse que não há lei alguma proibindo essa cláusula. Há até um nome para isso no Código Civil, mas esqueci. E acho que essa fórmula é um bom negócio para o senhor. Qual é a média de vida neste país? Com oitenta e um, acho que já entrei no vermelho...

            — Não diga isso, minha senhora! A senhora, pelo aspecto, vai longe... Bem, não vejo nada de ilegal nessa proposta, mas há algo de mórbido nela, não acha? Vão pensar que estarei torcendo para que a senhora faleça logo. Por que não contratamos uma venda pura e simples? Aumento um pouquinho o preço pedido pela senhora e a senhora e pode ficar seis meses sem pagar aluguel, mas depois tem que sair. Algo mais simples, direto.

            — Bem, se o senhor quiser assim, tudo bem. Mas nesse caso vou vender o apartamento por um preço muito mais alto.

            — Mas eu não tenho tanto dinheiro!

            — Então aceite a minha proposta! Quanto tempo o senhor acha que ainda vou viver?

            Ele sorriu, procurando ser simpático, desinteressado, enquanto fazia intensos cálculos mentais. Pensou na hemodiálise, nos remédios sobre a mesa, no chocolate e respondeu à pergunta da vendedora: — Para dizer a verdade, não obstante conheça a senhora há poucos minutos, quero que viva muitos e muitos anos... Que chegue aos cento e dez!... Acontece que isso pode realmente acontecer, não é mesmo? E eu teria que esperar todos esses anos para poder ocupar ou vender imóvel.

            — Olha, é só examinar esse monte de remédio pra ver que não aguento muito... O senhor está comprando para morar ou como investimento?

            — Para morar — mentiu. — Vivo em uma casa até confortável, mas a insegurança hoje é demais.

            — Isso é verdade. O senhor mora sozinho?

            — Somos só eu e minha mulher. Não tivemos filhos.

            — Um pouco solitário, isso... Algo triste... Mas certamente tem pais vivos, ou irmãos...

            — Meus pais já faleceram. Sou filho único. Os pais de minha mulher também já morreram. Ela tinha uma irmã, que faleceu solteira. Realmente, não vamos deixar semente. Por que pergunta?

            — Porque ter família grande dá uma sensação de apoio... Olha... Sabe de uma coisa? Simpatizei com o senhor... Para provar isso, vou abaixar o preço para oitenta e cinco mil dólares. Sobre o valor real do imóvel, informe-se com qualquer corretor. É uma pechincha! Eu espero uma resposta até amanhã no fim da tarde. Até lá, deixo em suspenso duas outras propostas. Quase fechei negócio com um casal, mas algo me segurou. Não eram simpáticos. Começaram a achar defeitos, coisinhas, no apartamento. O senhor não fez isso.

            Despediram-se e, uma hora mais tarde, ele, excitado, andava de um lado para outro na cozinha da casa dele. Conversava com a esposa, a qual, junto à pia, lavava a louça da véspera.

            Ela o escutava, pouco entusiasmada. Qual uma ratazana esperta, ela confiava muito mais no seu instinto do que em qualquer cálculo, por mais fundamentado que fosse. E geralmente acertava mais do que o marido, que por causa disso ficava uma fera. Ele não podia aceitar o triunfo da “mais elementar ignorância”, calcada apenas na desconfiança, contra suas tão amadas sutilezas, ricamente dedilhadas na maquininha de calcular.

            — Esquece! Guarda o dinheiro —, foi a conclusão dela, enxugando as mãos numa toalha. — É bom ter uma reserva.

            — Mas é uma pechincha! — ele mal se continha, eufórico. — O apartamento vale, no mínimo, o dobro! E ela foi com minha cara. No duro! Acabou tirando mais cinco mil dólares no preço.

            — E se a velha não empacota?

            — Você e sua eterna desconfiança... Nunca vi mulher mais terra-a-terra, sem visão comercial!... Escuta: é uma velha de oitenta e um! E com um monte de doenças!

            — Magra ou gorda?

            — Um palito.

            — Sei não... Essas magrinhas têm uma fibra...

            — Não há fibra que resista a maus rins, diabetes, coração, pressão alta... Você sabe que burro eu não sou. Vi os rótulos dos remédios dela. Estavam numa mesinha. Uma UTI domiciliar! Como você sabe, já trabalhei como propagandista de laboratório. Estou por dentro. Li dezenas e dezenas de bulas.  Ninguém resiste muito tempo a essa trindade mortal: diabetes, rins estragados e problemas de pressão. Está quase fazendo hemodiálise.

            — Se ela obedecer direitinho ao regime de diabético, pode viver muitos anos.

            — Acontece que a velha não tem autodisciplina alguma. Já me disse que vai comer sal à vontade. E não resiste a um docinho. Pode crer: ela não aguenta mais de dois anos, se tanto.

            — Será que ela não está fingindo? — ela sorriu, parecendo reconhecer que exagerava nas suspeitas.

            — Pensei nisso. Mas se quisesse fingir, simularia estar cansada, se arrastando. No entanto, parecia uma passarinho dançando o Tico-Tico no Fubá. Ela pode ser uma lutadora, mas com sua idade e suas doenças, não aguenta muito. Vai por mim.

            — Bem, você é quem decide... Se ela morrer, mesmo daqui a três ou quatro anos, terá sido um ótimo investimento. Teremos dobrado capital. E pode também esticar as canelas logo, logo.

            A venda foi formalizada trinta dias depois porque o comprador exigiu inúmeras certidões da vendedora. Na última hora, esta conseguiu que ficasse a cargo do comprador o pagamento das despesas de condomínio. Assinada a escritura, as partes contratantes se despediram, alegres, com tapinhas nas costas. A mulher do comprador não compareceu ao cartório porque estava com o pé engessado. E sua presença não era essencial. Quando dona Philomena e o comprador já estavam distantes, quase na rua, o escrevente comentou com um colega: — Esse malandro vai aprontar alguma macumba contra a pobre velha!

            Depois disso, de três em três meses, mais ou menos, o comprador fazia uma visita “de cordialidade” à dona Philomena. Nessas ocasiões, estudava zelosamente o rosto e a postura geral da velha. Isso, sem prejuízo de se informar de sua saúde junto ao porteiro e ao zelador.

            Aos conhecidos, que sabiam do estranho negócio, o comprador se dizia sinceramente satisfeito por saber que a velha estava “firmona”. Se bem que, no íntimo, ela lhe parecesse um tanto sadia demais.

            Quando ele chegava em casa, depois dessas visitas, comentava com a mulher: — Sabe? Não há dúvida que sou um sujeito muito humano...Não estou nem um pouco aborrecido, claro, por saber que dona Philomena está vivinha da silva. E que simpatia de pessoa!

            Decorridos, porém, mais de dois anos, o entusiasmo dele começou a diminuir substancialmente. Principalmente porque havia uma forte recessão econômica e os negócios iam pessimamente. Os dólares empregados na aquisição daquele apartamento desnecessário faziam agora imensa falta. E cada vez que chegava pelo correio o boleto para pagamento do condomínio, o comprador sentia um azedume na alma. Por que, idiota, concordara com esse encargo?

            E assim se passaram os anos. Seis anos depois da compra, ele, meio desesperado, chegou a consultar um advogado quanto à possibilidade de anular o negócio. Mas foi desaconselhado: — Pouca chance, meu velho! Você teria de alegar que foi vítima de uma fraude. E isso você não tem como provar. Ou será dificílimo! A velha não tinha obrigação de morrer logo. O juiz do caso pode até dizer, na sentença, se for irônico, que você quis “tirar a lã e saiu tosquiado”. Ou que o “tiro saiu pela culatra”. Você entrou num jogo e as cartas saíram ruins, só isso. E perdendo a ação, ainda terá que pagar honorários advocatícios. Uma ação dessa demora. Antes dela terminar, a tal da dona Philomena já estará comendo grama pela raiz...Aguenta as pontas. Afinal, pelo que você disse, ainda está lucrando. Foi uma pechincha...

            E ele aguentou as pontas por mais quatro anos. Dez anos pagando bestamente o condomínio, era o que mais o irritava. A velha já estava com noventa e um, e não parecia ansiosa para esticar as canelas fininhas.

            Perto do Natal, o desanimado casal, que envelhecera proporcionalmente mais depressa que a velha, pensou em fazer-lhe uma visita, dita de “cortesia”, mas na realidade uma inspeção médica. Por pouco não levaram com eles, sem mencionar, claro, sua profissão, um clínico geral. Chegaram mesmo a pensar nisso, mas ficaram receosos do ridículo. O médico não só poderia se recusar a esse papel, como ainda comentar indiscretamente sobre o estranho pedido “daquele casal de urubus”.

            — Vamos lá, só nós dois — decidiu a mulher, olhando sombriamente o marido. — Quero ver por que essa múmia não morre.

            Foram recebidos com uma alegria de periquito:

            — Viva! Quanto prazer! Quem é vivo sempre aparece! Vamos entrar... Aceitam um chá?

            O casal engrolou uma explicação qualquer sobre a acidentalidade da visita e aceitou a bebida, sempre acompanhada dos biscoitinhos.

            Servindo o chá, dona Philomena perguntou:

            — Sabem da novidade? Estou completamente boa do diabetes! Aliás, já fazem uns oito anos, que estou boa. Os médicos dizem que era uma doença de fundo emocional. Preocupações, sabem? Eu tinha uns problemas financeiros, quando da venda, mas, resolvidos, tudo melhorou. Meu pâncreas agora é um relógio! Joguei fora aquela batelada de remédios que mantinha em cima dessa mesa. O senhor lembra? Resolvido o diabetes, melhorou a pressão. Os rins parecem filtros novos. Estou até sem jeito, de tanta saúde! — sorriu, envergonhada, trincando um biscoito.

            A compradora, com menos traquejo social que o marido, ouviu aquilo como se escutasse a notícia do descarrilamento de um trem cheio de crianças aleijadas. Apenas engoliu em seco.

             Ele, porém, por força do hábito, ainda disfarçou:

            — Sem jeito, por quê? Gostamos muito da senhora. Graças a Deus, não temos problemas financeiros. O imóvel está sendo bem cuidado pela senhora. Decidimos continuar morando na nossa casa. Assaltos, hoje, ocorrem em toda parte. Só queremos que nos explique o segredo de tanta saúde pra gente seguir a receita.

            — Paz de espírito, como disse! E moderação no comer... Ah! E um copinho de vinho tinto após o almoço antes da soneca. Afastados meus problemas econômicos, fiquei logo boa. — E ele notou, desanimado, que agora havia apenas um inofensivo vasodilatador sobre a mesinha.

            A conversa não se prolongou por muito tempo. Os visitantes estavam visivelmente sem ânimo para suportar tanta desgraça. A velha continuava quase com a mesma energia de dez anos antes e perfeitamente lúcida.

            De volta ao carro, foi a esposa que primeiro desabafou:

            — Admito que sou má! Sou mesmo, não me envergonho! Tanta gente morre! Por que só ela não? Será que essa periquita colorida não nos passou uma rasteira? Nunca soube que alguém, na idade dela, ficasse curada do diabetes. “Fundo emocional” suspeito, esse. A periquita envelheceu menos que a gente. Está só mais enrugada. Sabe o que estou pensando? Não é nada impossível que a gente morra antes... Você come demais, de tanta frustração... Olha, desculpe a franqueza, mas vou dizer uma coisa: Você pode entender de Finanças, maquininhas, triquetraque, mas em Biologia é nota zero!

            — Não se esqueça que você concordou.

            — Espera... — ela teve uma ideia — Por que não vendemos o apartamento com ela dentro? Damos uma compensação, um bom desconto ao adquirente. Nós já estamos com mais de sessenta anos, cansados de esperar pela morte dela. O novo comprador, porém, não terá que esperar muito, suponho. É melhor a gente perder um pouco do que não lucrar nada. Que tal a ideia?

            O marido se encolheu. Até aquele momento, não tivera coragem de contar que a velha concordara em reduzir o preço para oitenta mil dólares — quase tudo o que ele tinha em verdinhas, na época — mas exigira, em contrapartida, que constasse da escritura que, enquanto ela vivesse, o apartamento não poderia ser vendido a terceiro, mesmo com a cláusula deste último respeitar a permanência dela no imóvel. Argumentara que um outro proprietário poderia pressioná-la para que saísse do apartamento, aproveitando-se da sua idade e fragilidade. Um outro dono poderia não ser tão cavalheiro, explicara. E ele concordara porque desembolsaria menos cinco mil dólares e não esperava jamais ter de aguardar tanto tempo por sua morte.

            A esposa se resignou com mais este golpe: — É, a velha bem que merece a presidência do FMI. Sinto-me de quatro, dando coices no ar... Bom, não adianta ficar me lamuriando... Vamos logo para casa. Estou meio tonta.

            Em casa, ambos chuparam um comprimido branco contra azia. Ele disse que ia tomar banho.

            Banho demorado demais, pelo visto. Passados uns quarenta minutos, o chuveiro sempre ligado, a mulher, preocupada, abriu a porta do banheiro. O marido estava morto, meio dobrado dentro do box, a boca aberta e os olhos semicerrados. Segundo informação do médico que redigiu o atestado de óbito, o enfarto foi do tipo fulminante.

            O velório esteve quase vazio. Vinte pessoas, incluindo o próprio defunto. Ele não tinha parentes, nem verdadeiros amigos. Os negócios iam mal.

            Dona Philomena soube da morte e logo apareceu para dar os pêsames, aceitos de cara feia. E quando se ofereceu para “puxar” o terço, foi obstada, com grosseria, pela viúva:

            — A senhora não se atreva! Prefiro que dê o fora!

            Os presentes ficaram horrorizados com tanta grosseria, mas não disseram nada. Atribuíram tal excesso à perturbação causada pela dor. E dona Philomena saiu de mansinho, com uma auréola de santinha incompreendida.

            Dez meses mais tarde, a velha — agora subitamente mais lenta, pois dera para fazer algumas extravagâncias alimentares, comendo até feijoada — mandou perguntar à viúva, através de um corretor, se não queria receber a posse imediata do apartamento, mediante uma compensação financeira. Essa compensação seria no valor de vinte e cinco mil dólares. Achava que não tinha mais condições de viver sozinha. Pretendia morar com uma sobrinha casada.

            A proposta não chegou a ser transmitida à viúva. Ela estava em coma, há dois dias, vítima de uma inflamação algo misteriosa. Uma sua amiga, que sabia do caso, rotulou essa moléstia de “philomenite”. Passados uns vinte dias, faleceu.

            A velha pareceu desolada, ouvindo a notícia dessa segunda morte. Mas, no dia seguinte, no início da noite, estava no apartamento de baixo, consultando a advogada se, não tendo os compradores “herdeiros necessários”, não poderia ela, Philomena, requerer o usucapião do imóvel? Afinal, estava lá há tantos anos...

            A advogada, algo surpreendida com tanto oportunismo, achava que não, mas tinha dúvida. Se o casal falecido não tinha herdeiros, nem deixara testamento, por que não deixar o imóvel para a amiga, em vez de para o Estado? Ficou de estudar o caso e dar uma resposta dentro de alguns dias.

 

FIM (26/01/2022

 

 

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