Foto divulgação
Era um senhor muito interessado em finanças. Via nelas uma certa sofisticação intelectual. Mais isso, talvez, do que a pura e simples cobiça, pois, vez por outra, sofria esquisitos ataques de liberalidade. Se bem que jamais escondendo tais impulsos. Por que ocultar — justificava-se —, algo tão nobre e contagioso: o bem que fazemos aos nossos irmãos? Fazendo uma “honesta” autoavaliação — mais tortuosa que um saca-rolhas —, não lhe seria difícil argumentar, confundindo detratores, que, se era esperto, também ajudava pessoas quando podia. E citaria exemplos. Insistia em definir-se como um homem de arguta visão comercial, capaz de extrair de todas as situações um específico proveito econômico.
É claro que, neste mundo cruel, sempre
existe uma alma invejosa pensando, a nosso respeito, coisas más. Um outro
senhor, com quem mantivera pequena sociedade — dissolvida quase a tiros —
dizia, abertamente, sem escolher audiência, que “se houvesse, na Europa, uma
máquina capaz de extrair o mau cheiro de um fedorento resíduo humano, ele” — o
nosso biografado — “importaria essa máquina para tirar o fedor, comendo depois
seu próprio resíduo, economizando o gasto com a própria alimentação”.
Esse
ex-sócio, escritor frustrado, era um tanto maníaco por metáforas, como é fácil
perceber. Gostava de se expressar com rodeios, o que irritava nosso financista,
adepto da fria objetividade. Pelo menos entre sócios. Com os fregueses e
fornecedores — era sua opinião —, tudo bem com as voltinhas, reticências e
mal-entendidos propositais porque “guerra é guerra”! Esclareça-se, porém, que a
briga com o sócio foi mesmo por dinheiro, não por questões de estilo.
Admitia que “não gostava de perder
dinheiro”, ocasião em que seus empregados comentavam, à boca pequena: — “Mas
não precisa exagerar...”. E ficava doente quando lucrava menos que seus
concorrentes. Enganado, então, mesmo em centavos, sentia vontade de agredir,
morder; impulsos só contidos porque um processo criminal implicaria gastos com
advogado.
Aos domingos, bem cedo — antes que
algum outro, seu igual, corresse na frente — gastava uma ou duas horas lendo,
nos jornais, anúncios de vendas, na esperança de localizar uma pechincha. Se
encontrasse alguém “com a corda no pescoço” por que não aplicar as normas do
capitalismo? Se não o fizesse, algum outro o faria, não é verdade?
Tendo acumulado, em “verdinhas”
americanas, uma boa reserva de dólares, guardada em casa num pequeno cofre
metálico, disponível precisamente para negócios urgentes, percorria, naquela manhã,
os classificados. E seus olhos brilharam ao se depararem com um pequeno
anúncio: uma senhora “de oitenta e um anos” — a menção da idade era estimulante
— vendia “bem barato” seu apartamento de quatro quartos, com duas vagas na
garagem em excelente bairro. Pedia noventa mil dólares, mencionava a grande
área útil, endereço e horário para visitas.
“Caramba! Se o apartamento estiver
em bom estado” — logo pensou —, “e não houver problemas de vizinhança, é uma
pechincha! Não haverá alguma cilada? Está bom demais! Um apartamento com essa
área, em bairro tão bom, deveria valer no mínimo o dobro, ou triplo”!
Como o anúncio não mencionava
telefone, o arguto financista acabou de engolir às pressas o café, pegou o
carro e rumou para o endereço, já pensando em como ser simpático com velhinhas.
Sabia que pessoas idosas frequentemente perdem o senso de proporção em negócios
imobiliários. O cérebro delas — era sua opinião, não a minha, prezada e
inteligente leitora — não acompanhava as mutações do mercado. Às vezes exageravam,
pedindo preços altíssimos, irreais. Outras vezes, quando não tinham parentes
mais moços que as orientassem, pediam muito menos do que valia a coisa. Quem
sabe, no caso, a velha vivia sozinha e não tinha aqueles mesquinhos parentes, espertos,
mesquinho, justamente porque interessados na herança. Era sua convicção, por experiência
pessoal, que o interesse financeiro multiplica a força dos neurônios.
Localizado o prédio, o financista
não se dirigiu de imediato à portaria. Não, um grande general nunca se
precipita em qualquer refrega. Sem descer do carro, percorreu lentamente a
redondeza. Deu uma volta completa no quarteirão, examinando tudo com olhos de
lince. Um satélite artificial da mais alta tecnologia, na Guerra do Golfo, não
esquadrinharia com tanta exatidão uma determinada área terrestre.
Tudo bem. Nenhuma casa de comércio.
Apenas uma banca de jornal, limpa e organizada, instalada quase em frente.
Por via das dúvidas, seria bom
sondar o ambiente. Desceu do carro e dirigiu-se à banca. Comprou um jornal
qualquer, só para ter a oportunidade de bater um ligeiro papo investigatório
com aquele senhor que, pela roupa, parecia ser o dono da banca. E este
confirmou a tranquilidade local. A criminalidade ali era muito baixa.
Não satisfeito, espiou as paredes
laterais do prédio, à procura de manchas de infiltrações ou rachaduras,
perceptíveis mesmo com eventuais disfarces de pinturas. Nada viu de suspeito.
Terminada a arguta inspeção, no item
engenharia, dirigiu-se à portaria do edifício, explicando a razão de sua
presença. E, em tom casual, indagou se ali havia problemas de condomínio; isto
é, se o pessoal pagava direitinho, se existiam conflitos. O porteiro, com a
naturalidade de quem diz a verdade, informou que os condôminos eram muito
pontuais. — “A maioria, aqui, é gente velha, acomodada”, explicou.
O apartamento localizava-se no
sétimo andar, de frente para a rua. O elevador, bem conservado, subiu sem muito
ruído e, quando ele saiu do elevador, a autora do anúncio, avisada pelo
interfone, já o aguardava, sorrindo, convidando-o para uma xícara de chá.
A velha chamava-se Dona Philomena.
Era viúva, morava sozinha e parecia uma personagem extraída daquelas inocentes
novelas inglesas do início do século 20. Magrinha, pele clara, enrugada, olhos
azuis e um jeitinho de olhar que lembrava um passarinho assustado. Usava um
vestido leve, simples, que parecia feito em casa, cheio de desenhos florais.
Ela e a roupa formavam um conjunto bonitinho, adequado para um camafeu ou lata
de biscoitos finos importados da Dinamarca. Enquanto ela servia o chá em
xícaras antigas, delicadas, o visitante sentiu-se como que transportado para
uma Inglaterra de antes da Primeira Guerra Mundial.
Nosso financista vistoriou o imóvel
e nada encontrou de suspeito. Realmente era um “negocião”. Considerando-se um
grande psicólogo, concluiu que, não obstante o jeitinho saltitante, a velha era
bem tolinha. — “Esse tico-tico tem apenas a vivacidade física. O cérebro é
mesmo de passarinho”.
Todavia, não queria correr o risco
de comprar o imóvel de uma velha gagá, com a possibilidade, depois, de
enfrentar uma ação judicial visando à anulação do negócio. Era preciso
verificar melhor seu grau de discernimento. Faria isso com sua indiscutível
habilidade:
— O chá está excelente, dona
Philomena — agradeceu, devolvendo a xícara à mesinha baixa, cheia de vidrinhos,
caixinhas de remédio e chocolates. Sem tocar nos remédios, pôde ler os rótulos
com máxima atenção, isso porque entendia um pouco do ramo. E, no chão, perto da
poltrona onde estava a dona da casa, havia empilhados três ou quatro livros de
Direito Civil, dois deles com o título “Direito das Sucessões”.
— A senhora é advogada?
— Por que pergunta? — ela indagou,
sorrindo, algo envaidecida.
— Porque estou vendo esses livros de
Direito aí no chão.
— Ah! Mera curiosidade! São de uma
amiga, advogada, do apartamento de baixo. Sou muito curiosa... Mas, para dizer
a verdade, não consegui entender muito. Como esses juristas escrevem difícil!
— Sabe de uma coisa? — ele
perguntou, sorrindo, dando ao rosto o máximo de inocência e simpatia. — Olhando
para a senhora, nesta sala, servindo chá com bolachinhas, parece que estou
visitando a Agatha Christie, aquela novelista inglesa. Nunca vi uma foto dela,
mas suponho que as duas são muito parecidas. É impossível alguém ser mais
“lady” do que a senhora...
— Ah! Que chique! — gorjeou a velha,
dando um gritinho e batendo as mãos, enquanto se inclinava para trás, quase se
deitando de costas. Postura exagerada que logo corrigiu, voltando o tronco à
posição vertical. — Já li um livro dela... melhor, quase li, mas gostei demais de
um pedacinho. Hoje leio pouco, a vista não dá... E tudo parece muito longo,
complicado. Os escritores ficam dando voltas...Prefiro os jornais ou até mesmo
um livro, mas com letras grandes. Só que de Direito ou de Economia não adianta!
É nó mental... Minha cabeça esquenta e acabo desistindo. E tem ainda o problema
da vista, como disse. Um início de catarata nesta vista — e pôs o dedo embaixo
do olho direito. — Quando operar, se operar!, voltarei a ler jornais. Exceto a
seção de Economia porque tenho verdadeiro horror, horror! a questões de
dinheiro!
— Caramba! Somos iguaizinhos nesse
ponto! Se há um tema que detesto, é dinheiro! Acho que se houvesse um jeito de
a humanidade se livrar dessa praga, viveríamos felizes e bem mais sadios.
— É exatamente o que penso! — ela assentiu,
com expressão preocupada. — Preciso cuidar da minha saúde. Estou com oitenta e
um. Apesar deste meu jeito vivo, enérgico, sou diabética, sofro dos rins e do
coração. Quando começo a sentir uma opressão no peito, no coração, tomo logo
uma aspirina e isso alivia. Estou rezando para não precisar fazer hemodiálise.
A trabalheira que isso vai causar! Meu neurologista me deu, sobre o conjunto de
minhas doenças, uma explicação tão complicada, que pouco entendi. Toda vez que
eu tentava resumir o que ele explicava, só para poder entender, ele corrigia
dizendo “que não era bem assim”, ou “a não ser que...”. Acabei desistindo porque
fiquei com medo da resposta... Sou fatalista... O que tiver de ser, será! E não
vou comer sem sal, como ele quer! Gosto do salgado bem salgado e do doce bem
doce. Depois da janta como meu chocolate, não aceito viver como uma
condenada... Bom, deixa pra lá... Não vou aborrecer o senhor com lamúrias de
velha doente.
— Protesto! A senhora não é uma
velha. Está muito forte. Vai chegar aos cem anos! Mas, passando ao motivo de
minha visita, quero dizer que li hoje, por acaso, o seu anúncio e estou mais ou
menos interessado no apartamento. O preço não está excessivo mas...
— Excessivo?! — a velha o
interrompeu, quase ofendida. — O preço está ótimo! Este apartamento vale o
dobro!
Por essa, ele não esperava. A velha
não era tão tola. Fingindo surpresa, justificou-se:
— Desculpe, não quis ofender. É que
não estou familiarizado com preços de imóveis. Mas, se vale o dobro — o que não
sei, realmente — por que está pedindo só a metade, segundo diz?
— Porque gostaria de continuar morando
aqui até morrer. Apesar de muito grande para uma pessoa só, tenho um apego
sentimental a este apartamento. Acontece, porém, que preciso muito de dinheiro.
Minha aposentadoria é uma merreca. Se for necessário fazer hemodiálise, onde
vou arranjar recursos? Ou operar o
coração? Ou um transplante de rim? A
proposta que faço ao comprador do imóvel é a seguinte: eu vendo ao senhor por
noventa mil dólares, mas fica constando na escritura que tenho o direito de
continuar morando aqui até morrer, sem pagar aluguel. Minha vizinha advogada,
essa que me emprestou os livros, disse que não há lei alguma proibindo essa
cláusula. Há até um nome para isso no Código Civil, mas esqueci. E acho que
essa fórmula é um bom negócio para o senhor. Qual é a média de vida neste país?
Com oitenta e um, acho que já entrei no vermelho...
— Não diga isso, minha senhora! A
senhora, pelo aspecto, vai longe... Bem, não vejo nada de ilegal nessa
proposta, mas há algo de mórbido nela, não acha? Vão pensar que estarei
torcendo para que a senhora faleça logo. Por que não contratamos uma venda pura
e simples? Aumento um pouquinho o preço pedido pela senhora e a senhora e pode
ficar seis meses sem pagar aluguel, mas depois tem que sair. Algo mais simples,
direto.
— Bem, se o senhor quiser assim,
tudo bem. Mas nesse caso vou vender o apartamento por um preço muito mais alto.
— Mas eu não tenho tanto dinheiro!
— Então aceite a minha proposta!
Quanto tempo o senhor acha que ainda vou viver?
Ele sorriu, procurando ser
simpático, desinteressado, enquanto fazia intensos cálculos mentais. Pensou na
hemodiálise, nos remédios sobre a mesa, no chocolate e respondeu à pergunta da
vendedora: — Para dizer a verdade, não obstante conheça a senhora há poucos
minutos, quero que viva muitos e muitos anos... Que chegue aos cento e dez!...
Acontece que isso pode realmente acontecer, não é mesmo? E eu teria que esperar
todos esses anos para poder ocupar ou vender imóvel.
— Olha, é só examinar esse monte de
remédio pra ver que não aguento muito... O senhor está comprando para morar ou
como investimento?
— Para morar — mentiu. — Vivo em uma
casa até confortável, mas a insegurança hoje é demais.
— Isso é verdade. O senhor mora
sozinho?
— Somos só eu e minha mulher. Não
tivemos filhos.
— Um pouco solitário, isso... Algo
triste... Mas certamente tem pais vivos, ou irmãos...
— Meus pais já faleceram. Sou filho
único. Os pais de minha mulher também já morreram. Ela tinha uma irmã, que
faleceu solteira. Realmente, não vamos deixar semente. Por que pergunta?
— Porque ter família grande dá uma
sensação de apoio... Olha... Sabe de uma coisa? Simpatizei com o senhor... Para
provar isso, vou abaixar o preço para oitenta e cinco mil dólares. Sobre o
valor real do imóvel, informe-se com qualquer corretor. É uma pechincha! Eu
espero uma resposta até amanhã no fim da tarde. Até lá, deixo em suspenso duas
outras propostas. Quase fechei negócio com um casal, mas algo me segurou. Não
eram simpáticos. Começaram a achar defeitos, coisinhas, no apartamento. O
senhor não fez isso.
Despediram-se e, uma hora mais
tarde, ele, excitado, andava de um lado para outro na cozinha da casa dele.
Conversava com a esposa, a qual, junto à pia, lavava a louça da véspera.
Ela o escutava, pouco entusiasmada.
Qual uma ratazana esperta, ela confiava muito mais no seu instinto do que em
qualquer cálculo, por mais fundamentado que fosse. E geralmente acertava mais
do que o marido, que por causa disso ficava uma fera. Ele não podia aceitar o
triunfo da “mais elementar ignorância”, calcada apenas na desconfiança, contra
suas tão amadas sutilezas, ricamente dedilhadas na maquininha de calcular.
— Esquece! Guarda o dinheiro —, foi
a conclusão dela, enxugando as mãos numa toalha. — É bom ter uma reserva.
— Mas é uma pechincha! — ele mal se
continha, eufórico. — O apartamento vale, no mínimo, o dobro! E ela foi com
minha cara. No duro! Acabou tirando mais cinco mil dólares no preço.
— E se a velha não empacota?
— Você e sua eterna desconfiança...
Nunca vi mulher mais terra-a-terra, sem visão comercial!... Escuta: é uma velha
de oitenta e um! E com um monte de doenças!
— Magra ou gorda?
— Um palito.
— Sei não... Essas magrinhas têm uma
fibra...
— Não há fibra que resista a maus
rins, diabetes, coração, pressão alta... Você sabe que burro eu não sou. Vi os
rótulos dos remédios dela. Estavam numa mesinha. Uma UTI domiciliar! Como você
sabe, já trabalhei como propagandista de laboratório. Estou por dentro. Li
dezenas e dezenas de bulas. Ninguém
resiste muito tempo a essa trindade mortal: diabetes, rins estragados e
problemas de pressão. Está quase fazendo hemodiálise.
— Se ela obedecer direitinho ao
regime de diabético, pode viver muitos anos.
— Acontece que a velha não tem
autodisciplina alguma. Já me disse que vai comer sal à vontade. E não resiste a
um docinho. Pode crer: ela não aguenta mais de dois anos, se tanto.
— Será que ela não está fingindo? —
ela sorriu, parecendo reconhecer que exagerava nas suspeitas.
— Pensei nisso. Mas se quisesse
fingir, simularia estar cansada, se arrastando. No entanto, parecia uma
passarinho dançando o Tico-Tico no Fubá. Ela pode ser uma lutadora, mas
com sua idade e suas doenças, não aguenta muito. Vai por mim.
— Bem, você é quem decide... Se ela
morrer, mesmo daqui a três ou quatro anos, terá sido um ótimo investimento.
Teremos dobrado capital. E pode também esticar as canelas logo, logo.
A venda foi formalizada trinta dias
depois porque o comprador exigiu inúmeras certidões da vendedora. Na última
hora, esta conseguiu que ficasse a cargo do comprador o pagamento das despesas
de condomínio. Assinada a escritura, as partes contratantes se despediram,
alegres, com tapinhas nas costas. A mulher do comprador não compareceu ao
cartório porque estava com o pé engessado. E sua presença não era essencial.
Quando dona Philomena e o comprador já estavam distantes, quase na rua, o
escrevente comentou com um colega: — Esse malandro vai aprontar alguma macumba
contra a pobre velha!
Depois disso, de três em três meses,
mais ou menos, o comprador fazia uma visita “de cordialidade” à dona Philomena.
Nessas ocasiões, estudava zelosamente o rosto e a postura geral da velha. Isso,
sem prejuízo de se informar de sua saúde junto ao porteiro e ao zelador.
Aos conhecidos, que sabiam do estranho
negócio, o comprador se dizia sinceramente satisfeito por saber que a velha
estava “firmona”. Se bem que, no íntimo, ela lhe parecesse um tanto sadia
demais.
Quando ele chegava em casa, depois
dessas visitas, comentava com a mulher: — Sabe? Não há dúvida que sou um
sujeito muito humano...Não estou nem um pouco aborrecido, claro, por saber que
dona Philomena está vivinha da silva. E que simpatia de pessoa!
Decorridos, porém, mais de dois
anos, o entusiasmo dele começou a diminuir substancialmente. Principalmente
porque havia uma forte recessão econômica e os negócios iam pessimamente. Os
dólares empregados na aquisição daquele apartamento desnecessário faziam agora
imensa falta. E cada vez que chegava pelo correio o boleto para pagamento do
condomínio, o comprador sentia um azedume na alma. Por que, idiota, concordara
com esse encargo?
E assim se passaram os anos. Seis
anos depois da compra, ele, meio desesperado, chegou a consultar um advogado
quanto à possibilidade de anular o negócio. Mas foi desaconselhado: — Pouca
chance, meu velho! Você teria de alegar que foi vítima de uma fraude. E isso
você não tem como provar. Ou será dificílimo! A velha não tinha obrigação de
morrer logo. O juiz do caso pode até dizer, na sentença, se for irônico, que
você quis “tirar a lã e saiu tosquiado”. Ou que o “tiro saiu pela culatra”.
Você entrou num jogo e as cartas saíram ruins, só isso. E perdendo a ação,
ainda terá que pagar honorários advocatícios. Uma ação dessa demora. Antes dela
terminar, a tal da dona Philomena já estará comendo grama pela raiz...Aguenta
as pontas. Afinal, pelo que você disse, ainda está lucrando. Foi uma
pechincha...
E ele aguentou as pontas por mais
quatro anos. Dez anos pagando bestamente o condomínio, era o que mais o
irritava. A velha já estava com noventa e um, e não parecia ansiosa para
esticar as canelas fininhas.
Perto do Natal, o desanimado casal,
que envelhecera proporcionalmente mais depressa que a velha, pensou em
fazer-lhe uma visita, dita de “cortesia”, mas na realidade uma inspeção médica.
Por pouco não levaram com eles, sem mencionar, claro, sua profissão, um clínico
geral. Chegaram mesmo a pensar nisso, mas ficaram receosos do ridículo. O
médico não só poderia se recusar a esse papel, como ainda comentar
indiscretamente sobre o estranho pedido “daquele casal de urubus”.
— Vamos lá, só nós dois — decidiu a
mulher, olhando sombriamente o marido. — Quero ver por que essa múmia não
morre.
Foram recebidos com uma alegria de
periquito:
— Viva! Quanto prazer! Quem é vivo
sempre aparece! Vamos entrar... Aceitam um chá?
O casal engrolou uma explicação
qualquer sobre a acidentalidade da visita e aceitou a bebida, sempre
acompanhada dos biscoitinhos.
Servindo o chá, dona Philomena
perguntou:
— Sabem da novidade? Estou
completamente boa do diabetes! Aliás, já fazem uns oito anos, que estou boa. Os
médicos dizem que era uma doença de fundo emocional. Preocupações, sabem? Eu
tinha uns problemas financeiros, quando da venda, mas, resolvidos, tudo
melhorou. Meu pâncreas agora é um relógio! Joguei fora aquela batelada de
remédios que mantinha em cima dessa mesa. O senhor lembra? Resolvido o
diabetes, melhorou a pressão. Os rins parecem filtros novos. Estou até sem
jeito, de tanta saúde! — sorriu, envergonhada, trincando um biscoito.
A compradora, com menos traquejo
social que o marido, ouviu aquilo como se escutasse a notícia do
descarrilamento de um trem cheio de crianças aleijadas. Apenas engoliu em seco.
Ele, porém, por força do hábito, ainda
disfarçou:
— Sem jeito, por quê? Gostamos muito
da senhora. Graças a Deus, não temos problemas financeiros. O imóvel está sendo
bem cuidado pela senhora. Decidimos continuar morando na nossa casa. Assaltos,
hoje, ocorrem em toda parte. Só queremos que nos explique o segredo de tanta
saúde pra gente seguir a receita.
— Paz de espírito, como disse! E
moderação no comer... Ah! E um copinho de vinho tinto após o almoço antes da
soneca. Afastados meus problemas econômicos, fiquei logo boa. — E ele notou,
desanimado, que agora havia apenas um inofensivo vasodilatador sobre a mesinha.
A conversa não se prolongou por
muito tempo. Os visitantes estavam visivelmente sem ânimo para suportar tanta
desgraça. A velha continuava quase com a mesma energia de dez anos antes e
perfeitamente lúcida.
De volta ao carro, foi a esposa que
primeiro desabafou:
— Admito que sou má! Sou mesmo, não
me envergonho! Tanta gente morre! Por que só ela não? Será que essa periquita
colorida não nos passou uma rasteira? Nunca soube que alguém, na idade dela,
ficasse curada do diabetes. “Fundo emocional” suspeito, esse. A periquita
envelheceu menos que a gente. Está só mais enrugada. Sabe o que estou pensando?
Não é nada impossível que a gente morra antes... Você come demais, de tanta
frustração... Olha, desculpe a franqueza, mas vou dizer uma coisa: Você pode
entender de Finanças, maquininhas, triquetraque, mas em Biologia é nota zero!
— Não se esqueça que você concordou.
— Espera... — ela teve uma ideia —
Por que não vendemos o apartamento com ela dentro? Damos uma compensação, um
bom desconto ao adquirente. Nós já estamos com mais de sessenta anos, cansados
de esperar pela morte dela. O novo comprador, porém, não terá que esperar
muito, suponho. É melhor a gente perder um pouco do que não lucrar nada. Que
tal a ideia?
O marido se encolheu. Até aquele
momento, não tivera coragem de contar que a velha concordara em reduzir o preço
para oitenta mil dólares — quase tudo o que ele tinha em verdinhas, na época —
mas exigira, em contrapartida, que constasse da escritura que, enquanto ela
vivesse, o apartamento não poderia ser vendido a terceiro, mesmo com a cláusula
deste último respeitar a permanência dela no imóvel. Argumentara que um outro
proprietário poderia pressioná-la para que saísse do apartamento,
aproveitando-se da sua idade e fragilidade. Um outro dono poderia não ser tão
cavalheiro, explicara. E ele concordara porque desembolsaria menos cinco mil
dólares e não esperava jamais ter de aguardar tanto tempo por sua morte.
A esposa se resignou com mais este
golpe: — É, a velha bem que merece a presidência do FMI. Sinto-me de quatro,
dando coices no ar... Bom, não adianta ficar me lamuriando... Vamos logo para
casa. Estou meio tonta.
Em casa, ambos chuparam um
comprimido branco contra azia. Ele disse que ia tomar banho.
Banho demorado demais, pelo visto.
Passados uns quarenta minutos, o chuveiro sempre ligado, a mulher, preocupada,
abriu a porta do banheiro. O marido estava morto, meio dobrado dentro do box, a
boca aberta e os olhos semicerrados. Segundo informação do médico que redigiu o
atestado de óbito, o enfarto foi do tipo fulminante.
O velório esteve quase vazio. Vinte
pessoas, incluindo o próprio defunto. Ele não tinha parentes, nem verdadeiros
amigos. Os negócios iam mal.
Dona Philomena soube da morte e logo
apareceu para dar os pêsames, aceitos de cara feia. E quando se ofereceu para
“puxar” o terço, foi obstada, com grosseria, pela viúva:
— A senhora não se atreva! Prefiro
que dê o fora!
Os presentes ficaram horrorizados
com tanta grosseria, mas não disseram nada. Atribuíram tal excesso à
perturbação causada pela dor. E dona Philomena saiu de mansinho, com uma
auréola de santinha incompreendida.
Dez meses mais tarde, a velha —
agora subitamente mais lenta, pois dera para fazer algumas extravagâncias alimentares,
comendo até feijoada — mandou perguntar à viúva, através de um corretor, se não
queria receber a posse imediata do apartamento, mediante uma compensação
financeira. Essa compensação seria no valor de vinte e cinco mil dólares.
Achava que não tinha mais condições de viver sozinha. Pretendia morar com uma
sobrinha casada.
A proposta não chegou a ser
transmitida à viúva. Ela estava em coma, há dois dias, vítima de uma inflamação
algo misteriosa. Uma sua amiga, que sabia do caso, rotulou essa moléstia de
“philomenite”. Passados uns vinte dias, faleceu.
A velha pareceu desolada, ouvindo a
notícia dessa segunda morte. Mas, no dia seguinte, no início da noite, estava
no apartamento de baixo, consultando a advogada se, não tendo os compradores
“herdeiros necessários”, não poderia ela, Philomena, requerer o usucapião do
imóvel? Afinal, estava lá há tantos anos...
A advogada, algo surpreendida com
tanto oportunismo, achava que não, mas tinha dúvida. Se o casal falecido não
tinha herdeiros, nem deixara testamento, por que não deixar o imóvel para a
amiga, em vez de para o Estado? Ficou de estudar o caso e dar uma resposta
dentro de alguns dias.
FIM
(26/01/2022