Foto divulgação
Por volta das oito horas de uma manhã de sábado, um cidadão chamado Paulo acordou sentindo o aroma do café. Lavou o rosto, escovou os dentes e desceu à cozinha para sua primeira refeição do dia.
Quando dava a
primeira mordida na torrada, a campainha da casa tocou. Olhando pela janela
percebeu que quem tocava era o Rui, um jardineiro que comparece mensalmente
para cuidar do jardim.
Esse jardineiro é um ser humano bem original —
o leitor vai concordar com essa opinião se continuar lendo —, com idade entre quarenta
e cinco e cinquenta anos, altura mediana, ligeiramente acima do peso, calmo,
lacônico e uma autoridade informal, no bairro, no conhecimento prático das
flores. O que ele sabe não sabe através de leituras, é por contato direto,
pessoal. Trata-se de um jardineiro muito requisitado porque mostra-se muito
mais interessado nas suas “queridinhas” coloridas do que no dinheiro que ganha
com elas. Além disso é homem de palavra e incrivelmente persistente.
Convém logo
esclarecer que o fato do Rui amar as flores não significa que seja algo
afeminado. É hetero, sem a menor dúvida, embora respeitoso ao extremo.
O Rui faz o
serviço que lhe pedem sem pressionar o freguês — ou melhor, a mulher do freguês
—, porque os homens, “bichos insensíveis”, na opinião dele, quase sempre não se
interessam por esses delicados e coloridos produtos da natureza. Talvez por não
saberem que as flores, tão bonitinhas, ou bonitonas, nada mais são do que
órgãos bi-sexuais explícitos, sem pudor, que só pensam “naquilo”: propagar a
espécie. Algumas têm útero. Não podendo sair de casa, adornam-se com pétalas
coloridas, com isso despertando a atenção de insetos que, após nelas pousarem
levam com eles, nas pernas e corpo, o pólen que fecundará flores distantes. O
Rui sabe disso — mas sem nomes científicos —, e
as “perdoa” pelo “assanhamento” porque sabe que elas, não podendo voar
inteiras, precisam se reproduzir “pelo correio”. E sem reprodução, seu trabalho
de jardinagem ficaria prejudicado.
Prosseguindo, se a dona da casa quer plantar
isso ou aquilo o Rui não faz objeção, mesmo quando a freguesa revela mau gosto.
No máximo fica desapontado, porém disfarça.
Por ser
cordato, caprichoso e respeitoso — nunca diz um palavrão —, as donas de casa o admiram também porque não temem que ele
possa tomar “certas liberdades” sondando eventuais carências sexuais da dona da casa quando elas são brincalhonas e comunicativas
demais. Quanto ao preço cobrado para “florir” um jardim isso é tratado
diretamente com a esposa do jardineiro, mulher esperta, um tanto ríspida e de
tino comercial. Seu santo marido não gosta de discutir preços, orçamento e
formas de pagamento. É um artista nota 10 e comerciante nota 1.
Rui, como já
disse, não é um profissional comum da jardinagem. Com sua fisionomia distinta e discrição todos pensam que ele
poderia ser, socialmente, muito mais considerado. Parece mais um contador, ou
gerente. Exerce a profissão como se fosse uma espécie de ourives do mundo
vegetal. Sua mulher é de instrução superior à sua, mesmo porque a instrução
formal do jardineiro é quase nenhuma, em matéria impressa. O que ele sabe, sabe
bem, mas pouco, e apenas por via oral.
No primeiro
sábado de cada mês, o Rui aparece na casa do advogado, geralmente com um
ajudante, levando três ou quatro horas cuidando das flores como se elas fossem
preciosidades. Nesse sábado, está sozinho.
Para o leitor
entender melhor o que vai ler é necessário conhecer um pouco da inusitada
circunstância do nascimento desse silencioso profissional por ser ele a figura
central desta narrativa.
Rui teve um
começo de biografia invulgarmente original. Seu parto foi o mais demorado em
toda a crônica de partos do atrasado vilarejo em que viu a luz do dia. Sua mãe,
mulher alta e corpulenta, estava grávida de gêmeos, mas, acredite-se ou não,
desconhecia o fato. Médico naquelas paragens e tempo era raridade. Só o volume
da barriga é que forneceria algum indício de que o herdeiro viria ao mundo
acompanhado de um sócio do peito. Ocorre que o volume do ventre da mãe do Rui,
em proporção ao tamanho global da grávida, não era de chamar a atenção.
O nascimento dos gêmeos foi tumultuado.
Deu-se assim: em plena madrugada, sua mãe sentiu “as dores” — ou seriam cólicas
intestinais? Como a parteira local, uma curiosa, garantira que faltava ainda um
mês para o parto, a grávida deu como certo que era apenas vontade de “ir ao
banheiro”. E ela foi, sozinha, segurando uma vela, à “casinha” rudimentar,
escura e fedorenta, que ficava uns poucos metros distante da pequena habitação
em que habitava e estava concertando. Nessa noite o marido não estava em casa.
Segundo
relatos — sempre imprecisos e certamente com exageros —, a mãe do Rui fez força
pela via errada. Nisso, o primeiro bebê “mergulhou” entre as duas tábuas de
madeira paralelas que serviam de assento, ou melhor, de agachamento na privada
rudimentar. O ensanguentado e rosado fruto do amor caiu, de uma altura de meio
metro na fossa escura, cuja composição físico-química, e principalmente
aromática, o leitor bem pode imaginar.
Não entendo de
resistências e utilidades de cordões umbilicais, após o parto, mas, à míngua de
maiores informações, parece que a presença do dito cordão não foi compreendida pela parturiente de primeira viagem. O
fato concreto é que o sôfrego pimpolho mergulhou na sopa de excrementos em
plena noite tenebrosa. Isso porque, na confusão que se seguiu ao sensacional mergulho,
a vela se apagou, ficando a parturiente em desespero, aos gritos, desconhecendo
que um segundo rebento, o Rui — “Esqueceram-se de mim!” — aguardava, no útero,
a sua vez de ingressar naquele ambiente tão hostil.
Desesperada, a
parturiente quase se jogou dentro da fossa atrás do bebê, que pensava ser
único. Continuando a gritar, seu desespero acordou uma família que morava
próxima da “casinha” e logo acorreu para pescar aquilo que, pelo normal das
coisas, já seria um anjinho fedorento. Mas, para espanto geral, o bebê ainda
estava vivo, praticamente assoviando, boiando de costas na piscina marrom, sem
dar a mínima para o malcheiroso batismo. Pescado, não tinha um único arranhão.
Bastou, dizem, um banho caprichado para ficar em ordem. Felizmente — foi a
explicação dos “entendidos” locais —, flutuara de costas.
Mas o Rui, seu
irmão, não teve a mesma “sorte”. Ou, por causa do susto da mãe, ou porque
talvez todo parto duplo contem, em si, algum
risco, o fato comentado é que seu nascimento foi o mais longo e penoso na
história do povoado. Ele nasceu algumas noites depois — Rui não sabe direito —,
praticamente estrangulado, rostinho colorido entre o azul e o roxo; algo até
pitoresco, tecnicolor. Dizem que uma longa diminuição de oxigênio, durante o
parto, produz no bebê danos cerebrais
irreversíveis. De fato, o Rui deve ter perdido alguns bilhões de neurônios
nessas horas sufocantes que se seguiram ao salto ornamental do coleguinha de
origem.
Este mundo é
cheio de paradoxos. O irmão do Rui, que nasceu, com perdão da palavra, na merda
— mais literalmente seria impossível — teve uma vida limpa de dificuldades.
Isso porque aprendia com rapidez, era enérgico, articulado, imaginoso, se bem
que egoísta e meio pilantrinha — conjunção de qualidades intelectuais e morais
infelizmente bastante comuns e injustas.
Injustas
porque os maus são geralmente mais espertos que os bons. No entanto, o Rui, que
nasceu em lençóis pobres, mas limpos, teve que desistir de estudar depois de
reprovado algumas vezes no primeiro ano da escolinha. Ler, para ele, era uma
tarefa dolorosa, quase impossível. Apenas ficou alfabetizado. Talvez fosse um
problema de dislexia, numa época e lugar em que sequer se imaginava a
existência desse distúrbio de aprendizado. Mas, em compensação, se há alguma área
do cérebro com a função específica de gerir o caráter, essa área não foi
afetada pelo longo sufoco. Talvez tenha sido até fortificada, por alguma forma
natural de compensação, pois dificilmente se encontrará alguém mais
responsável, correto e persistente do que o aludido retardatário.
A esposa do advogado — chama-se
Helena —, orgulha-se do seu grande jardim, intensamente florido. Seu tamanho
ultrapassa, proporcionalmente, o tamanho normalmente reservado para jardins.
Isso porque a casa, em si, não é muito grande. É mais bonita do que grande. O
terreno tem mais frente do que fundos. Haveria nele espaço para estacionamento
de vários automóveis, mas, como o casal proprietário não usava mais que dois,
Helena insistiu em transformar o espaço extra em algo especial que chamasse a
atenção pela beleza, porque também gostava muito de flores, apesar de ser uma
mulher essencialmente prática, objetiva, descendente de alemães por parte de
pai e mãe. Seu marido, quando aborrecido com sua frieza verbal costumava chamá-la
de “alemã”, ou “nazista”.
Para
aproveitar essa ampla área, ela desenhou vários canteiros, carinhosamente
cuidados, dando a quem chega — na primavera — uma visão surpreendente,
intensamente florida, quase encantada. Algo inusitado numa cidade grande, tal a
quantidade de rosas, cravos, dálias, azáleas, rododendros, primaveras, e outras
flores que, para serem aqui mencionadas, exigiriam o conhecimento especializado
de um botânico, não de um narrador qualquer. Os amigos mais velhos do casal
costumam dizer que o jardim, na primavera, faz lembrar o filme O Mágico de
Oz na sua versão colorida. E quem cuida tão bem dessa paulistana edição
florida do Éden? O Rui, sempre tenaz, ordeiro, respeitoso, cumprindo à risca —
raramente inovando — todas as ordens da dona da casa.
Fechado o
parêntese biográfico do jardineiro, voltemos à casa do advogado na manhã de
sábado em que Rui tocou a campainha.
Para não
deixar o jardineiro esperando na porta, Dr. Paulo largou a torrada em um pires
e desceu para abrir o portão do jardim. Trocaram os cumprimentos usuais e o
jardineiro entrou para fazer seu trabalho.
Conforme o
hábito, Rui utilizou o corredor lateral para chegar ao quintal da residência
onde existe um quarto de empregada no qual costuma trocar de roupa. Nesta vez
isso não foi necessário porque compareceu já com roupa de trabalho. Apenas sentou-se à mesa existente no fundo da
residência — uma varanda, vizinha à cozinha, usada para lavar e passar a roupa
— e aguardou seu lanche matinal porque a dona da casa “fazia questão”,
gentilmente, que ele comesse algo e tomasse café antes de começar seu trabalho.
Sendo Rui um homem silencioso e paciente, sua presença ali, perto da cozinha —
separado desta por uma parede com vitrô — não foi notada pelos donos da casa,
imaginando que o jardineiro ainda estava distante, trocando de roupa no quarto
de empregada, que não trabalhava nos sábados. Rui era, em tudo, um
perfeccionista, jamais um velocista.
Retornando à
cozinha, para o breakfast, o advogado, ao passar pela sala de visitas
viu, em cima de uma poltrona, um livro que lera durante e noite e que o
impressionara. Era o Guinness Book, edição de 1974. Apanhou-o e chegando
à cozinha comentou, rindo alto, os recordes mais absurdos que lera na noite
anterior. Ao fazer isso não sabia que, por mera coincidência, o jardineiro está
ouvindo tudo, sem querer, através do vitrô.
— O que esse pessoal não faz para
ficar famoso! — exclamou o advogado para sua mulher, após ler pequenos trechos.
— Atividades perigosíssimas! Veja, por exemplo, o recorde de mergulho, do
italiano Enzio Maiorca. Em onze de agosto de 1971, em Siracusa, na Sicília, ele
mergulhou a uma profundidade de setenta e seis metros. Não sei como o sangue
não espumou quando ele voltou à superfície! Quem sabe até morreu, pouco
depois...
— Grande tolice... — foi o
comentário frio da mulher, quase sempre encarando as coisas pelo lado prático.
— Risco de vida inútil... Se você não tivesse lido isso agora, eu teria morrido
sem saber.
— Veja esta — ele prosseguiu,
folheando o livro: — “A mais longa corrida foi a prova Transcontinental
de 1929 (5.898 km), a pé, partindo da cidade de Nova Iorque, EUA, até Los
Angeles, Estado da Califórnia. O vencedor foi Johny Salo, de origem finlandesa,
falecido em 6 de outubro de 1931”. Levou nisso 79 dias.
— Quando foi a corrida? — ela
indagou, franzindo o cenho.
— Em 1929.
— E ele morreu em 1931?
— Exato — respondeu, conferindo o
texto.
— Então foi a corrida que o matou.
— Bom, quem sabe morreu de qualquer
outra causa. Voltando aos recordes, não vejo nada de mau neles, desde que se
evitem aquelas competições degradantes, como foi o caso do campeonato de
bofetadas, em Kiev, Rússia, em 1931. Está aqui... — apontou com o dedo um
trecho do livro.
— Bofetadas? Virgem Maria! Conte isso!
— Houve um empate entre “Vasilly
Bezbordny e Goniuch” — ele leu os nomes com dificuldade — após trinta horas de
contínuos tapas na cara. Você já imaginou o estado das bochechas deles logo
após a competição? Se ficassem sentados, descansando, com os olhos fechados,
junto a uma janela que dá para a rua — os transeuntes só podendo ver o rosto
deles — é provável que ririam. Ou chamassem a polícia, pensando que os dois os
insultavam exibindo suas nádegas vermelhas e inchadas. Os olhos devem ter
ficado miudinhos... Isso, se não houve marmelada... Não, não... Se o torneio
foi em público era necessário a evidência sonora, a “sinfonia”, tocada a quatro
mãos e duas bochechas. Eram bofetadas reais.
— Entre dois amigos, provavelmente —
adiantou a mulher. — Houvesse algum tipo de inimizade, mesmo disfarçada, teriam
se matado na base da bolacha. As mãos também devem ter inchado...
— Por falar em mãos, veja essa aqui
— ele prosseguiu: — “O recorde mundial de aperto de mão foi estabelecido pelo
presidente dos EUA, Theodore Roosevelt. Ele apertou a mão de 8.513 pessoas no
dia do Ano Novo, numa recepção da Casa Branca, em 1º de janeiro de 1907”.
— Bom, aí não tem nada de errado...
Nem de interessante, também...
O advogado não gostou muito do
comentário mas prosseguiu: — Desta você vai gostara: — “O maior recorde de
distância, masculino, para arremesso de estrume de vaca seco — seco! ainda
bem... —, uma competição rural, foi de 50,62m alcançado por Harold Huler
Smith”. E há o recorde feminino desse arremesso, de 30,81m alcançado por Patti
Bruce, recordes obtidos no Campeonato Mundial de Beaver, em Oklahoma, em 21 de
abril de 1973.
— Esses dois bem que se mereciam...
Deviam se casar... Imaginou uma briga doméstica? O que você acha que voaria de
um lado pra outro? — ela comentou.
— Mulher tem muito espaço neste
livro. — Leu: — “... recorde feminino de falar ininterruptamente foi
estabelecido pela senhora Alton Clapp, de Greenville, na Carolina do Norte,
EUA, em agosto de 1958. Ela falou durante 96 horas, 54 minutos e 11 segundos.
Nos Estados Unidos, estes específicos torneios são chamados de “Festas da
Tagarelice”.
— Fichinha, comparada com algumas
amigas minhas no telefone, sempre ocupado. Eu acabo desistindo...
— Há também os recordes
gastronômicos, que, agora, talvez, já não são mais aceitos pelo Guinness porque fazem muito mal à saúde.
Consta aqui que foram “reivindicados” certos recordes. Um tal de David Man
comeu 130 ameixas frescas em 1 minuto e 45 segundos, em Eastbourne, Inglaterra,
em 16 de junho de 1971...
— E nunca mais sofreu de prisão de
ventre... — ela complementou, séria.
— Tem aqui que um cara, na Bélgica,
que segurando um cabo apenas com os dentes, puxou, nos trilhos,
dois vagões pesando 36 toneladas.
— Não acredito. Se eu fosse da
comissão julgadora, examinaria bem a inclinação do terreno... Queria ver ele
puxar numa subidinha...
— Você quer é matar o pessoal...
A tudo isso, o Rui, sentado do outro
lado do vitrô prestava atenção. Após o relato dos recordes mundiais, o casal
silenciou e a dona da casa levou ao jardineiro o lanche em uma bandeja, sem saber que o jardineiro ouvira a conversa.
Terminado o café, Rui chegou à porta da cozinha para devolver a bandeja, pedindo “uma palavrinha” com o dono da
casa.
— Pois não... — o advogado o
atendeu, pensando que era alguma consulta jurídica.
Acanhado, o jardineiro, constatando
que a dona da casa já não estava mais na cozinha, iniciou: — Desculpe... Sem
querer, escutei a conversa do senhor sobre esses recordes, essas coisas aí que
deixaram algumas pessoas famosas.
— Bem, em alguns casos é uma fama
meio besta... Ouviu a disputa das bofetadas?
— Ouvi... Errado... Muito bruto...
Já ouvi falar desse livro... Bom, vou contar um segredo: sempre tive vontade de
fazer uma coisa melhor que os outros... Alguma coisa diferente, que ficasse
depois de eu esticar as canelas. Cuidando de jardins, nunca vou aparecer em
livro, por melhor que trabalhe.
— Mas você faz isso muito bem!
— Eu capricho ao máximo, mas
gostaria de poder mostrar um recorde mundial qualquer pra minha mãe, que tá
velhinha e já sofreu muito. Gostaria que ela se orgulhasse de mim. Perto de meu
irmão, um homem rico, sou um nada. Sinto no peito uma angústia esquisita por
não poder fazer algo grande, comentado no mundo inteiro. Nunca vou ser um
escritor, um cientista, um político. Meu problema é que para fazer qualquer
coisa grande é preciso estudo; ou muito dinheiro e, como o senhor sabe, tenho
um problema com esse negócio de leitura. Parece uma doença... Não dá, por mais
que eu me esforce. E também não consigo ficar rico porque sou honesto demais.
— Bom, se você bater um recorde, seu
nome vai para o tal livro. Chama-se Guinness Book e é publicado em
várias línguas pelo mundo todo. Mas que tipo de recorde você pretende? O
problema está aí... Uma demonstração de força? De agilidade?
— Bom, força eu tenho, mas nada
especial. E sou lento... Na escola meu apelido era “Tartaruga”, mas um dia
perdi a paciência.
O advogado pensou mas estava difícil
sugerir qualquer coisa. E não queria responsabilizar-se por algum acidente. Nem
mesmo mencionou, para evitar uma cópia fatal, a louca ambição daquele cidadão
que tentou “morder”, isto é, segurar com os dentes — revestidos de uma placa de
aço — a bala de revólver disparada contra a própria boca. Morreu, claro, de
tiro na boca. Aliás, da mesma forma que morrera seu pai, ambos profissionais de
circo. Esperava-se que o neto, se existente, herdasse mais juízo e menos
persistência.
— Doutor... — sugeriu o jardineiro,
enquanto o advogado pensava — quem sabe alguma coisa de comer? Nisso posso usar
minha paciência.
— Parece que o Guinness já
não vê com bons olhos tais façanhas. Deixe-me dar uma espiada... Enquanto isso,
que tal ir trabalhando? — sugeriu sorrindo.
O jardineiro concordou e foi pegar
suas ferramentas. O dono da casa voltou a sentar-se para folhear novamente o Guinness.
Procurava novas informações.
Passados uns quarenta minutos, o
advogado saiu da sala e proximou-se do jardineiro que, de joelhos, arrancava
ervas daninhas.
— Olha, Rui, está difícil... Quase tudo exige muita força, ou rapidez, ou uma
habilidade toda especial. Afinal, são recordes. Você sabe dançar ou sapatear? —
perguntou, sorrindo, imaginando aquele pesado Fred Astaire sapateando e
rodopiando com cartola e fraque, enlaçando Ginger Rogers pela cintura.
— Sou muito pesado pra isso,
doutor... — admitiu, quase sorrindo.
— Há no livro também menção de um
campeonato de cuspe à distância, ou arremesso — com a boca, claro — de semente
de melão. Só que nos Estados Unidos. Não dá pra você ir lá, é muito longe...
Aqui no Brasil ninguém organiza essas besteiras. Há ainda um recorde de banho contínuo
de chuveiro. Durou 174 horas, em Indiana, no ano de 1972... Essa parece uma
boa! Só depende de persistência, água e energia elétrica. Que tal?
— Vou pensar... — respondeu, pouco
interessado. — O que mais o senhor viu?
— Bom, se você ainda fumasse — o
jardineiro largara o vício há mais de três anos, sem recaídas, porque tinha
muita força de vontade — poderia tentar vencer o recorde de um tal de Robert
Reynard, da Inglaterra, em 1971. Com uma única tragada ele fez 86 anéis de
fumaça!
— Não dá! Minha mulher me mata,
tanto ela insistiu para que eu não fumasse mais. Além disso, penso que não
conseguiria fazer mais de cinco ou seis anéis de cada vez... Desculpe dar tanto
trabalho... O que mais o senhor viu?
— Um tal de Herbert T. Waldren, aqui
diz a cidade, mas não informa se foi na Inglaterra ou Estados Unidos, ganhou
oito vezes a disputa nacional intercidades de “gritadores”. Taí outra coisa ao
seu alcance! Isto é, não exige força muscular nem agilidade. Que tal gritar
horas e horas?
— Essa até dá pra pensar, mas não
gosto de gritos. Nunca gritei, o senhor já deve ter visto. Então, o que sobrou
mesmo? Ah! O banho durante muitas horas
— Melhor dizer dias! — corrigiu o
advogado. — Mas vamos parar por aqui... Desse jeito, você não termina o meu
jardim. No próximo sábado, você me diz o que decidiu, tá bem?
— Obrigado, doutor. No próximo
sábado a gente conversa de novo. Cobro hoje só a metade pelo trabalho.
— Nada disso. E mãos à obra!
— Desculpe, insisto! Hoje eu
trabalhei menos.
O advogado não quis discutir mas
pretendia pagar direitinho à esposa do Rui que obviamente exigiria o pagamento
total. Voltou ao quarto para trocar de roupa, meio chateado com a quebra de sua
rotina matinal de sábado, causada pela inusitada pesquisa. Entrando no quarto,
a mulher lhe perguntou: — Sobre o que tanto conversavam?
Ele sorriu: — Você nem imagina...
Ele quer entrar no Guinness Book...
— Você está brincando!
— No duro!
— Fazendo o quê?
— Ainda não decidiu.
— Espero que não faça alguma
asneira...
— Ele tem, de fato, uma grande
qualidade, aliás a única necessária numa competição que só exija uma tremenda
persistência.
— Ele é bom, educado, gosto muito
dele, mas é burro. Nunca imaginei que quisesse fama.
— Burro? Ele cuida bem do nosso
jardim...
— Também pudera! Sou eu quem dou
todas as dicas, quando é preciso modificar alguma coisa. É incapaz de
improvisações rápidas.
— Se ele tomasse qualquer iniciativa
no seu jardim, não sairia vivo daqui... Nisso ele é inteligente...
— Não venha com indiretas... Patrão
tem que mandar e empregado tem que obedecer. Você tem preconceito contra
descendentes de alemão...
— Não acho que tenha. Apenas acho
que alguns de sangue germânico exageram nesse negócio de disciplina... Por
outro lado... Não, deixa pra lá!... Não vamos brigar, senão você faz greve de
sexo. E hoje à noite estou propenso aos atos introdutórios à perpetuação da
espécie.
No meio da tarde o jardineiro se
despediu. Mas não sem antes perguntar ao advogado se alguém tinha batido algum
recorde de comer ovos cozidos, dos quais gostava muito.
— Espera aí, acho que sim, vou ver;
lembro-me mais ou menos da página. — Em, em poucos segundos,
o advogado localizou o parágrafo: — Aqui está: um belga, Georges Grogniet,
comeu 44 ovos duros, sem pausas. Isso aconteceu em maio de l956... Mas vê lá,
Rui! Pode fazer mal ao fígado.
— Não se preocupe... — foi a
resposta reticente do jardineiro, saindo.
Dois dias depois, na segunda feira,
por volta das oito horas da noite, a esposa do jardineiro, uma mulher magra,
alta, não feia, gestos decididos, veio sozinha até a casa do advogado, pedindo
para lhe falar. Ele acabara de jantar e assistia à televisão. A visitante
estava nervosa, até mesmo algo hostil. Era ela, já expliquei, quem “gerenciava”
a atividade do marido, fixando preços e organizando os dias de atendimento da
freguesia. Apesar da pouca escolaridade, era bem-informada,
assistia aos noticiários e debates pela televisão e lia jornais. Todo o
dinheiro que ele ganhava ia para as mãos dela, que era econômica e sagaz no seu
uso. Mal se sentou, perguntou em tom de repreensão:
— Doutor, gostaria de saber o que o
senhor sugeriu pro meu marido!
— Eu?! Não sugeri nada... — um leve
temor se insinuou no seu espírito.
— Hoje de manhã, ele nem foi
trabalhar... Estava mal, muito mal! Cor de cera, quase desmaiando. Dizia que a
cabeça não parava de doer. Pensei até que ele estava envenenado porque também
vomitou.
— Ele explicou porque estava assim?
— Ele não dizia nada. Acho que
estava meio envergonhado. Desconfiada, achei, na lata de lixo, uma grande
quantidade de cascas de ovo. Dei um aperto e ele me contou que comeu mais de
vinte ovos cozidos! De uma enfiada só! Foi talvez mais de vinte porque depois
dos vinte, ele admitiu, se atrapalhou na conta e começou a ficar mal. Fez isso
quando eu estava na casa de minha mãe, senão eu não deixava.
— Ele já melhorou?
— Esteve no Pronto Socorro. Deram
uma injeção nele... Agora está em casa, deitado, branco e com um mau hálito!
Ele não acusou o senhor, mas falou que soube dos tais recordes pelo senhor.
— ... Bom, minha senhora... Eu não
tenho culpa ... O que aconteceu foi que ele ouviu uma conversa que eu mantinha
com minha mulher, na cozinha, isso no sábado. Ficou impressionado, fazendo uma
série de perguntas. Mas eu o desaconselhei a se meter nessa estória.
— Acontece que meu marido, quando
enfia uma coisa na cabeça...
— Mas o que eu podia fazer? Não sou
obrigado a conversar escondido dentro de minha própria casa. Além disso, seu marido
não é criança...
— Em algumas coisas, ele ainda é uma
criança...
— Bem, podia ser pior... Certamente
houve apenas uma forte indigestão. E como é que eu podia adivinhar que ele ia
querer imitar aqueles malucos que aparecem no Guinness? Por uma famazinha
boba. Para saírem nos jornais, ou no tal livro, fazem coisas incríveis!
Ouvindo as palavras “famazinha” e
“jornais” os olhos delas, já grandes, pareceram crescer. Erguendo as
sobrancelhas, indagou: — Nesses recordes o prêmio é... em dinheiro?
— Pelo que sei, não — “Ah! a
cobiça”— ele pensou, e prosseguiu — “mas, indiretamente, pode haver algum
proveito econômico, se contratado o vencedor para fazer comerciais na
televisão. Mas não aconselho ninguém a...
— Televisão? — ela o interrompeu
novamente, os olhos ainda maiores. — Ele pode aparecer na televisão?!
— Calma, digo isso como uma
hipótese. Não é o que tem acontecido com frequência. Mas quem pode impedir, por
exemplo, que um laboratório fabricante de cápsulas de, digamos, alcachofra, ou
boldo do chile, ou algum antiácido, se lembre de fazer um comercial em que o
glutão, por hipótese, fale na tela como logo ficou aliviado, tomando o remédio
após comer demais?
— Em suma, pode aparecer algum
dinheiro na jogada — ela insistiu... — Nesse momento um exame de fundo de olho
mostraria nela inúmeros vasos sanguíneos com formato de cifrão.
— Pelo que sei, ninguém tenta bater
recordes pensando diretamente no dinheiro...
— Mas o senhor, pouco antes, disse
que, “indiretamente” — frisou a palavra —, pode trazer dinheiro, não é mesmo?
Ele fez uma pausa, enquanto Helena,
uns três metros distantes, fingindo mexer em alguns vasos, os ouvia com
expressão meio marota, olhos semicerrados.
O advogado suspirou, espantado com a
reviravolta nas preocupações da visitante: — O que a senhora está pensando
fazer? Seu marido pode até morrer numa tentativa dessas!
— Bom, eu estava brava porque não
conhecia esse lado... mas, ué, se ele quer tentar, e se não for uma coisa
perigosa, por que não?
— Não é possível! Agora, é a senhora
que vai querer que ele se encha de ovos cozidos? O fígado dele vai virar uma
maionese!
— A decisão será dele, apenas dele!
E quem falou em ovos cozidos? Além do mais, duvido que desista, porque ele
nunca desiste, se não estiver fazendo alguma coisa ilegal. Meu marido é um
homem honesto. Mas se ele bater um recorde, nós vamos faturar! Ah, vamos! Eu
cuido da parte comercial! Vamos comprar uma casa melhor! Meu cunhado, o irmão
dele, são gêmeos, um espertinho vaidoso, vai parar de se exibir, todo riquinho.
Compraremos um carro decente! O senhor já viu o estado de nosso fusca? Já nem
anda sem empurrar! E ninguém quer comprar a carcaça. Para voltar a andar seria
preciso gastar um dinheirão! Eu também já disse ao Rui que se ele ganhar
dinheiro com um recorde ele poderá ajudar uns parentes dele que ganham uma
micharia. Isso reforçou a ideia dele de continuar.
Levantou-se, excitada, andando de lá
pra cá, como uma tigresa enjaulada. Parando bruscamente em frente do dono da
casa, perguntou: — O senhor poderia me emprestar o tal livro, só por uns dias?
Já que o Rui é uma mula de teimoso, não custa nada fazer a coisa pelo jeito
certo. Se ele cismar — ele, não eu, veja bem! — sou eu quem vai escolher o tipo
de recorde! Alguma coisa que ninguém pensou mas que não o mate! Afinal, não
quero ficar viúva. Amo o meu marido. Tenho certeza que nunca me traiu.
— Não posso emprestar. Esse livro
não é meu — mentiu. — Fiquei de devolvê-lo amanhã.
— Que pena... Mas não faz mal.
Agradeço muito, doutor. Foi uma ideia e tanto do senhor.
— Espere aí! Eu não dei ideia
nenhuma. Está claro?
Ela nem pareceu ouvir. Despediu-se
rapidamente acenando aos donos da casa e se retirou com passadas enérgicas.
No dia seguinte, terça-feira, um
feriado, o jardineiro e sua mulher apareceram por volta das dez horas da manhã.
Pela janela, o causídico viu o casal e logo concluiu, aborrecido, que o resto
da manhã estava perdido. Era óbvia a finalidade da visita. Mas o que fazer?
Fingir que não estava em casa? Ele, quando advogado, em casos criminais,
zelando pelo interesse do cliente, mentia mais que o diabo mas, fora dos autos
era um homem amigo da verdade. Resignado, amarrou os sapatos, desceu a escada e
foi receber a futura celebridade e sua empresária. Convidou-os a entrar e
sentar da sala de visitas.
— Descobri! — foi a primeira coisa
que ela disse, entusiasmada, enquanto se sentava. — O Rui já resolveu o que
fazer. Só que precisamos da colaboração do senhor. Em troca, não precisa mais
pagar o serviço do jardim.
Lá vem foguete! — ele pensou,
inquieto. Daquela mulher ambiciosa só poderia vir algum perigo. Cauteloso,
indagou: — Que tipo de colaboração?
— Pensei, aliás pensamos, em algo
que ninguém pensou! É coisa de comer... Ou melhor, é coisa de não se comer, mas
agora vai ser comida. Adivinhe... Não, não dá pra adivinhar!
— Olha, não me metam nisso, por
favor... Eu lhe peço... — Estava começando a achar graça nas duas figuras mas
levemente curioso.
— Mas não tem nada que possa
prejudicar o senhor!
— Então, por que precisam de mim?
— Como testemunha.
— Testemunha do quê?
— Estávamos lá em casa, pensando,
pensando sem ideia, mas olhando casualmente para o fusca velho, tive um
“estalo”.
— Até agora, pelo que sei, o único
“estalo” que deu certo foi o do Padre Vieira —, brincou o advogado tentando
diminuir a tensão do diálogo.
— Não conheço esse padre... É da
nossa paróquia? — ela perguntou, esforçando-se para ser educada, mas nem um
pouco interessada em doenças de velhos sacerdotes.
— Esqueça o estalo... O que que tem
o velho fusquinha?
— O Rui vai comê-lo! — ela sorriu,
triunfante, soltando a bomba e dando uma olhada rápida para o marido, que
parecia meio alheio ao diálogo, talvez ainda com o excesso de gema no cérebro.
— Comer como? — pensou não ter
ouvido direito.
— Comer! Comer! Com a boca!
— Mas como é que o Rui vai comer o
metal, o plástico? Não há dentes que resistam! Pense bem, as molas, os
para-choques!... Ou será que isso estará fora do cardápio? — ele insistiu em
brincar, amável.
— Não, ele vai comer tudinho:
portas, trincos, direção, buzina — não, buzina não, porque já não tem —,
bancos, embreagem, breques, pneus, com câmara ou sem câmara, tanque de
gasolina, etc. Até as chaves, para impressionar, como se fosse um cafezinho...
Ah! — lembrou —, só não comerá os vidros porque pode cortar os intestinos dele.
— “Devo estar sonhando...” — o
causídico pensou, meio zonzo. Já se defrontara com muitas situações estranhas,
mas agora sentia-se como na presença de dois alienígenas. Quem era o louco ali?
Afinal, eram dois contra um. Estava em minoria. E nesse momento Rui, o sensato,
sorria amarelo parecendo compreender e aprovar tudo o que sua mulher dizia — o
que dava mais credibilidade ao projeto inacreditável. Rui abriu a boca para
dizer alguma coisa, mas a sua mulher não lhe deu tempo:
— Ninguém pensou antes! Cada
pedacinho do carro, seja de ferro, plástico, borracha ou madeira, será reduzido
a pó. O Rui come uma porção cada dia e depois de algum tempo terá comido todo o
fusca. É ou não é? Comeu, não foi? Quando alguém diz que comeu um frango
inteiro, não quer dizer que o frango desceu pela goela do jeito que saiu do
forno.
— Realmente... — vacilou o advogado,
vencido pela imaginação e lógica infernal da ambiciosa incansável. Mas era
inevitável uma objeção: — Mas como vocês vão reduzir tudo a um pozinho diário?
— Isso já está resolvido! Um primo
do Rui trabalha numa metalúrgica perto da nossa casa. Na fábrica e na casa
desse primo há o maquinário que preciso. Com serra elétrica e outros aparelhos
tudo será reduzido a pó. Eu até pensei em colocar o pó dentro de cápsulas, para
engolir mais fácil, mas aí já não teria aquele “tchã”! Além disso, as pessoas
iam desconfiar que estavam sendo enganadas com cápsulas de farinha de trigo.
Todo fim de dia, dez minutos depois de parar a fábrica, um operário corta um
pedaço do fusca, como se fosse um bifinho, e depois o tritura; após o que o Rui
engole, com água; ou leite, que é mais sadio. O que acha do plano?
O advogado, tomado de súbita
melancolia, não sabia o que achar. Aí, lembrou-se do início da conversa: — Em
que eu entro nisso tudo?
— Como as testemunhas, na
metalúrgica, são apenas operários, gente simples, pensamos em arranjar uma
testemunha instruída. O senhor, pelo que sei, dá aulas numa Faculdade. Além
disso, saberá como lidar com a papelada, registrar num cartório o começo da
demonstração, a primeira engolida. Aparecer em fotos, apoiado, sorrindo.
— “Continuo sonhando...”.
— O senhor também merece aparecer.
Afinal, deu a ideia. Pensei, digo, pensamos, em convidar um juiz de direito, o
Dr. Salvador — o Rui cuida do jardim da casa dele —, mas o “importantão”,
orgulhoso, cheio de vento, nem bem acabei de falar, já deu a bronca. Ficou todo
assustado, pedindo pra não envolver o nome dele “nessa loucura”. Parecia até
que eu estava convidando ele pra roubar um banco. Sujeito grosso! Quando eu
insisti, tentando convencê-lo, quase nos expulsou da casa dele. Acho que o Rui
perdeu o freguês.
Dr. Paulo sabia que tinha de
protestar mas faltava-lhe ânimo. Nascera, infelizmente, com doses exageradas de
bondade, curiosidade e paciência — quantos réus defendera sem nada cobrar? — e
não queria ofender aquela toupeira de saia, que pensava em nomeá-lo chefe do departamento
jurídico e de marketing do grotesco projeto. Principalmente não queria
desanimar o já desanimado Rui, que o observava com humilde ansiedade. Tinha
pena dele. Como fechar àquele bondoso frustrado o acesso a um sonho de fazer
algo nunca feito antes?
Com muito cuidado, o advogado
explicou a eles que o máximo que poderia fazer era redigir uma declaração,
assinada pelos dois e mais uma lista de testemunhas — sem pôr o nome dele,
advogado, de jeito nenhum! — mencionando o objetivo específico da façanha,
levando depois tal declaração a um cartório, para registro. E, terminada a
façanha digestiva ele poderia declarar o que sabia a respeito da sua
veracidade. Mas frisou que de forma alguma queria ver na imprensa o seu nome
associado a esse tipo de coisa. Insistiu que, se soubesse que seu nome estava
sendo ligado a tal “empreendimento”, não daria declaração alguma a respeito. E
cortariam relações.
Ela concordou, um tanto surpresa com
essa reação. Esperava mais entusiasmo da parte dele. Em seguida, o casal se
retirou.
Nem bem haviam transposto o portão o
advogado já estava arrependido, sentado na sala de visita. Quase correu atrás
para tomar alguma providência. Mas parou a tempo. Cedera, mais uma vez, à sua
“fraqueza”, na definição da esposa. Ela costumava censurá-lo por manter a sua
palavra em promessas bobas que ninguém, nem mesmo remotamente, se sentia
obrigado a respeitar. Nesse item de compromisso com a palavra dada ele sentia
uma certa solidariedade, ou identidade com o bondoso jardineiro.
Quando sua mulher chegou, pouco
depois, ele lhe fez um resumo da conversa que acabara de ter com os dois.
— Que loucura! Um avestruz sem asa!
— foi o comentário entre abismada e divertida, talvez ainda não inteiramente
convencida da realidade daquela intenção. Perguntou brincando: — Ele vai
engolir a seco? Nenhum vinhozinho para empurrar?
— Ela diz que o Rui vai engolir com
leite, por ser mais sadio...
— Muito sadio! Claro!... Olha, se
você for preso por homicídio, não vou nem te visitar na cadeia! Você tinha é
que proibir! Proibir! As pessoas não podem ter liberdade demais! Não vê que
esse cara é meio retardado?! A mulher dele não passa de uma assassina
ambiciosa!
— Mas como é que eu poderia impedir?
— Dizendo que é proibido! Mentindo,
ameaçando avisar a polícia! E o nobre estudioso do Direito ainda ficou de
redigir uma “declaração!” — ela revirou os olhos e fez um gesto, girando o dedo
indicador em torno da orelha, como que dizendo que a inteligência do marido não
ia muito além da do jardineiro.
Aí o advogado se encheu. Mandou ela
deixar de ser besta, presunçosa, e outras “cositas más”. Pôs em dúvida sua
competência como professora, dizendo que em lugar de ela estudar mais para
ensinar melhor — era um contra-ataque às críticas dela de que ele lia demais —
finge ensinar, organizando seminários em
que os “jumentinhos” — eram os alunos —, zurravam opiniões superficiais ou
escoiceavam as máquinas de escrever, enquanto a “ignorantona” — a alemã era
alta, parecendo ainda maior quando nua — ficava sentada ali do lado, na
maciota, as pernas grossas cruzadas, postura de sábia, satisfeita com a própria
ignorância. A discussão foi pesada. Mas para evitar que ele se casasse de novo,
estando ela ainda viva, a mulher resolveu não tocar mais nesse assunto.
Reconheceu que a falha do marido era ser bom demais, algo raro no mundo, hoje e
sempre. Conteve a língua, pediu desculpa e uma hora depois já estavam de bem.
Até mesmo em excesso, sem roupa, embolados na cama, maravilha doméstica
concebida pela humanidade para o sono e a reconciliação dois casais.
Na véspera da “grande largada”, ou
“Big Engolida” — conforme escrito na faixa estendida — o Rui veio até a
residência do advogado, pedindo-lhe encarecidamente que não faltasse e não
esquecesse de escrever, no mesmo dia, a tal declaração, uma espécie de ata dos
trabalhos.
O advogado compareceu ao evento sem
nenhum entusiasmo. Era um sábado, assim escolhido porque a fábrica não
funcionava nesse dia. O irmão gêmeo do Rui, aquele precipitado bebê
mergulhador, também estava presente, sem a esposa, exibindo o carro novo,
sorrindo de forma condescendente, discretamente dando a entender que seu irmão
era um pobre diabo, precisando de um apoio moral. Ele fora convidado contra a
vontade da mulher do Rui. Havia entre os dois uma velha rivalidade.
A notícia da “largada” causara certa
sensação na redondeza. A mulher do herói só não cobrou ingressos porque o
advogado disse que isso seria ridículo e diminuiria muito o número de
testemunhas, dificultando depois a comprovação do recorde. Ela concordou, mas
revoltada com esse desperdício de dinheiro.
Dirão que exagero, mas a mulher do
engolidor queria corneta e fanfarra. Foi o próprio Rui quem, num surto de bom
senso, se opôs. A modéstia estava entranhada na sua natureza. Queria aparecer
no tal livro, claro, ser famoso, mas discretamente, como convém a um grande
homem. Apenas o seu nome, não sua cara, sua pessoa, algo como mulher barbada de
circo.
A esposa do jardineiro leu em voz
alta um breve discurso escrito por um mau estudante de jornalismo — o advogado
ficou aliviado por não ter sido solicitado a escrever as bobagens — frisando
que seu marido pretendia entrar para o Livro dos Recordes, realizando
“uma façanha jamais tentada”. Ressaltou que, com esse feito, o Brasil iria
aparecer um pouco mais “no concerto das nações” e que esperavam terminar o
“empreendimento” em determinado mês, calculando-se a ingestão de trezentas
gramas de fusca por dia. Admitiu que o feito comportaria algum risco, claro,
mas que “o valoroso espírito humano” suplantava todas as dificuldades. Nessa
hora o irmão do jardineiro controlou a boca para não rir.
Terminado o discurso, um operário,
com solenidade, cônscio de sua alta responsabilidade, velho amigo do casal,
cortou com uma serra elétrica um pedaço do para-lama traseiro, a “mordida
inaugural”. Em seguida, moeu o “bifinho” numa máquina ruidosa, situada poucos
metros distantes do fusca. Para onde se movimentava o “cirurgião”, todo mundo
ia grudado atrás, curioso ou rindo.
O carro a ser digerido estava bem
lavado. A incansável empresária que, preparando suas saladas habituais, lavava
meticulosamente o tomate e o alface, não poderia agora agir diferentemente,
permitindo que o maridinho comesse metal ou plástico não escrupulosamente
limpos. O fusca só não estava encerado, ela explicou, porque a graxa, oleosa,
poderia atacar o fígado do campeão, sensível a gorduras desde sua experiência
com os ovos.
Encerrada a trituração, o Rui
engoliu a primeira colherada. A farofa metálica foi empurrada, goela abaixo,
com um copo de leite. Aí, ele ficou piscando, expressão assustada, temendo que
pudesse ocorrer alguma reação formidável. Mas nada aconteceu de imediato, e a
pequena assistência, umas trinta pessoas, vendo que ele não caía duro, bateu palmas e soltou vivas. Exceto o
advogado, que reconhecia tardiamente o acerto da própria esposa nas suas
críticas quanto à sua conduta omissa naquele festival de asneiras. Ele poderia
ter abortado a coisa no seu início, até mesmo mentindo, se necessário. Agora
era tarde. O “trator” estava em movimento. Aliás, os dois tratores de duas
pernas.
Três dias depois, o advogado teve
uma súbita reviravolta na sua vida profissional. Um grande amigo dos tempos de
Faculdade, de família riquíssima, presidia, após o falecimento do pai, o
conjunto das empresas da família, em outro estado, bem distante. Precisando
reorganizar o departamento jurídico das empresas, com diretores investigados
por crimes financeiros — chefiado até então por um advogado que, ultimamente,
sentia mais prazer no convívio com as garrafas do que com os códigos e autos do
processo — esse amigo pediu ao Dr. Paulo que se incumbisse dessa
reestruturação, que demoraria algumas semanas.
Como a remuneração era bem convidativa, o advogado aceitou o convite,
mudando-se provisoriamente para outra cidade.
Com essa mudança o advogado perdeu
contato com o jardineiro. Até mesmo se esqueceu do assunto, pensando,
certamente, que logo, logo, o jardineiro, tão sensato — e, felizmente, de
fígado sensível, pelo menos a ovos — desistiria do absurdo projeto.
Ocorre que sua
tenaz empresária aparentemente não nascera para desistir de coisa alguma;
principalmente considerando que o estômago posto à prova não era o seu.
Segundo
relatos posteriores, o jardineiro, alguns dias depois da largada, começara a
emagrecer, adquirindo uma cor meio esverdeada. Quis desistir, após deglutir o
para-choque traseiro — o carro seria comido de trás para a frente, como se
fosse roído. Depois seriam a carcaça, chassis e motor. Mas a mulher não
permitiu. A parte mais indigesta da competição, parece, tinha sido o pneu. Não
obstante fosse a borracha uma “comida” muito menos dura que o motor — pela
lógica, em termos de rigidez, equivaleria a um pudim preto — algo havia, em sua
composição química, que agredia as tripas e demais órgãos digestivos do
esforçado Pantagruel.
Depois de um mês e meio sem contato
com o jardineiro, o advogado voltou à sua cidade, discretamente, preferindo nem
saber do andamento da grande façanha digestiva, mas três dias depois recebeu, à
noite, a visita da mulher do jardineiro.
Ela estava bem murcha: — Deu zebra!
— foi a primeira frase dela. — Ele não pode continuar... Agora, sou eu que não
quero que continue... Houve um momento em que ele quis parar, mas eu não deixei.
Afinal, depois de tanto esforço! Agora é o contrário. Ele quer ir até o fim,
mas já vi que não aguenta. Perdeu uns vinte quilos e tem uma caganeira atrás da
outra. Tudo de repente, depois que comeu o primeiro pneu. Não entendo! Um
veneno, esses Firestones! Deviam ser proibidos! O Rui sente dores do
lado esquerdo e do lado direito. No começo, só sentia azia, mas agora queixa-se
de “nós” que o fazem retorcer-se na cama, gemendo como um torturado. Não quer
ir ao médico porque pensa que o cara vai mandar ele parar com tudo... Depois de
tanta luta?... Penso que foram os malditos pneus que fizeram mal. Para o senhor
ver: justamente a parte mais molinha, o filé mignon do fusca. O senhor
não poderia visitar ele? Quem sabe ele ouve o senhor...
— Minha senhora, é preciso que pare
tudo imediatamente! E se ele morrer?
— É o que eu digo pra ele! Pelo
menos uma pausa de um mês, para descansar o estômago e as tripas! Mas não quer
parar... Diz que falta pouco, só um pneu dianteiro e os bancos. Mentira dele,
falta muito mais! O motor ainda está lá, vi ontem! Mas quem sabe ele ouve o
senhor.
O advogado resolveu fazer a visita
imediatamente. Avisou a sua mulher que ia sair e partiu no seu carro,
acompanhado da mulher do Rui.
A casa do jardineiro era própria,
modesta e pequena, mas limpinha e bem cuidada.
Quando entraram, o Rui estava meio
deitado num sofá, de frente para a televisão, tendo a seu lado vários frascos e
caixinhas de remédio, a maior parte antiácidos e remédios para o fígado. Havia
também remédios contra excesso de gases e mezinhas “digestivas”, feitas de
ervas. Perdera muitos quilos e sua cor era terrosa. Até o cabelo dele estava
desaparecendo.
O advogado procurou disfarçar a sua
péssima impressão. Fingiu otimismo e despreocupação. Conversaram vários minutos,
isto é, o Rui quase só ouvindo, falando, com ar cansado, tanto sobre o motivo
da ausência do advogado quanto sobre os rumos da “competição” solitária.
— Então, Rui, acho que você precisa
parar. Já realizou um feito notável...
— Mas faltam dois pneus e o
para-choques... — ele o interrompeu, fraco.
— Você está um pouco abatido... Não
precisa exagerar...
Nesse momento, a empresária se
intrometeu para dizer que, com exceção de um determinado operário da
metalúrgica, muito mesquinho, invejoso, que fiscalizava com certa frequência a
proeza — torcendo para que ela fracassasse —, poucos conferiam o andamento da
coisa. Assim, não teria importância se, nos dias em que o tal “fiscal” não
estivesse presente, fosse mencionado, falsamente, que o Rui tinha comido um
tanto a mais do pneu, sem que isso fosse verdade. Afinal, ela argumentou,
comparando com o total do fusca, dois pneus era uma “mixaria”. E essa variação
no tamanho do restinho do fusca já não seria percebida pelos agora raros
observadores. Em razão das crises gástricas do Rui — o que emprestava um tom
dramático à façanha — ele já não mantinha um
ritmo regular de deglutição, como ocorrera no início da prova. Em suma, ela não
via “nada demais” em fazer uma “malandragenzinha”, perfeitamente justificável,
tendo em vista o tamanho do fusca e o estado de saúde do marido.
— Não concordo! — guinchou alto o
Rui, tentando ficar de pé, cambaleando. O visitante jamais o vira tão feroz
contra sua mulher. No geral, o jardineiro era um banana, dominado pela esposa.
— Ou eu faço tudo certo, ou desisto! Não vou mentir! Quando eu quis parar, você
não me deixou! Agora, vou até o fim!
A mulher ainda tentou argumentar,
mas o marido, irreconhecível na sua indignação, varreu com o braço os frascos e
caixinhas de remédio sobre a mesinha. Com o movimento quase caiu. O advogado o
segurou, dizendo que ele tinha razão e que tudo seria feito direitinho. Em voz
baixa, aconselhou a mulher a não falar mais. Ela se retirou de cabeça baixa.
— Não desisto! Não desisto! E não
vou enganar ninguém! — ele gritou, desesperado, para que a mulher também o
ouvisse.
O advogado esperou que se acalmasse
e sugeriu que apenas suspendesse a prova por alguns dias, só para um exame de
saúde. Explicou que, mesmo havendo uma pausa, o fusca seria comido inteiro,
realizando-se a façanha. Nunca fora prometido que não haveria qualquer pausa. E
ele redigiria o relatório ou carta para o Guinness, explicando que tudo
fora feito certinho, sem fraudes. Esse argumento de que haveria apenas uma
“pausa para descanso”, não uma desistência, pareceu convencer o Rui. Aceitou um
exame médico — que até acrescentaria credibilidade e dramaticidade ao feito. E
o andamento da prova foi suspenso oficialmente por quinze dias.
No dia seguinte o advogado conversou
com um médico gastroenterologista, seu amigo e com muita seriedade explicou o
que ocorria. O médico ouviu o relato, de início com ar de troça— como se
ouvisse uma longa piada— mas ficando mais sério à medida que era informado da
péssima aparência do competidor. Solicitou uma endoscopia e vários exames, tudo
pago pelo advogado. Poucos dias depois, com os resultados em mãos, chamou-o
para lhe dizer, pesaroso, que não havia qualquer dúvida quanto ao fato de o
jardineiro estar em péssimas condições, com risco de morte. Mencionou câncer e
outros problemas.
— Tudo causado pela ingestão do
fusca? — perguntou o advogado, com remorso por não ter impedido a loucura logo
no início.
O médico ergueu os ombros: — Só pode
ser! Na literatura médica não encontrei estudos — nem sérios nem mesmo
“brincalhões” — sobre alguém “comer um automóvel”, uma louca excentricidade.
Poderia continuar procurando, mas não espero encontrar estudos médicos sobre
uma besteira dessas. A humanidade usa, mas não come automóveis. Tenho muitos
pacientes que só comiam do bom e do melhor e morreram de câncer. Mas seria
temerário dizer que essa extravagância do teu jardineiro não contribuiu em nada
para tal desfecho. Não faz parte do comportamento normal do ser humano deglutir
automóveis. Nenhum cientista vai perder seu tempo estudando e escrevendo sobre
o efeito do metal, do plástico, da borracha, etc. Para fazer um estudo sério
seria preciso arranjar cobaias, ratinhos que jamais comeriam metal, plásticos.
Quanto às cobaias humanas, quem concordaria com tais experimentos? Sabe se ele
comeu também a bateria? Aquilo é puro ácido...
— Não sei, penso que sim, mas só o metal.
O ácido não faz parte do carro, nem o combustível. O que lhe pergunto é: o que
pode agora ser feito?
— De efetivo, nada. Há vários focos
espalhados: pâncreas, intestino grosso...
— E a quimioterapia?
— ... Só para retardar o desfecho.
Depois disso o advogado foi para sua
casa. Sentia-se moralmente incomodado, como que responsável pela doença de um
deficiente mental. Não culpava mais ninguém, além dele mesmo. Nem mesmo a
mulher do jardineiro. Afinal, era uma mulher ignorante. De fato, nesse caso,
como dizia a “alemã”, a liberdade fora um mal.
À noite, conversando com Helena,
esta, com o senso prático habitual, mudou completamente o enfoque anterior.
Disse ao marido que não havia porque sentir-se culpado, pois não tomara nenhuma
iniciativa. Até desestimulara a façanha. Mas, embora sob um ponto de vista
estritamente lógico ele pudesse provar claramente a si mesmo que não era o
responsável, persistia a sensação ruim. Poderia, por exemplo, ter dito que o Guinness
já não aceitava mais tais recordes.
O problema agora era dizer ao Rui
que ele estava condenado a morrer brevemente. Ou melhor, esconder o fato.
Pouco menos de um mês depois, o
advogado fez nova visita ao teimoso casal. O jardineiro estava ainda pior, mas,
deitado, contou com orgulho que completara a prova. “Acelerara” os trabalhos,
comendo “o restante”. A placa foi o último prato, simbolicamente. Terminara a
tarefa no dia anterior, com uma festinha regada a refrigerantes e salgadinhos.
O próprio Rui comera alguma coisa, vomitando pouco depois no banheiro.
O advogado nada revelou ao doente
sobre a conversa com o médico — disse que ele ainda estudava os exames — e
explicou que no dia seguinte iria preencher a “proposta de homologação de
recorde”, que encaminharia à direção da editora competente. Em casa, logo
depois, além de preencher o formulário, redigiu uma longa carta, salientando o
feito e até mesmo explorando o sacrifício pessoal do jardineiro. Terminada a
carta, pensou se não seria melhor tentar antes um contato pessoal com algum
advogado que cuidasse dos interesses da editora do Livro dos Recordes.
Depois de uma série de telefonemas
ficou sabendo que a empresa não tinha mais interesse em divulgar tais
extravagâncias, muito lesivas à saúde. E mesmo que não prevalecesse essa
política, a façanha do Rui não era a única nem a maior. Já haviam comido um
avião “Cessna”, uma televisão, alguns carrinhos de supermercado, uma bicicleta,
uma máquina de escrever e outros bens móveis.
Rui agora definhava a olhos vistos,
na reta final, mas sempre ansioso de uma resposta. Queria saber, afinal, quando
ia aparecer no Livro dos Recordes. Quando das visitas do advogado,
recebia-o com olhos vítreos, já convivendo com a morte. Quando seu nome estaria
na imortalidade das coisas impressas?
A pressão daqueles olhos levou o Dr.
Paulo a transigir com a ética e o Código Penal. O homem tinha que morrer feliz!
Assim, forjou uma carta do Guinness dirigida ao Rui, dizendo que ele
conseguira o recorde a que se propusera. O título seria O Homem do Estômago
de Aço. Nome e façanha estariam na edição do ano seguinte. Até lá, a
simpática carcaça do jardineiro estaria enterrada há muito tempo. Era uma
falsidade ideológica sem nenhum dolo. Mas, assim mesmo, seu autor cuidou de
obter a concordância prévia, por escrito, da mulher do jardineiro. Se não o
fizesse, não tinha certeza de que futuramente não seria réu numa ação de
indenização, movida pela ambiciosa “empresária”.
A mulher do jardineiro leu a carta
para o marido, em voz alta, com acentos solenes. Imóvel, o Rui apertava os dois
braços da poltrona, dir-se-ia com medo de flutuar, tamanha a felicidade por
figurar no livro.
Dois dias depois o jardineiro
faleceu. O advogado chorou ao ser avisado, coisa que não fazia há anos. Sua
esposa, a “alemã”, sempre fria, objetiva, apenas engasgou, com os olhos
vermelhos. Além do choro, Dr. Paulo teve, nessa noite, um sonho bastante
nítido: “via” a alma esfumaçada do infeliz jardineiro subindo ao céu sendo ali
recepcionada por um velhinho barbudo e sorridente — devia ser São Pedro —, que
segurando amavelmente sua mão o perdoava pelo
pecadilho da vaidade. Tão acolhedor se mostrava o santo porteiro que até mesmo
brincava, fingindo esconder, atrás das costas, com a outra mão, a chave de
bronze da porta do céu, preservando-a do apetite de um santo.
FIM.
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado
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Observação:
O presente conto longo — ou seria uma novela curta? — fará parte do e-book “Tragédia na Ilha Grega”, ser comercializada pela Amazon.com.
Francisco
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