domingo, 2 de junho de 2019

Surtos esporádicos de “analfabetismo funcional” podem ocorrer nas cabeças mais lúcidas



Inclusive jurídicas. Fenômeno incompreensível. Ou a má hermenêutica será deliberada; talvez, em alguns casos, por motivos nobres?

(Friso que com o texto abaixo dirijo-me principalmente aos leitores sem formação jurídica, mas interessados em compreender, em linguagem coloquial, uma discussão que lhes parece confusa. Não pretendo convencer as altas ou médias esferas jurídicas porque elas já conhecem o assunto. Talvez elas leiam o artigo só por curiosidade e, isso ocorrendo, agradeço o esforço e a paciência)

Dias destes, assisti a uma entrevista na TV em que entrevistador e entrevistado — não menciono nomes porque respeito ambos, profissionais do Direito de invejável currículo. Eles pareciam estar de tranquilo acordo sobre uma suposta “inconstitucionalidade” da prisão do condenado em segunda instância. 

Refiro-me à interpretação do art.5º, inc. LVII da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Igualmente impressionante é que mesmo aqueles praticantes do direito, favoráveis à prisão do réu após a condenação da segunda instância, em vez de argumentar e insistir simplesmente nas claras palavras constantes do inciso LVII  do art. 5º da CF, gastam linhas e linhas com considerações morais sobre a impunidade resultante do abuso de recursos protelatórios, jogando para um distante e incerto futuro — o trânsito em julgado no STF — a possibilidade de se prender o acusado. Argumentam também com a desigualdade de tratamento penal entre réus pobres e ricos e com o Direito Comparado, lembrando que em alguns países do Primeiro Mundo, como os EUA, o réu pode iniciar a pena com a decisão de primeira instância, se o juiz da causa assim o determinar.

Atente-se para o que diz, literalmente, o inciso constitucional em exame. O inciso não afirma que ninguém poderá ser preso (detido) antes do trânsito em julgado. Diz apenas que ninguém será “considerado”, “rotulado”, “classificado” como “criminoso” antes do trânsito em julgado de sua condenação.
Solto, ou preso — tanto faz —, no decorrer do processo, o acusado ainda não é reconhecido juridicamente, como “culpado”. Só recebe a pecha, a marca de culpado se não dispõe mais de recurso previsto em lei, ou se abstém dele, aceitando sua sorte, sua condenação. 

Uma prisão, de qualquer tipo — em flagrante ou cautelar —, é mero incidente dentro de um processo criminal em andamento, sem que o processo termine, estando o réu preso, ou solto. Algumas prisões em flagrante são anuladas, fato corriqueiro, mas o processo, como um todo, caminha, podendo o réu, eventualmente, ser novamente preso — havendo motivo para isso —, e depois de novo solto, etc. Esse “entra e sai” da prisão, não modifica seu status jurídico de homem sem culpa ou dolo.

No momento em que está solto, por um relaxamento do flagrante, não é considerado “inocente”, porque estando o processo em andamento, um recurso da acusação pode leva-lo de volta às grades. Seu status de “culpado” ou “inocente” só será verdadeiro, definitivo, no final do processo, com a última decisão, transitada em julgado por não mais permitir recurso, contra ou a favor. Enquanto há recurso pendente, não existe um “criminoso”, “culpado”, “ferreteado”, “estigmatizado”.

Peço mil perdões pela insistência no óbvio, aparentemente necessária porque já ouvi, na TV, até Ministro do Supremo confundindo o significado do termo “culpado”.

Por que essa distinção tão elementar não penetra na cabeça de certos intérpretes? Ou será que os inimigos da prisão em segunda instâncias sabem perfeitamente do significado da palavra mas estão, no fundo, interessados apenas em libertar seus clientes, ou amigos, ou companheiros de ideologia?
Talvez eu esteja sendo imensamente ingênuo escrevendo estas linhas, na hipótese — bem provável —, de que a confusão sobre “culpado” é apenas um artifício hermenêutico para livrar da cadeia uma pessoa que, na opinião do intérprete, não mereça ir para a cadeia, em momento algum. Como não pode confessar que sua opinião deriva de sua simpatia pelo preso, distorce o significado da palavra. 

 A “mera” prisão após condenação em segunda instância — desculpem novamente —, pela letra expressa da Constituição, não é inconstitucional porque, com ou sem ela, o réu ainda não é considerado culpado, podendo continuar recorrendo, embora privado provisoriamente de sua liberdade de locomoção, sem perder seu status de possível inocente. Se depois da prisão, for absolvido no STJ, sem novo recurso da acusação, sairá da prisão, tão “não-culpado” como já era antes, mesmo estando (precariamente) preso.

Dando mera “espiada” na internet, verifiquei que nos EUA, França e Argentina a norma geral é a de que o réu começa a cumprir a pena com sua condenação em segunda instância. E em alguns Estados  americanos o réu começa a cumprir a pena com sua condenação em primeira instância, se o juiz que o sentenciou assim determinar. Lembre-se que os EUA é um país que sempre valorizou o direito constitucional. Não é provável que um “país-fonte” das Constituições  adote tal sistemática por mera ignorância ou sadismo.

Na verdade, o STF, em sua precária mas realista maioria, decidiu, como norma geral, prender o condenado em segunda instância porque nela o processo foi examinado na sua prova e conforme a legislação ordinária, não constitucional. Nossa legislação processual é reconhecidamente permissiva, autorizando um ilimitado número de recursos e medidas assemelhadas que garantem aos criminosos de alto poder aquisitivo retardar o desfecho de uma causa por cinco, dez, ou vinte anos, tramitando, aos socos e barrancos em quatro instâncias. 

Como os criminosos “comuns”, do povão, não podem contratar grandes criminalistas, a comunidade conclui que “existem duas justiças no Brasil”. E a maioria do Supremo, não podendo legislar, modificando as leis, entendeu, com razão, que essa situação depõe contra nossos brios como país justo e civilizado, lembrado de que todos os juízes são remunerados pelo povo, revoltado com a impunidade retratada semanalmente na mídia. Se os processos criminosos contra as grandes figuras terminassem com pouca demora, talvez o STF não tivesse optado pela prisão após a decisão de segundo grau que, como demonstra este artigo não afronta o que está na Constituição.  

A consequência dessa imensa demora — causada pela legislação processual — o processo contra “os grandes” pode acabar prescrevendo. Se isso não ocorrer, a demora permitirá que o trânsito em julgado da sua condenação só ocorra quando o réu já está velho, doente da próstata e do coração, tirando proveito  da legislação penal que o manterá em casa, embora às vezes com tornozeleira. 

Como o legislador não se atreve a cercear o abuso quantitativo dos recursos processuais, a atual maioria da Suprema Corte decidiu acompanhar outras nações com justiça mais realista. 

Em entrevista, no Roda Viva, em março último, Sérgio Moro — pessoa que admiro pelo caráter, competência, urbanidade, e inteligência — entendia que uma emenda constitucional traria tranquilidade ao tema. agora em discussão, que tanto agita o mundo político e os anseios contrários da população, interessada em um tratamento igualitário entre os réus pobres e os poderosos, defendidos pela nata da advocacia que faz o seu papel normal: defender o cliente.

Será difícil, porém, a aprovação dessa emenda, proposta por Moro, porque os parlamentares, mesmo os de ficha limpa, não têm garantia de que futuramente algum ato seu — mesmo “normal” na prática política — possa ser considerado ilegal e até criminoso, tendo em vista o anseio popular de severidade e pureza que varre o país. 

Os políticos, na hora de votar, vão preferir a manutenção da atual redação, aparentemente dúbia, e por isso “boa” para eles porque bastaria um voto a mais, em seu favor, no STF, para livrá-los, por muitos anos, do cárcere provisório ou definitivo.

Na realidade, não seria imprescindível uma modificação da Constituição a respeito da prisão na 2ª instância. Mesmo um preso em flagrante não é um “condenado” pelo auto de prisão em flagrante, porque pode ter havido uma falha formal ou uma falsa aparência de flagrante, mas o conjunto da prova pode comprovar a sua culpa. Seria porém útil uma autorização explícita da Constituição autorizando ou obrigando essa prisão “processual” já na 2ª.instância — após exame final da prova — evitando alternâncias interpretativas conforme a momentânea composição do STF.

A melhor solução, neste grave momento do país, é manter a jurisprudência do STF, mesmo ligeiramente majoritária, evitando jogar na lixeira o prestígio da Justiça. Quase sempre não por culpa dela, a Justiça, mas por culpa de uma legislação doentiamente disfuncional, permissiva, de quase eternização dos processos criminais, bastando o réu querer e ter recursos financeiros para isso.

 O eventual precedente da exceção da prisão, na condenação do ex-presidente, Lula, estimulará dezenas ou centenas de outros interessados em arrancar tornozeleiras. O STF, já afogado em processos, não terá tempo para mais nada. Todos os réus, em todos os processos criminais, pretenderão chegar ao STF, se tiverem condições financeiras, ou obtiverem gratuidade da justiça para isso. Mas o STF, com apenas 11 Ministros, dará conta de milhões de processos criminais?

Nossa legislação processual, tanto no crime quanto no cível, ignora — a clássica tragédia jurídica brasileira, a morosidade — o sábio conselho de Voltaire quando afirmou que, nos assuntos humanos, “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Qual o “perigo” para o réu do colarinho branco, quando, sabendo-se culpado, interpõe dezenas de recursos para ganhar tempo? 
Nenhum. 

Qual a “vantagem” da demora? A possível prescrição de seu crime, o gozo da liberdade e a proximidade dos 70 anos, com as vantagens que a lei penal concede aos presos idosos.

Já disse o suficiente. Cada um conclua como quiser.  
Agradeço a atenção.

(01/06/2019)    

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