Inclusive jurídicas. Fenômeno
incompreensível. Ou a má hermenêutica será deliberada; talvez, em alguns casos,
por motivos nobres?
(Friso que com o texto
abaixo dirijo-me principalmente aos leitores sem formação jurídica, mas
interessados em compreender, em linguagem coloquial, uma discussão que lhes
parece confusa. Não pretendo convencer as altas ou médias esferas jurídicas
porque elas já conhecem o assunto. Talvez elas leiam o artigo só por
curiosidade e, isso ocorrendo, agradeço o esforço e a paciência)
Dias destes, assisti a
uma entrevista na TV em que entrevistador e entrevistado — não menciono nomes
porque respeito ambos, profissionais do Direito de invejável currículo. Eles pareciam
estar de tranquilo acordo sobre uma suposta “inconstitucionalidade” da prisão
do condenado em segunda instância.
Refiro-me à
interpretação do art.5º, inc. LVII da Constituição Federal: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Igualmente
impressionante é que mesmo aqueles praticantes do direito, favoráveis à prisão
do réu após a condenação da segunda instância, em vez de argumentar e insistir
simplesmente nas claras palavras constantes do inciso LVII do art. 5º da CF, gastam linhas e linhas com
considerações morais sobre a impunidade resultante do abuso de recursos
protelatórios, jogando para um distante e incerto futuro — o trânsito em julgado
no STF — a possibilidade de se prender o acusado. Argumentam também com a desigualdade
de tratamento penal entre réus pobres e ricos e com o Direito Comparado,
lembrando que em alguns países do Primeiro Mundo, como os EUA, o réu pode
iniciar a pena com a decisão de primeira instância, se o juiz da causa assim o
determinar.
Atente-se para o que
diz, literalmente, o inciso constitucional em exame. O inciso não afirma que
ninguém poderá ser preso (detido) antes do trânsito em julgado. Diz apenas que
ninguém será “considerado”, “rotulado”, “classificado” como “criminoso” antes
do trânsito em julgado de sua condenação.
Solto, ou preso — tanto
faz —, no decorrer do processo, o acusado ainda não é reconhecido juridicamente,
como “culpado”. Só recebe a pecha, a marca de culpado se não dispõe mais de
recurso previsto em lei, ou se abstém dele, aceitando sua sorte, sua
condenação.
Uma prisão, de qualquer
tipo — em flagrante ou cautelar —, é mero incidente dentro de um processo
criminal em andamento, sem que o processo termine, estando o réu preso, ou
solto. Algumas prisões em flagrante são anuladas, fato corriqueiro, mas o
processo, como um todo, caminha, podendo o réu, eventualmente, ser novamente
preso — havendo motivo para isso —, e depois de novo solto, etc. Esse “entra e
sai” da prisão, não modifica seu status jurídico de homem sem culpa ou dolo.
No
momento em que está solto, por um relaxamento do flagrante, não é considerado “inocente”,
porque estando o processo em andamento, um recurso da acusação pode leva-lo de
volta às grades. Seu status de “culpado” ou “inocente” só será verdadeiro, definitivo,
no final do processo, com a última decisão, transitada em julgado por não mais
permitir recurso, contra ou a favor. Enquanto há recurso pendente, não existe
um “criminoso”, “culpado”, “ferreteado”, “estigmatizado”.
Peço mil perdões pela insistência no óbvio,
aparentemente necessária porque já ouvi, na TV, até Ministro do Supremo confundindo
o significado do termo “culpado”.
Por que essa distinção
tão elementar não penetra na cabeça de certos intérpretes? Ou será que os
inimigos da prisão em segunda instâncias sabem perfeitamente do significado da
palavra mas estão, no fundo, interessados apenas em libertar seus clientes, ou
amigos, ou companheiros de ideologia?
Talvez eu esteja sendo
imensamente ingênuo escrevendo estas linhas, na hipótese — bem provável —, de
que a confusão sobre “culpado” é apenas um artifício hermenêutico para livrar
da cadeia uma pessoa que, na opinião do intérprete, não mereça ir para a
cadeia, em momento algum. Como não pode confessar que sua opinião deriva de sua
simpatia pelo preso, distorce o significado da palavra.
A “mera” prisão após condenação em segunda
instância — desculpem novamente —, pela letra expressa da Constituição, não é
inconstitucional porque, com ou sem ela, o réu ainda não é considerado culpado,
podendo continuar recorrendo, embora privado provisoriamente de sua liberdade
de locomoção, sem perder seu status de possível inocente. Se depois da prisão, for
absolvido no STJ, sem novo recurso da acusação, sairá da prisão, tão
“não-culpado” como já era antes, mesmo estando (precariamente) preso.
Dando mera “espiada” na
internet, verifiquei que nos EUA, França e Argentina a norma geral é a de que o
réu começa a cumprir a pena com sua condenação em segunda instância. E em
alguns Estados americanos o réu começa a
cumprir a pena com sua condenação em primeira instância, se o juiz que o
sentenciou assim determinar. Lembre-se que os EUA é um país que sempre
valorizou o direito constitucional. Não é provável que um “país-fonte” das
Constituições adote tal sistemática por
mera ignorância ou sadismo.
Na verdade, o STF, em
sua precária mas realista maioria, decidiu, como norma geral, prender o
condenado em segunda instância porque nela o processo foi examinado na sua
prova e conforme a legislação ordinária, não constitucional. Nossa legislação
processual é reconhecidamente permissiva, autorizando um ilimitado número de
recursos e medidas assemelhadas que garantem aos criminosos de alto poder
aquisitivo retardar o desfecho de uma causa por cinco, dez, ou vinte anos,
tramitando, aos socos e barrancos em quatro instâncias.
Como os criminosos
“comuns”, do povão, não podem contratar grandes criminalistas, a comunidade
conclui que “existem duas justiças no Brasil”. E a maioria do Supremo, não
podendo legislar, modificando as leis, entendeu, com razão, que essa situação
depõe contra nossos brios como país justo e civilizado, lembrado de que todos
os juízes são remunerados pelo povo, revoltado com a impunidade retratada
semanalmente na mídia. Se os processos criminosos contra as grandes figuras
terminassem com pouca demora, talvez o STF não tivesse optado pela prisão após
a decisão de segundo grau que, como demonstra este artigo não afronta o que
está na Constituição.
A consequência dessa
imensa demora — causada pela legislação processual — o processo contra “os
grandes” pode acabar prescrevendo. Se isso não ocorrer, a demora permitirá que
o trânsito em julgado da sua condenação só ocorra quando o réu já está velho,
doente da próstata e do coração, tirando proveito da legislação penal que o manterá em casa,
embora às vezes com tornozeleira.
Como o legislador não se atreve a cercear o
abuso quantitativo dos recursos processuais, a atual maioria da Suprema Corte
decidiu acompanhar outras nações com justiça mais realista.
Em entrevista, no Roda
Viva, em março último, Sérgio Moro — pessoa que admiro pelo caráter,
competência, urbanidade, e inteligência — entendia que uma emenda
constitucional traria tranquilidade ao tema. agora em discussão, que tanto
agita o mundo político e os anseios contrários da população, interessada em um
tratamento igualitário entre os réus pobres e os poderosos, defendidos pela
nata da advocacia que faz o seu papel normal: defender o cliente.
Será difícil, porém, a
aprovação dessa emenda, proposta por Moro, porque os parlamentares, mesmo os de
ficha limpa, não têm garantia de que futuramente algum ato seu — mesmo “normal”
na prática política — possa ser considerado ilegal e até criminoso, tendo em
vista o anseio popular de severidade e pureza que varre o país.
Os políticos, na hora
de votar, vão preferir a manutenção da atual redação, aparentemente dúbia, e
por isso “boa” para eles porque bastaria um voto a mais, em seu favor, no STF, para
livrá-los, por muitos anos, do cárcere provisório ou definitivo.
Na realidade, não seria
imprescindível uma modificação da Constituição a respeito da prisão na 2ª instância.
Mesmo um preso em flagrante não é um “condenado” pelo auto de prisão em
flagrante, porque pode ter havido uma falha formal ou uma falsa aparência de
flagrante, mas o conjunto da prova pode comprovar a sua culpa. Seria porém útil
uma autorização explícita da Constituição autorizando ou obrigando essa prisão
“processual” já na 2ª.instância — após exame final da prova — evitando alternâncias
interpretativas conforme a momentânea composição do STF.
A melhor solução, neste
grave momento do país, é manter a jurisprudência do STF, mesmo ligeiramente
majoritária, evitando jogar na lixeira o prestígio da Justiça. Quase sempre não
por culpa dela, a Justiça, mas por culpa de uma legislação doentiamente disfuncional,
permissiva, de quase eternização dos processos criminais, bastando o réu querer
e ter recursos financeiros para isso.
O eventual precedente da exceção da prisão, na
condenação do ex-presidente, Lula, estimulará dezenas ou centenas de outros
interessados em arrancar tornozeleiras. O STF, já afogado em processos, não
terá tempo para mais nada. Todos os réus, em todos os processos criminais,
pretenderão chegar ao STF, se tiverem condições financeiras, ou obtiverem gratuidade
da justiça para isso. Mas o STF, com apenas 11 Ministros, dará conta de milhões
de processos criminais?
Nossa legislação
processual, tanto no crime quanto no cível, ignora — a clássica tragédia
jurídica brasileira, a morosidade — o sábio conselho de Voltaire quando afirmou
que, nos assuntos humanos, “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Qual o
“perigo” para o réu do colarinho branco, quando, sabendo-se culpado, interpõe
dezenas de recursos para ganhar tempo?
Nenhum.
Qual a “vantagem” da demora? A
possível prescrição de seu crime, o gozo da liberdade e a proximidade dos 70
anos, com as vantagens que a lei penal concede aos presos idosos.
Já disse o suficiente.
Cada um conclua como quiser.
Agradeço a
atenção.
(01/06/2019)
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