quarta-feira, 29 de maio de 2019

Adélio Bispo não é inimputável. É necessário recorrer.


Para início de conversa, informo que discordo veementemente da política externa de Jair Bolsonaro. Não sou seu seguidor mas espero que ele, homem bem-intencionado — no estilo dele —, paulatinamente, melhor informado sobre a realidade mundial, mude de orientação bem antes do término de seu governo. Se possível com outro ministro das relações exteriores.

O que digo abaixo não vem propriamente de um “bolsonarista”. Diria o mesmo, fosse qual fosse o político esfaqueado por um homem de inteligência mediana que cometeu um crime, sabendo perfeitamente o que fazia e que logo, logo, poderá estar totalmente livre; “curado” e até paparicado como herói nacional pelos milhões de adversários da vítima. Parabenizo, meio a contragosto, a habilidade técnica, a inteligência profissional, de seus advogados conseguindo a façanha de uma quase impunidade, livrando o cliente, preso em flagrante, da cadeia e concedendo-lhe muito mais que os quinze minutos de fama.

Dito isto, abordemos a decisão que me parece absurda, sob o prisma da sanidade mental.  

Não é aconselhável confiar plenamente em conclusões, mesmo unânimes, de psiquiatras e outros profissionais que estudam a mente.  Não digo isso contestando a honestidade e especialização dos peritos e assistentes técnicos, indicados pela acusação e pela defesa de Adélio Bispo de Oliveira, que o examinaram para saber se tinha plena consciência do que fazia quando desferiu facadas no candidato, quase o matando.

Os peritos concluíram que Adélio é inimputável, isto é, incapaz — por doença ou desenvolvimento mental incompleto —, de entender a ilicitude de um ato, e por isso isento de pena. Não conheço tais peritos, nem mesmo por referências, mas é de se presumir que são profissionais bem qualificados nessa área de conhecimento já que nomeados ou indicados para um caso de especial importância.

Essa decisão judicial de primeira instância, que envia Adélio Bispo para tratamento psiquiátrico “até vinte anos” — podendo sair muito antes, se já mentalmente “curado” —, precisa ser revista, urgentemente, porque afronta o juízo comum que, mesmo sendo comum, de “leigo”, não especializado, justamente por isso merece apoio, considerando que certas especializações podem ensejar conclusões menos conforme com a realidade. O cérebro é ainda uma caixa de surpresas, até mesmo para os profissionais da área. Uma junta composta de psiquiatras diferentes poderia concluir de maneira oposta sobre a sanidade mental de Adélio Bispo.

Enviado, à uma confortável instituição, para ser tratado, ele terá avaliações periódicas, podendo receber alta. Com a alta, será liberado retornando à sua vida como se não tivesse acontecido nada. Isso poderá ocorrer pouco tempo depois da internação. Os “vinte anos”, como já disse, é o tempo máximo possível de internação. Se daqui a um ano ou dois, ou menos, ele estiver livre de sua “mania” — algo muito subjetivo —, ele estará livre.

Qual a “doença” de Adélio Bispo? Seu nome técnico é “transtorno delirante persistente”. Isto é, ele não rasga dinheiro, não sai nu pelas ruas, tem inteligência média, sabe usar celulares, planejar qualquer coisa — inclusive um assassinato —, mas julga-se enviado por Deus — diz ele, impossível de provar — para eliminar um ser maléfico, Bolsonaro. Por esse critério, todos os terroristas — islâmicos e não islâmicos — não poderiam ser condenados à prisão porque também seriam vítimas de um transtorno delirante, o mesmo acontecendo com os“serial killers”, que matam prostitutas e pessoas assemelhadas, ou pessoas que desagradam o matador.

A se pensar em livrar da prisão qualquer “delirante persistente”, Hitler não precisaria cometer suicídio porque seria absolvido liminarmente, tendo em vista que suas ideias loucas — mentiras sistemáticas, domínio mundial, milênio do nazismo, etc. e homicidas — eram muito mais persistentes e abrangentes — contra judeus, ciganos, homossexuais, comunistas — que as ideias carregadas por Adélio Bispo, que tentou matar apenas uma pessoa. Hitler mereceria, com essa desculpa psiquiátrica, com muito mais razão, ser absolvido pela história, pouco interessando que sua política tenha provocado uma guerra que custou cerca de 50 milhões de vida, arrasando inclusive sua amada Alemanha.

Stálin também não poderia ser censurado por mandar matar milhões de russos — a tiros ou via frio e fome no Gulag —, porque não obedeciam suas decisões. O mesmo se diga de Mao-tsé Tung, com sua política de eliminação da velha ordem. Milhões de chineses morreram por sua causa. Sérgio Cabral, ex-governador do Rio, recentemente confessou que cometeu desvios milionários porque estava dominado pela ganância, sem forças para dela se livrar. Poderia ele se livrar das suas condenações usando um laudo psiquiátrico que o diagnosticava com um “transtorno delirante persistente”, o “vício por dinheiro”, do qual poderia ser tratado numa instituição psiquiátrica?

Vou anexar, linhas abaixo, um caso verídico que fez parte de um artigo meu, já publicado, com o título de “Crimes e soberania”. Para exemplificar a minha tese de que a soberania ilimitada das nações, inclusive nas suas práticas judiciárias, tem o seu lado negativo, contei um crime que ocorreu em Paris, em 1981, em que um jovem japonês muito culto e inteligente, escritor, Issei Sagawa, matou, “estuprou” ­— na verdade “violou o cadáver” — de uma bonita estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. O japonês estava em Paris, custeado por seu pai, para estudar e elaborar uma tese erudita sobre a influência japonesa na literatura francesa.

Sagawa fez o que fez porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —  recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente muito menos que a holandesa. A moça, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam realizando. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a vazar pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica.

Como já disse, Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que o filho fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania.

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

O caso acima comprova que a fronteira entre o que é bizarro,  estranho e mau  — o comportamento de Adélio Bispo — e a doença mental diagnosticada pelos psiquiatras que assinaram o laudo pericial — aceito pelo juiz — é muito tênue, recomendando uma “segunda opinião” a ser feita por outra equipe de psiquiatras. De preferência sem contatos pessoais entre as duas equipes, evitando possíveis influências entre colegas da mesma profissão. Do contrário, a população brasileira mais atenta ficará revoltada se Bispo sair — solto e ovacionado herói —, sair da clínica daqui a menos de dois anos. Muitos, em busca de notoriedade, poderão pensar na fama igual, tentando matar um político importante, talvez, de novo, o próprio Bolsonaro, graças às vaguezas ou incertezas teóricas sobre qual o limite da sanidade humana.

(4-12-2006)


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