Cada vez com maior franqueza — com verdades e meias verdades
—, políticos, jornalistas e advogados investem contra o Poder Judiciário e o
Ministério Público. Eles têm razão apenas com relação a alguns “penduricalhos”,
sem bom fundamento, que procuram contornar o “teto” salarial imposto aos
ministros do Supremo Tribunal Federal, no valor bruto, nominal, de R$33.700,00.
A “suculenta” cifra sugere nababesca paga mensal, como se
ela viesse quase inteirinha para o patrimônio do juiz, ou do promotor, vez que
ambos costumam ser igualmente remunerados.
Essa invejável remuneração máxima sofre, porém, um forte
regime de emagrecimento já “na boca do caixa”, antes dela chegar às mãos dos
magistrados. Vejamos, se esse teto salarial é realmente exagerado.
Esclareço que na demonstração abaixo levo em conta apenas o
ganho mensal dos juízes que mais recebem no país, os, digamos, “marechais”
togados — onze ministros do Supremo Tribunal Federal. Os demais magistrados, a “tropa”
— cerca de 15 mil “soldados” de primeira instância —, ganham progressivamente
menos, conforme os degraus remuneratórios da carreira.
Vejamos o que acontece com a mais alta remuneração do
magistrado brasileiro. Antes, porém, para quem não sabe, uma rápida explicação
sobre a carreira dos juízes.
Magistrados de carreira começam — após difíceis concursos
públicos de títulos e provas, em geral prestados mais de uma vez — como juízes
substitutos de primeira instância. Frise-se que muitos candidatos desistem de
prestar concurso, após várias tentativas mau sucedidas. Os aprovados, subindo
gradualmente na carreira, de entrância para entrância, são forçados a mudar de
residência, a cada promoção, porque o juiz é obrigado a residir na comarca em
que trabalha. Isso, obviamente, é um incômodo para ele e sua família, o que
explica porque muitos bacharéis, bem preparados e relacionados, prefiram
advogar no conforto dos grandes centros, ou nas cidades onde cresceram.
Convém também lembrar que muitos juízes se aposentam sem
chegar à segunda instância, onde ser transformariam em desembargadores. Não
chegando ao ápice da carreia, sua remuneração será inferior à do ministro do
STF.
A propósito da chegada ao “topo”, é um tanto paradoxal que
na atual composição do STF, dos onze ministros, só três deles se tornaram
magistrados após um concurso público de ingresso: o decano Celso de Mello — que
ingressou em 1º lugar no Ministério Público de São Paulo; Rosa Weber, aprovada
com distinção na Justiça do Trabalho, e Luiz Fux, que passou, também em 1º
lugar, em concurso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Os oito
Ministros restantes são oriundos da advocacia, do magistério, ou do Superior
Tribunal de Justiça, onde foram juízes, mas não de carreira, isto é, não concursados.
Estavam no STJ por força do quinto constitucional. Trabalhavam antes como
advogados ou promotores de justiça, escolhidos pelas respectivas classes para
“oxigenar” os tribunais com gente de fora da magistratura, com diferente visão
dos fenômenos sociais.
Digno de nota é que, não obstante o conjeturável “calo
profissional” do promotor de justiça e do advogado, tais juízes — não de
carreira —, no geral têm se revelado bons julgadores, comprovando a capacidade
de adaptação do ser humano a novas profissões. Se houver algum resíduo de
influência da profissão anterior, essa influência vai, com o tempo se
enfraquecendo, ainda que possam, talvez, não desaparecer inteiramente. O que
nem sempre é um mal. Mais difícil de modificar é o temperamento, não a profissão
exercida antes.
A propósito dessa maior proporção de não-concursados no STF,
convém alertar os juízes de carreira — aqueles com ambições judiciais mais
altas — que não se limitem “apenas” a trabalhar incansavelmente, julgando o
máximo de processos possível, gastando a totalidade de seu tempo e energia no
trabalho de ler processos e decidir de forma justa, em estilo direto e simples;
sem “adornar” seu trabalho com desnecessárias citações eruditas. “Curto e grosso”,
no bom sentido, mas certeiro, embora sem brilho acadêmico. A preocupação em ser
invariavelmente “brilhante”, implica em retardar a produção maciça de decisões
em um país que exagera na corrida aos tribunais. Chega a ser doentia a
quantidade de reclamações trabalhistas, na esperança de “ganhar algum” na
conciliação. E se nada ganhar, por total falta de razão, o reclamante nada tem
a perder, contrariando o sábio conselho de Voltaire: “A vantagem deve ser igual
ao perigo”.
Esse trabalho, algo
anônimo, do juiz “pé de boi”, infelizmente não impressionará o mundo político
na hora de escolher de nomes para ocupar vagas nos Tribunais Superiores. É
aconselhável, quase imprescindível, fazer cursos no Exterior, escrever livros,
artigos, aprender novas línguas, lecionar, frequentar mestrados, doutorados e
academias. Transcrever, nas suas sentenças, doutrinas estrangeiras e,
finalmente — cereja no bolo —, ser sociável, cultivar amizades importantes. Não
só ampliando seus conhecimentos jurídicos — e também de Economia —mas
aumentando a “visibilidade”, sem a qual nunca será lembrado no mundo político,
ou jurídico-político. Modesto, será considerado “um juiz provinciano”. Em suma,
sem “vitrine”, seu futuro não será “brilhante”. Será apenas o referido “pé de
boi, esforçado, até bom juiz, mas provavelmente de não muitas luzes”. Não lhe
bastará ser infatigável abelha, precisa também ser vagalume.
Ocorre que essa “vitrine” custa dinheiro. Viagens, estadias,
cursos, aulas particulares não saem de graça. Daí a necessidade do juiz ganhar
bem.
Pelo visto, a mídia acha que todo juiz tem a obrigação de
fazer voto de pobreza. Ele, na quase totalidade, não faz voto nem de pobreza,
nem de riqueza, mas acha-se com o direito de manter seus filhos — convém ter no
máximo dois, e olhe lá... — em escola particular, geralmente cara; contratar
plano de saúde que dê cobertura total à família inteira; pagar serviço
odontológico de qualidade, etc. Enfim, manter um padrão de vida de classe média,
mas “média do meio”, isto é, nem média baixa nem alta (rica).
Se o juiz passa a viver no estilo de São Francisco de Assis
— malvestido, parecendo um “pobretão” —, sabe o leitor como será ele visto pela
população em geral? Como um “juizéco”, ou “funcionariozinho mequetrefe”, tal a
automática e popular associação de ideias entre “dinheiro ” e prestígio
profissional. O taxista, o açougueiro, o cozinheiro, o PM, vendo o juiz
malvestido entrando no seu carro velho logo pensa: “Esse cara não pode ser uma
autoridade importante... Se fosse, não ganharia tão pouco. Por que levá-lo
muito a sério?”
Julgará o juiz como hoje julga o professor primário ou
secundário, pessimamente remunerado, até insultado ou a agredido na sala de
aula. Quando eu entrei na magistratura a remuneração do professor não era muito
diferente da do juiz. Veja-se hoje a diferença e o desrespeito dos alunos a
seus professores. A má-remuneração deixará de atrair os mais preparados para a
magistratura. Decadência à vista.
O arrogante
milionário, chefão do tráfico de entorpecente, mesmo preso, vendo uma foto do
juiz que o condenou, será mais severo: — “Como? Foi esse mendigo, esse bos...,
esse inseto — incapaz de ganhar dinheiro como homem de verdade —, que me
condenou?! Que ingrato! Será que ele não sabe que só continua vivo porque eu
não decidi o contrário, mesmo estando atrás das grades”?
Voltando ao ganho dos ministros do STF, o Imposto de Renda,
descontado na fonte, de 27,5%, “come” R$9,267,50. A esse desconto some-se o
percentual de 11% (R$3.707,50) para
efeitos previdenciários, mesmo que o magistrado já esteja aposentado (?!).
Enfim, resta o ganho mensal, desfrutável, de R$20.725,50.
Ocorre que quanto mais velho o indivíduo, mais alta a
mensalidade cobrada pelos planos de saúde. Para não ter que depender do SUS —
talvez deitado em corredores de hospitais, sujeito a infecção hospitalar —, ele
vê-se forçado a contratar planos de saúde que deem cobertura total, para todas
as doenças.
Falei em cobertura?
Nem sempre ela funciona inteiramente. Os médicos mais prestigiados raramente
atendem aos segurados dos planos de saúde, porque a remuneração deles, nos
planos, é muito baixa. Só atendem com consultas particulares, cobrando entre
seiscentos e mil reais cada consulta.
Tenho conhecimento próprio do assunto. E o “reembolso” é mínimo, ridículo. No
meu plano de saúde, o reembolso não chega a cento e vinte reais, mesmo sendo a
consulta próxima dos mil reais.
Por que, mesmo assim,
há necessidade de um plano de saúde? É que corpos humanos antigos, ainda
caminhando, têm o mau costume de manifestar os mais variados sintomas, a exigir
exames e mais exames, com tratamentos sofisticados. Como os juízes, na ativa ou
aposentados, na sua maioria, são conservadores em termos conjugais, o mais
comum é que, idosos, tenham como esposas senhoras igualmente idosas, que também
merecem uma boa cobertura de saúde, caríssimo.
Como mero exemplo, aposentado, pago à SulAmérica,
mensalmente, a quantia de R$6.959,76, pelo casal idoso. Resta, portanto, como
quantia “gastável”, o valor de R$13.765,74. E não seria justo, nem cristão, que
os magistrados fossem aconselhados — por mero cálculo financeiro —, a trocar
periodicamente de esposa, casando com mulher nova, com isso pagando mensalidade
menor no plano. Trocas semelhantes costumam agravar a situação do romântico tardio,
porque esposa desprezada fica com direito de receber uma pensão bem superior ao
lucro oriundo da diminuição da despesa com troca de mulher idosa por mulher
nova. E se o magistrado foi imprudente a ponto de ter que pagar duas pensões
alimentícias, seu destino financeiro será horrendo. Viverá angustiado, suado,
pendurado em bancos, tendo que lecionar — a única atividade permissível ao juiz
em atividade — e apertar o cinto continuamente na. Mas, com o número excessivo
de processos aguardando julgamento, é até impatriótico o juiz dedicar horas
preciosas preparando e dando aulas. Quanto mais aulas, menos sentenças.
Outra despesa, praticamente inevitável, que vai roendo o
vistoso “teto salarial do STF”: a contratação de uma empregada doméstica
mensalista. Um salário razoável para um doméstica, de R$1.300,00 transforma-se
em R$2.000,00, considerando os encargos de INSS,FGTS, 13º, etc. Restam,
portanto, R$11.765,74.
Muitos magistrados moram em condomínios. Tendo em vista
despesas condominiais e frequentes “extras” no prédio, pagando, digamos uma despesa
mensal de R$2.000,00 mensais, sobram R$9.765,74 Agora, meus amigos, se ele
tiver filho ou neto em faculdade particular — nem todos podem entrar na USP — o
que sobra ficará próximo, ou abaixo, do ganho de um taxista com carro próprio.
Talvez, trabalhando como “uber”, conseguirá sobreviver sem os bancos.
O custo mensal em uma eventual faculdade particular de
medicina, mero exemplo, em outra cidade, não sai por menos de R$7.500,00,
incluída a despesa com estadia. Se forem dois os filhos nessas faculdades, terá
que cobrir o rombo com empréstimos bancários.
Magistrados não se locomovem de bicicleta. Usam, ou deveriam
usar, automóveis particulares. Além disso, têm o mau hábito de comer, vestir, e
todas as despesas inevitáveis nas grandes cidades. O que sobra, raramente
“sobra”, como comprova a situação de centenas ou milhares de juízes endividados
em bancos.
No teto salarial do funcionalismo há muita demagogia.
Prefeitos e governadores, até de estados importantes, recebem salários que só
podem ser considerados como “simbólicos”. Esse simbolismo é esperto e
premeditado. Permite que o governador, quando nega aumento ao funcionário de
alta especialidade sempre pode dizer, escorado na hipocrisia remuneratória: “—
Como?! Você, mero engenheiro nuclear, quer ganhar mais do que eu, governador?!”
Se, porém, a justiça brasileira fosse rápida e eficaz a
população, muito grata, não faria críticas quanto à sua remuneração. Até faria
questão de que os magistrados recebessem um salário superior ao atual. Isso
porque a população, frustrada com conflitos de toda ordem, está com uma sede
acumulada de justiça, que não pode ser excessivamente lenta. E por que ela não
é nem rápida, nem eficaz?
A resposta é óbvia: porque nossa legislação processual é
disfuncional, elaborada por quem não nunca foi juiz. Cheia de brechas, até de
redação. Para vedar essas brechas a magistratura deveria manter semanal
vigilância sobre o que ocorre no Congresso. É preciso impedir a formação do ovo
da cobra entes que ela se transforme em jiboia.
Vendo que um determinado projeto vai — por ignorância ou
má-fé —, retardar ou embaralhar o trabalho da justiça, associações de classe da
magistratura teriam que lutar abertamente — não pela via judicial, mas pela mídia,
ou lobby — para cancelar a própria iniciativa, ou sua redação, tentando
convencer o legislador de que ele está no caminho equivocado. Mero
esclarecimento, ou sugestão — dada por associação de classe —, antes que a
bobagem se transforme em lei, difícil de mudar. Analogicamente, se um
parlamentar apresenta uma lei ditando regras sobre como um cirurgião deve
operar um coração enfartado, ou um canceroso ser tratado do tumor, e essa lei
passar, imagine-se o trabalho dos médicos para exercer a sua profissão no modo
certo, mas ilegal. Para salvar a vida do paciente, terão que infringir a lei.
Não se prega, aqui, o direito do juiz de decidir contra a
lei. Trata-se apenas de esclarecer o
legislador, mostrando a ele que o que pretende legislar é daninho, ou confuso.
Se a bobagem se transformar em lei, será preciso o juiz, em uma demanda,
julgá-la inconstitucional, utilizando, porém, contorcionismos interpretativos. Pasme-se,
mas nenhuma lei pode ser anulada “só” por ser estúpida, burra, contraditória,
demagógica ou imprevidente. Tem que ser “inconstitucional”. Além disso, é
preciso que alguém entre em juízo com um pedido formal de declaração de
inconstitucionalidade, o que nem sempre acontece. Para quem não sabe, o
Judiciário só age por provocação.
Os juízes, que tanto estudaram, pretendem continuar sendo
“classe média, média”; não “média, baixa”. Constataram que, com suas despesas
mensais familiares — todas normais na classe média, como exemplificadas acima
—, só escaparão de um progressivo endividamento bancário criando os tais
“penduricalhos”. Sem eles, teriam que tirar filhos de escola particular, usar
contratar planos de saúde mais restritivos na cobertura, etc.
A Constituição Federal não estabelece qual o “quantum” do
“teto”. Diz apenas que ele não pode ser ultrapassado, seja qual for o argumento.
O assunto, portanto é econômico e político, e assim deveria ser tratado.
A única solução para esse problema, que desprestigia
enormemente um Poder, o Judiciário — que, sendo desarmado, depende muito da
forma como é encarado pela população —, está na criação de uma Comissão
Especial, dos três Poderes, na qual será estudada uma elevação do vigente
“teto” com o simultâneo cancelamento de todos os “artifícios” remuneratórios
atualmente pagos aos magistrados em atividade. Se necessário, por economia
estatal — em situações emergenciais —, cancele-se o direito de conversão de
férias não gozadas em indenização, ela valendo apenas para efeito de
aposentadoria.
Devido à extensão deste artigo, não menciono quais seriam as
alterações processuais saneadores do grande mal da morosidade. Posso apenas
garantir ao leitor que a morosidade da nossa justiça é muito mais causada pela
disfuncional, ingênua e vesga legislação do que pela suposta preguiça de nossos
juízes. Há muita coisa, na justiça, que não passa de ritual inútil.
A mídia parece ignorar que o juiz — na área processual,
principalmente —, é um escravo da lei. Ele frequentemente tem que trabalhar
como que constrangido por uma “tornozeleira” mental. Não pode suprimir um
caminho procedimental que, mesmo sendo propiciador de chicanas, está na lei
processual. E não concluam, sem mais detalhado exame, que o juiz brasileiro
ganha mais que os juízes dos países de Primeiro Mundo. Lá, como cá, há ganhos
embutidos ou omitidos na forma de resumir o ganho anual de seus juízes. É uma
longa estória, que não segue um único padrão.
Grato pela paciência de ler o artigo inteiro. Se não leu,
agradeço pelo menos a curiosidade da “espiada’.
20/08/2017
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