Embora alguns juristas possam julgar desnecessárias tais dez
medidas — alegando que já estariam presentes, esparsamente, na legislação, quando
“bem interpretada” — o Direito é uma ciência tão sobrecarregada de valores morais
e políticos — no bom e no mau sentido — que melhor será, poupando infindáveis
discussões, que as referidas “10 medidas” explicitem o que é, ou não, conduta
legalmente criminosa. Haverá, com elas, doravante, de forma mais unificada,
pelo menos uma grande economia de tempo e elucubração quando as tais medidas
foram discutidas nos tribunais. Nem tudo, nas “dez” está claramente previsto
das variadas leis atualmente em vigor.
Tenho, porém, uma crítica, ou pelo menos séria dúvida, sobre
a 1ª Proposta do M. Público, no item “testes de integridade”.
Quando aplicados, esses testes, em experientes policiais,
civis ou militares, ou funcionários públicos em geral, será mais tolerável sua
aplicação porque pelas suas funções eles sabem perfeitamente o que é “legal” e
o que é “criminoso”. ´
Quando, porém, esses testes são aplicados a candidatos
leigos procurando emprego na atividade privada — em uma fábrica ou escritório,
por exemplo —, aí o teste pode se transformar em injustiça, cometida contra um
cidadão medianamente honesto, até ingênuo, que foi induzido, ou estimulado, a
cometer um ato contra o patrimônio, imaginando que agindo “espertamente” não
estaria contrariando “as práticas ocultas” vigentes e aceitáveis, nesse novo
emprego.
Por exemplo, um capataz ou funcionário de Recursos Humanos
de uma empresa, interessado em eliminar estranhos, candidatos a uma vaga —
porque pretende colocar um parente nessa função —, pode sutilmente induzir os
candidato “de fora” a cometerem a um pequeno furto, dando-lhes a entender —
nunca explicitamente, claro — que tais pequenos furtos são usuais, rotineiros, toleradas pela empresa, que não se preocupa
com “coisinhas”, e mesmo seus altos executivos praticam tais desvios.
O “Zé Mané”, meio bobão, precisando demais do emprego e
vindo talvez de um “lar” permanentemente atormentado pelas necessidades da
sobrevivência, pode, no “teste”, fazer algo errado supondo que com isso estaria
apenas “se enturmando” com os futuros colegas no novo ambiente, supostamente mais
tolerante. Não lhe “ficaria bem”, pensa, agir como um pretensioso “linha dura”,
querendo parecer moralmente superior a seus futuros colegas. Sentindo-se à
mercê do funcionário de Recursos Humanos, para sua aceitação, ou não, no
emprego, pensa que seria mais sábio “dançar conforme a música”, ou agir segundo
o adágio: “Quando em Roma, aja como os romanos”. Nessas circunstâncias, haveria
uma forma de injustiça no teste. Mais adequado seria que toda firma afixasse
cartazes, no seu recinto lembrando que “Seja honesto. Você está sendo filmado e
avaliado sem que você o perceba”, ou algo do gênero.
Quem acompanhou, pela mídia, relatos dos escândalos
descritos no Mensalão e na Lava Jato deve ter concluído que inúmeros
funcionários de alto escalão podem ter cometido ilegalidades, talvez
relutantemente, em bancos e empresas governamentais e particulares —
integrantes do “esquema” —, porque, se se recusassem a praticá-las, seriam
malvistos e dispensados das funções, por representarem “um perigo”: —“Demitam-nos.
São ‘Caxias’ demais. Fanáticos! Possíveis delatores!”
Uma segunda crítica contra o “Pacote saneador” está na
criminalização do “Caixa 2” doado, no passado, aos partidos, para campanhas
políticas. Não só pelo fato “rasteiro”, jurídico, de a lei penal não poder
retroagir, mas porque toda lei, ao ser editada, não deve ignorar totalmente o “meio
ambiente” moral do país onde será aplicada.
Vários anos atrás, um amigo meu, engenheiro, sócio de uma
empresa especializada em obras públicas, de médio ou quase-médio porte — não
era nenhuma das mencionadas nas denúncias mais recentes — contava-me que em
período pré-eleitoral havia um inevitável prejuízo: receber políticos e
candidatos solicitando doações para a “campanha”. Até ex-governadores às vezes
apareciam. E o valor de tais “doações voluntárias” não eram tímidas. Se as
palavras pudessem ser submetidas a um raio-x das intenções, a chapa da conversa
mostraria que “sem doação, não haveria novos contratos”. — “E aí?”,
perguntava-me o engenheiro. “Sem novos contratos eu e meus sócios teríamos que
fechar a empresa ou mudar penosamente para outras atividades de engenharia,
algo sempre problemático. Por isso dávamos o que era possível dar. E não
podíamos dar tudo porque provavelmente outros partidos também apareceriam, como
sempre acontecia. E tínhamos que doar, porque as eleições sempre têm uma certa
imprevisibilidade.
“Caixa 2” é sinônimo de dinheiro não contabilizado;
filosoficamente um crime, mas até recentemente, antes da Lava Jato, uma
infração “preponderantemente tributária”, não penal; “não-cadeia”, embora a
distinção teórica seja objeto de discussão. Por isso, penso que por razões
jurídicas — a lei sempre regula o futuro, não o passado — e também
sociológicas, minha modesta opinião é no sentido de que a criminalização só
deve ocorrer sobre fatos posteriores à data da nova lei dispondo sobre essa
matéria. Pode a Fazenda cobrar, civilmente, o que considera ter sido sonegado,
mas sem encarceramento ou outras medidas de Direito Penal, aplicáveis a fatos
futuros.
Há um tanto de hipocrisia, nessa história de punir
criminalmente, a não contabilização de certos ganhos. Quando, em São Paulo,
lembro-me perfeitamente, começaram a vender computadores em larga escala, era
comuníssimo — em todas, todas, as profissões, sem exceção — existir a escolha
entre pagar mais caro pelo computadores com nota fiscal; ou mais barato, sem
nota fiscal. Obviamente, os aparelhos mais baratos, sem nota, eram produto de
contrabando ou sonegação de algum tributo. Gente respeitável fazia isso sem
peso na consciência. Era “normal”.
Terminado o tratamento do dentista, na hora de dar o recibo,
o profissional perguntava: — “Com ou sem recibo?” Se o cliente queria pagar
menos — e penso que 95% assim preferiam— seu desembolso era bem menor. E penso
que isso ocorria também com médicos e demais profissionais liberais. Lembro-me
do relato feito por um “homem do direito”, muito competente, que, mal se
aposentou, disse-me ter sido convidado para trabalhar em uma importante empresa
privada, frisando que receberia em dólares, sem precisar pagar imposto de renda.
Alguns juristas faziam assim, com seus pareceres.
Errado,
juridicamente, claro, mas essa era a realidade que vigorou por décadas no nosso
país. Somente com a revolução da Lava Jato é que esse erro de procedimento
pressionou a opinião pública no sentido de levar mais a sério, até penalmente,
a obrigação de pagar tributos, mesmo julgando que o serviço prestado pelos
governos está muito aquém do que “arranca” — é a palavra certa — dos
contribuintes “certinhos”.
Penso que, com a futura criminalização do caixa-dois, o
Brasil vai melhorar, ética e economicamente. Se, porém, ela tiver efeito
retroativo, esse efeito poderá ser julgado inconstitucional, como isso
enfraquecendo um pouco, pelo excesso, um belo esforço para moralizar o país.
Como disse, de início, apoio as “Dez Medidas contra a
corrupção”, com as pequenas restrições acima mencionadas.
(19-11-2016)