Não obstante a nossa aparente “total” liberdade de opinião, na mídia e na internet, essa liberdade é fictícia — mesmo quando exercida sem abuso — devido a uma possível e cômoda ação de “indenização por dano moral”, movida por quem errou, sabe que errou, continua errando mas pretende silenciar, com assustadora ameaça econômica, qualquer crítica, mesmo honesta, de seu agir culposo ou doloso.
Assim como pode haver abuso na liberdade de imprensa pode ocorrer também abuso na propositura de tais ações cobrando indenização por ofensa à sua honra, reputação, sensibilidade e sentimentos assemelhados.
O presente artigo sugere uma modificação legislativa que funcionaria como desestímulo para tais ações quando elas visam apenas intimidar o réu —, jornal, jornalista, revista, rádio, televisão e opinião desfavorável de qualquer modo dirigida ao público em geral. Ao mesmo tempo, essa lei, aqui sugerida, teria o efeito colateral de desestimular, na mídia, críticas desnecessariamente ácidas, com ofensas pessoais que aproveitam a oportunidade da crítica — veraz — para insultar e desmoralizar a pessoa ou entidade criticada. A tentação do o abuso é uma constante na história do Direito. Não é raro que a invocação de um direito venha contaminada com o vírus do abuso.
Atualmente, no Brasil, conforme a posição social, econômica, institucional ou política da pessoa criticada — inclusive a jurídica —, uma notícia ou opinião desfavorável contra ela, mesmo procedente, pode se tornar um pesadelo para o jornalista ou articulista. O criticado pode mover uma pesada ação de indenização alegando ter sofrido dano moral. Ação que pode demorar vários anos, principalmente quando o criticado sabe que o crítico tem razão mas “precisa ser silenciado a qualquer custo”. Nesses casos, quanto mais tempo demorar a demanda, melhor para o criticado — apesar de figurar como Autor no processo — porque sua verdadeira intenção é tirar o assunto do noticiário.
Um detalhe jurídico-processual que facilita a intimidação de jornalistas e críticos em geral — mesmo mentalmente honestos — está na permissão de o Autor da ação dar à causa um valor mínimo, simbólico, como, por exemplo, R$1.000,00, deixando “a critério de Vossa Excelência (o juiz cível) fixar o valor da indenização”. Esse “valor simbólico” representa uma enorme vantagem psicológica para o criticado, Autor da ação, porque caso ele perca a demanda, sua condenação pela sucumbência será mínima. Isso estimula o abuso de quem errou mas não quer perder dinheiro quando a justiça finalmente decidir que o jornalista ou articulista nada fez de errado quando deu uma notícia ou opinião.
Se o juiz da causa, pela legislação atual, concluir que a crítica foi tolerável, ou justa, sem insultos, ele julgará a ação improcedente e condenará o soi disant “ofendido” Autor, a pagar as custas do processo e honorários advocatícios entre 10% e 20% do valor dado a causa —, que pode ter apenas um valor simbólico.
Alguém dirá que a “litigância de má-fé” pode ser aplicada, nesse caso, punindo com uma multa, a critério do juiz, o criticado melindroso que iniciou a ação. Mas todos os que frequentam o fórum sabem que a condenação por “litigância de má-fé” é pouco utilizada nessas ações, considerando que a sensibilidade moral é muito variável. As pessoas sentem as críticas em graus diferentes e, na dúvida, o juiz não condena quem procura a justiça dizendo-se ofendida com um artigo de jornal ou revista. E se o juiz aplicar essa condenação contra o Autor que foi “sensível demais” essa sanção torna-se uma oportunidade ideal para o Autor recorrer indefinidamente alegando que não agiu de má-fé. Dirá, nos recursos, que apenas exerceu o seu direito de discutir judicialmente uma ofensa a sua sensibilidade moral. Enquanto o processo se arrasta, prolonga-se a o desconforto psicológico do jornalista, sem qualquer indenização.
É, portanto, de máxima conveniência, que o legislador conceda ao Réu — um jornalista, por exemplo — o direito de, citado em ação cobrando “danos morais’, apresentar “reconvenção”. Esse instituto jurídico, a “reconvenção”, já existe, há décadas, no direito brasileiro, permitindo que o Réu, quando demandado, possa defender-se e simultaneamente atacar quem o está processando, dentro do mesmo processo, por economia processual, desde que a reconvenção tenha relação com o pedido de indenização. O Réu, jornalista, no caso de indenização por dano moral — pela nova lei —, teria o direito de cobrar do Autor igual indenização por dano moral, que lhe é cobrada, só pelo fato dele, jornalista, ser processado sem motivo válido. Sem a necessidade de aguardar o distante “trânsito em julgado” da ação movida pela Autor, reconhecendo que este último não tinha razão.
Exigir — a doutrina, a jurisprudência ou a legislação atual — que o jornalista, ou crítico, vencedor da ação, aguarde o trânsito em julgado da decisão para, só então, muitos anos depois, iniciar um novo processo, em sentido contrário — cobrando danos morais por ter sido processado indevidamente —, representa um estímulo à “censura privada” à liberdade de imprensa e de opinião. Daí a conveniência, ou mesmo necessidade, de uma lei específica, aqui sugerida, para que o jornalista, ou jornal, possa “reagir” eficaz e prontamente quando for ameaçado em uma demanda em que o criticado exige dinheiro como compensação por danos morais oriundos de uma publicação.
Se, com a legislação atualmente existente, um juiz admitir a utilização da reconvenção nessas ações de indenização por dano moral — por economia processual —, essa decisão ensejará infindáveis e sutis discussões acadêmicas e judiciais, com o argumento de que a “mera” condição de Réu em ações desse tipo não representa um “sofrimento moral” já ocorrido, passado. “Seria necessário”, dirão os críticos da ideia — porque não estão na pele do jornalista — “um prolongado tempo de sofrimento do jornalista, após a citação, para justificar o pedido do Réu”. Este teria — “tecnicamente” — que sofrer longamente para, só depois, “ter o direito” de pretender cobrar do Autor a mesma quantia pretendida pelo Autor que o intimida financeiramente.
Ponha-se o leitor na pele de um jornalista que foi citado, judicialmente, para pagar, digamos, uma indenização de cinco milhões de reais, porque não comprovou uma falcatrua — ouvida de fonte confiável mas também temerosa de processo. Essa ameaça tira-lhe todo o estímulo para o jornalismo investigativo. E pode ocorrer que, devido a globalização, a ação por danos morais seja processada em país estrangeiro propensa a indenizações milionárias nesses casos.
O jornalista Paulo Francis, por exemplo, na década de 1990, foi condenado, pela justiça americana, a pagar uma indenização de cem milhões de dólares por ter mencionado — em entrevista, ou artigo —, que a diretoria de uma empresa estatal brasileira teria desviado altas somas da empresa para contas particulares, em banco suíço. Como ele não comprovou em juízo esse desvio — o sigilo bancário era inviolável —, ele foi condenado a pagar os cem milhões. Ele justificava-se, no decorrer da demanda, dizendo que ao fazer suas denúncias pensava que o governo brasileiro iria investigar o fato, supostamente ilícito, e isso não ocorreu. Não digo aqui se Paulo Francis tinha, ou não, fundamento no que disse, mas de qualquer forma, é impossível escapar da insônia com uma espada desse porte pendente sobre a nuca de qualquer jornalista ou dono de jornal. Não é necessário sofrer vários anos de angústia para só depois ter o direito legal de requerer uma indenização por dano moral de alguém que o processou sem razão, quando essa sem-razão foi reconhecida pela justiça.
Em toda demanda judicial deve estar presente a sábia recomendação de Voltaire: a vantagem (ou lucro) deve ser igual ao perigo.
Convém, moralmente, que em qualquer ação de indenização por dano moral o “ofendido” — quando apenas astuto —, antes de ajuizar uma ação contra seu crítico pense duas vezes, ciente de que, se o crítico tinha razão nas críticas, ele, criticado, terá que, encerrada a causa, pagar ao “ofensor”, a mesma — ou superior — quantia que pediu na sua petição inicial. Essa perspectiva de ter que pagar o mesmo que está cobrando também lhe causará insônia.
Hoje, repita-se, esse equilíbrio de forças não existe. O articulista, ou jornal, que só apontou fatos, ou argumentou razoavelmente — assim reconhecido na sentença — nada ganhará, judicialmente, como compensação pelo sofrimento moral durante o processo que sofreu injustamente. O jornalista, mesmo sendo inocente, só terá perdas: em dinheiro e desgaste emocional. Foi “encurralado” processualmente. Pela atual legislação, a sentença, claro, condenará o Autor, criticado, a pagar os honorários do advogado do Réu mas essa verba pertence a seu advogado, não a ele, jornalista.
Há mais a ser modificado com essa futura lei. Ela exigirá que em toda ação de indenização por dano moral — seja qual for o motivo — o Autor será obrigado a mencionar, na petição inicial, o valor que pretende receber do Réu, não podendo deixar isso “o critério do juiz”, na sentença. Essa vagueza em definir sua “dor moral” estimula ações desse tipo, levianas, porque, no caso de insucesso, a sucumbência em honorários será, como já disse, mínima. E quando o autor “ofendido” goza dos benefícios da justiça gratuita, nem mesmo as custas do processo serão pagas. É muito cômoda nossa atual legislação para quem utiliza a justiça pretendendo silenciar seu crítico alegando ter sofrido um dano moral.
Essa desejável e futura obrigatoriedade legal de o autor fixar o valor da indenização que pretende já na petição inicial. A menção desse “quantum”, teria a vantagem de permitir a qualquer Réu, quando demandado, abster-se de contestar a ação, quando o valor mencionado for mínimo, não justificando maiores gastos com defesa judicial. Como está hoje a legislação — ensejando ao Autor não quantificar o valor que pretende cobrar —, todo Réu sente-se forçado, por prudência, a contestar qualquer ação de danos morais, mesmo que a considere risível. Se procedente a ação — como certamente acontecerá, face a revelia — é impossível prever-se qual o valor da indenização que o juiz mencionará na sua sentença. A indenização pode ser altíssima, por motivos ideológicos. Isso é pouco provável, mas pode ocorrer.
A lei a ser proposta terá a virtude “extra” de forçar maior urbanidade, ou compostura, nas críticas, impressas ou orais, contra pessoas ou instituições. Isso porque, se os fatos criticados forem verdadeiros, mas o crítico aproveitou a oportunidade para enxovalhar, com “brilhantismo” a reputação do criticado — muito além da intenção de apenas criticar um ato —, ele será condenado a pagar uma indenização a ser fixada pelo juiz. Não pela crítica — na essência verdadeira —, mas pela forma abusiva de se expressar, ofendendo desnecessariamente quem eventualmente errou. Enfim, essa lei terá também algum um “efeito colateral” civilizador. O direito de livre crítica, reconhecido mundialmente, foi concebido “para o bem”, não como oportunidade para ofensas e desmoralização impune que chamem a atenção do público para a eventual “genialidade” do redator.
Finalmente, uma última sugestão, na mesma lei. Nas “reconvenções”, genericamente falando, diz a doutrina que, se o Autor da ação, depois de citado na reconvenção, resolve desistir da sua ação, o Réu, reconvinte, poderá prosseguir na sua ação contra o Autor. É o caso de alguém que está sendo cobrado como devedor de quantia, em um negócio, e que reconvém dizendo que é o Autor que lhe deve dinheiro.
Nas ações de dano moral a lei sugerida dirá que se o Autor da ação desistir da ação, após citado na reconvenção — também por danos morais —, a ação será encerrada, com extinção tanto da ação quanto da reconvenção. Isso porque a possibilidade — dada ao Réu, genericamente, pelo instituto da reconvenção —, de prosseguir na reconvenção inibirá o Autor de desistir de seu pedido. E a lei deve estimular a concórdia, não a litigiosidade. É uma solução que me parece melhor, mesmo porque o “sofrimento psíquico” do jornalista será mínimo, ante a rápida desistência do pedido do Autor.
Encerro, aqui, minha sugestão. Observo ao leitor que não escrevo para juristas, mas para pessoas em geral. Daí meu estilo coloquial. Vou encaminhar a proposta às entidades de defesa da liberdade de imprensa, as maiores interessadas no direito de informar ao público o que existe de errado, ou aparentemente errado, neste complexo mundo em que vivemos.
Desnecessário, de minha parte, apresentar agora um esboço de projeto de lei a respeito, pois há advogados e juristas do mais alto nível que podem fazer isso melhor do que eu. Se, porém, algum sindicato do ou associação me solicitar algum esboço, como mera sugestão, farei isso com a maior boa-vontade.
O direito de informar e criticar estará sempre em perigo quando o criticado, indivíduo ou pessoa jurídica, tiver em mãos o fácil — e por vezes abusivo — direito de ameaçar, financeiramente, via justiça, quem se atreveu a revelar fatos provavelmente lesivos ao interesse público. É com a crítica que o mundo evolui, não com o medo de melindrar.
(02-02-2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário