quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um “cochilo de Homero” do STF no caso Celso Daniel (vítima).

Não me agrada, sinceramente, criticar decisões do STF, principalmente quando o Min. Relator do caso foi um magistrado de inegável inteligência e de absoluta integridade.

 Acidentes, no entanto, ocorrem. Daí a expressão acima, invocando Homero, o maior poeta grego de seu tempo, mostrando que mesmo os melhores podem adormecer ligeiramente, por cansaço, no cumprimento do dever. A carga de trabalho na Instância Máxima é brutal, irracional e na minha opinião com remuneração aquém da merecida, apesar de constituir o topo remuneratório do funcionalismo público brasileiro. Há um tanto de demagogia nesse considerando que quase 40% do ganho formal é retido a título de I. Renda e desconto previdenciário. 

Em sua vasta maioria, na longa história do STF, as nomeações correspondiam aos méritos dos nomeados.  Somente vez por outra um presidente da república errava, por soberba ou ignorância, na indicação e nomeação. Provavelmente por simpatia pessoal, oriunda da agradável convivência com algum advogado simpático que lhe dava esclarecimentos em assuntos jurídicos.

Assim como todos nós nos tornamos fãs incondicionais de determinados médicos que nos trataram com especial interesse e acertaram na prescrição do remédio — mesmo não sendo eles de conhecimento acima da média — presidentes da república por vezes “cismam”, favoravelmente, com determinado advogado, insistindo que ele deve ocupar uma vaga no STF. Assim se explicam algumas poucas nomeações, que não estiveram à plena altura do cargo, porque a mera simpatia pessoal do profissional nem sempre coincide com o especial discernimento exigível para ocupar uma vaga em Tribunal que decide em última instância.

Por tal razão é previsível que, cedo ou tarde, o legislador constitucional — pressionado pelas melhores cabeças jurídicas do país —, determine que os Ministros do STF seja escolhidos apenas entre os nomes sugeridos por magistrados — estes com vaga tripla —, promotores e advogados indicados pela OAB nacional. Cada profissão com direito a sua quota de preenchimento das vagas no Supremo, à semelhança do que ocorre hoje com o quinto obrigatório na composição dos tribunais. E, pessoalmente entendo utilíssimo que uma vaga seja reservada a um delegado de polícia indicado pela associação de classe. O contato direto dos delegados de polícia, na luta contra o crime, seria uma experiência útil e mesmo necessária para um “banho de realidade” que os demais profissionais do direito não têm, conhecendo o crime apenas pelo lado mais filosófico, lendo jornais, os autos do processo e as bonitas teorias sobre a finalidade da pena.

Deixando de lado o esquivo futuro, é preciso reconhecer que, hoje, mesmo Ministros com capacidade longamente reconhecida, podem cometer enganos, considerando-se que exige-se deles um conhecimento enciclopédico do direito positivo, da jurisprudência, da doutrina jurídica, além do que está escrito nos volumosos autos do processo sob julgamento. Com uma agravante: a quantidade insana de processos aguardando decisão.

O acúmulo de tanta exigência intelectual, “visual” e até mesmo orgânica exige periódicas modificações jurisprudenciais, no STF, corrigindo as deficiências da legislação em vigor. Mente, ou é cego, quem afirma que nosso direito positivo é perfeito, mas corrigir as incongruências e “omissões” legislativas é demorado demais.

Qualquer profissional do Direito sabe disso após alguns anos de trabalho. Por isso algumas inovações jurisprudenciais são necessárias, suprindo a inércia legislativa, principalmente quando tais omissões desmoralizam a Justiça do país, na opinião das pessoas mais esclarecidas.

O que foi dito acima aplica-se ao processo penal movido contra o suposto mandante do homicídio do prefeito, ou ex-, de Santo Andre, Celso Daniel.

Seria agora o momento de permitir que, nos embargos de declaração, possa o STF — só pelo fundamento de ser última instância —, voltar atrás, quando reconhecer que errou e considerando as consequências sociais imensas de um erro que, involuntariamente, prestigiará a impunidade. Já houve precedentes, na jurisprudência de outros tribunais — lembro-me de alguns casos no STJ —, ao atribuir efeito modificativo da decisão quando ocorreu erro clamoroso, como foi o caso ora em exame.   

Celso Daniel foi sequestrado, torturado e assassinado, a tiros, em 2002, quando saía de um restaurante em companhia de um empresário de nome Sérgio Gomes da Silva, conhecido como Sérgio Sombra. Em certo momento o carro do empresário foi cercado pelos bandidos. Celso Daniel foi retirado à força e levado pelos meliantes, que não se interessaram pelo empresário, como seria esperável.

Por que os meliantes só se interessaram por Celso Daniel, torturando-o e o matando com vários tiros? Tudo indica que havia ódio na ação, não um interesse apenas patrimonial, como é próprio dos assaltos. E Daniel era odiado porque denunciou um esquema de desvio de recursos que deveriam ser destinados apenas ao custeio de campanha eleitoral. Acresce que os bandidos, depois de capturados, disseram que cometeram o crime a mando do empresário “Sombra”, intocado pelos meliantes.

Posteriormente os assassinos disseram que confessaram o crime porque foram torturados, uma corriqueira desculpa após confissões feitas na polícia.

O processo contra o réu Sombra, suposto mandante, foi anulado pelo STF, em 16 de dezembro de 2014. E anulado, a partir de 2003, somente porque não foi permitido, pelo juiz de primeira instância, que o acusado principal, Sombra, fizesse perguntas aos outros réus, em seus interrogatórios. Baseio-me apenas no que diz a mídia porque esta não oferece maiores detalhes.

Repetindo, o habeas corpus , anulando o processo a partir de 2003 foi concedido apenas porque o acusado Sombra, através de seu advogado, não pôde fazer perguntas aos demais réus quando estes foram interrogados pelo juiz. Como consequência, toda a instrução processual, perícias e tudo o mais ficou inutilizado. Note-se que os  6 réus que mataram Celso Daniel já foram julgados e condenados, pelo Tribunal do Juri, o que, provavelmente, lhes permitirá requerer revisão criminal. De qualquer forma, as pessoas interessadas em melhorar nossa Justiça consideração tal habeas corpus um exagero formal, se bem examinado o assunto.

Diz a decisão que “a lei” foi ignorada pelo juiz que indeferiu perguntas feitas quando dos depoimentos de outros réus. Isso é bem discutível e se, eventualmente, ela foi interpretada corretamente, é incrível e absurdo que uma pequena eventual falha tenha “hibernado” durante doze anos, só produzindo efeitos muitos anos depois, perto do julgamento do réu pelo Tribunal do Júri, jogando no lixo um imenso trabalho judicial.

Pergunta-se: por que o réu Sombra não reagiu, logo após ver negado seu suposto direito de reperguntar outro réu durante o interrogatório? Sua inércia em apresentar um recurso, ou habeas corpus, logo após o indeferimento de suas perguntas, deve ser premiada? O processo não deve caminhar pra frente? O prêmio, para o réu, foi excepcional, equivalendo a quase uma absolvição sumária, porque testemunhas morreram. Os réus que torturaram e mataram Celso Daniel, já condenados, vão querer tirar proveito dessa decisão, alegando que também “são filhos de Deus”.

Vejamos a legislação que fundamentou a concessão do habeas corpus.

O  Capítulo III do CPP, Código de Processo Penal — no art. 186 e seguintes —, não autoriza que um ou mais acusados façam perguntas ao réu que acabou de ser interrogado pelo juiz. Trata-se de um momento processual do qual só participam o réu e o juiz. O defensor pode e deve estar presente mas não poderá interferir no interrogatório, a não ser para evitar ameaças ou distorções eventualmente feitas pelo juiz ao ditar ao escrevente o que foi dito pelo réu.

A disposição do CPP, restringindo quem pode se manifestar na audiência, é mais sábia do que parece. Principalmente quando se trata de co-autoria.

Imagine-se um  processo com trinta acusados ( no mensalão havia mais de quarenta) fazendo, cada um deles uma série infindável de perguntas, sempre com a esperança de conseguir alguma incoerência do réu que estava sendo interrogado. Se o juiz indeferisse as perguntas sem sentido o advogado poderia requerer ao juiz,, como é usual, que registrasse, na ata da audiência, qual foi a pergunta indeferida pelo magistrado, prolongando ainda mais o interrogatório.

Diz a mídia que a Lei 10.792/03 admitiu que os co-réus teriam o direito de fazer perguntas ao réu que está sendo interrogado. Essa permissão estaria contida no art.188 do CPP, com a nova redação da Lei 10.792/03.

Diz o art.188 que: “Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará ‘das partes’ — aspas minhas — se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.

É mais razoável entender que “partes”, no artigo, são apenas a Promotoria e o advogado do réu que está sendo interrogado. Apenas ele, porque, segundo o art. 191 do CPP, conforme modificação da Lei 10.792/03, “havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”.

A nova redação do art.188 permite que o advogado do acusado (interrogado) peça ao juiz que pergunte ao réu, seu cliente, uma série de detalhes que, benéficos ao réu, o juiz não lhe perguntou. Meio intimidado, o réu não se atreveu a acrescentar sem autorização do juiz, como que conduzindo seu próprio interrogatório. E também permite que o promotor de justiça também faça suas perguntas, o que não ocorria antes da Lei 10.792/03, que só admitia duas pessoas falando no interrogatório: o interrogando e o juiz.

Considerar como “partes” todos os co-réus constantes do mesmo processo, permitindo a todos eles participar dos interrogatórios dos demais réus será o caos.

 Imaginemos um processo com vinte réus que mutuamente se acusam, cada um jogando nos demais a culpa. Isso redundaria em vinte interrogatórios, de imensa extensão, com 400 (quatrocentas) reperguntas feitas pelos advogados dos demais acusados. Tal critério,  se utilizado no “mensalão” (41x41) implicaria em 689 reperguntas, se cada réu fizesse apenas uma pergunta ao co-réu que estava sendo interrogado... Se fossem duas perguntas, formuladas por cada réu, seriam 1.378 reperguntas.

Se a prova testemunhal, segundo o velho adágio jurídico, é a “prostituta das provas”, como classificar perguntas de réu para réu? Tais perguntas, convenhamos, não passam, usualmente, de “ação entre amigos”. Ambos estão apenas interessados em “arranjar um jeito” para salvar a própria pele ou a pele de ambos.

Respondendo às perguntas do colega de crime a probabilidade de mentir é muito maior do ocorre quando se interroga uma testemunha. Quando esta depõe corre o risco de ser processada porque mentir em juízo é crime. Mesmo com essa ameaça a prova testemunhal tem menos prestígio que a prova pericial e documental. Agora, se um réu mente, no seu interrogatório, respondendo a perguntas de co-réu, não há risco nenhum nessa mentira, porque o réu pode, na nossa legislação, mentir à vontade, sem qualquer consequência.

No caso do Celso Daniel é preciso lembrar que, presumivelmente, os executores do crime, já condenados, o foram não com base apenas nas acusações dos demais réus. Os jurados decidiram, como sempre ocorre, pelo conjunto das provas.

Um outro ponto que aconselha o prosseguimento da ação penal contra o suposto mandante do assassinato de Celso Daniel — mantendo a validade dos interrogatórios em que foi negada repergunta do patrono do “Sombra” — está, como já disse, no fato da anulação do processo ter ocorrido 12 (doze) anos depois, inutilizando grande material probatório no decurso desse tempo. Arrisco dizer que o inteligente patrono que redigiu o habeas corpus deve ter se surpreendido com o próprio sucesso.

Se a Promotoria apresentou embargos de declaração, como única forma de não desperdiçar um longo trabalho judicial, não será vexatório, para a 1ª Turma do STF, modificar sua decisão, fruto de um mero empate de dois votos contra dois. Nos habeas corpus, o empate resolve-se sempre a favor do réu, mais um privilégio concedido aos acusados.

Merecem elogio os Ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, que negaram o habeas corpus.

Se o Sombra for eventualmente inocente, certamente seu patrono encontrará meios, na vasta prova colhida, de convencer os jurados de que tudo foi um engano, um mal entendido.

O prestígio da nossa Justiça, já tão abalado, está nas mãos dos ilustres dois Ministros que anularam doze anos de uma longa e certamente difícil instrução. Acentue-se que Sombra ainda não foi julgado e durante seu julgamento popular, pelo Júri, seu defensor poderá argumentar como quiser sobre o eventual prejuízo sofrido pelo cliente, quando foi impedido de fazer perguntas aos outros réus. E os jurados decidirão com suas próprias cabeças, utilizando o bom senso sempre atuante no seio da população.

Aguardemos a importante decisão proferida pelo recurso da Promotoria, em caso tão emblemático.


(31-12-2014)

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