Os moralistas, frequentemente, insistem na comparação entre o homem e o
cão, pois este, se tratado com bondade, mesmo sendo mal alimentado, pode ficar
dias perto do túmulo do dono; talvez uivando, o equivalente canino do choro
humano. Alegam que homem nenhum passará longo tempo chorando pelos cantos a morte
de seu cão. A comparação é obviamente desproporcional porque o “horizonte”
mental do cão é tremendamente restrito enquanto que o pensamento do homem sofre
miríades de interferências diárias exigindo contínua atenção sobre variados
assuntos, práticos e teóricos. E talvez alguns cães sejam mais “sentimentais”
que outros...
Há, também, os pensadores “cínicos”, ou “céticos”, que tudo encaram com
desconfiança, sempre propensos a investigar o possível “lucro”, financeiro ou
social, de todo agir humano.Um grande moralista do passado, François de La Rochefoucauld,
dizia que a gratidão pode significar apenas o desejo de novos favores. É claro que
há gente dessa laia, mas presumo que representem minoria. O leitor, certamente
— se chegou a ler este artigo até aqui é porque tem preocupações morais —, já
sentiu algum sentimento de gratidão e ao externar esse sentimento ao benfeitor não
teve a mais remota intenção de pedir novo favor, consciente de que gratidão com
olho em nova vantagem é “negócio”, ou abuso da bondade alheia.
A gratidão, porém, tem um ferrenho e, no fundo, biológico inimigo: o
amor-próprio, o orgulho, a necessidade de preservar o próprio valor. Pessoas
que se consideram “especiais” — poucos não se consideram — não gostam de dever
favores. Recebê-los é uma admissão de que estão em posição algo inferior, dependente;
tanto assim que precisaram “pedir” algo. E, mais vexatório: pedir temendo um
“não”. Pedir um favor não é o mesmo que pedir uma informação na rua. Fossem “fortes”,
pensam, não pediriam nada: — “Odeio que sintam pena de mim!”. E frequentemente
é mesmo a comum compaixão que leva pessoas a atender pedido de amigo, parente,
ou mesmo do simples conhecido. Foi pensando nisso, no orgulho ferido, que o “Marquês
de Maricá” — pseudônimo de Mariano José Pereira da Fonseca, um carioca falecido em 1848, que foi senador e Ministro
da Fazenda de D. Pedro I,—, chegou a mencionar, em suas “Máximas”, que algumas
pessoas “vingam-se dos benefícios recebidos”.
Realmente, “dever favor a um sujeito antipático e que está, talvez, se
pavoneando por aí dizendo que me ajudou, é carregar uma ferida que exigiria certa
vingançazinha: uma futura posição trocada, ele me pedindo algo que eu talvez
negasse de início, só para vê-lo implorando, de joelhos, como me senti quando
pedi a ele aquele favor”.
Para evitar a ingratidão por orgulho ferido recomendam, os entendidos em
venenos d’alma, que o benfeitor não fique muito tempo perto do ajudado e nunca mencione
— em público ou em particular — o favor prestado. Isso cutuca a velha ferida.
Um outro fenômeno mental — até mesmo inconsciente — relacionado com a
ingratidão é que o orgulho magoado torna seu portador, quando beneficiado por
favor em dinheiro, tremendamente sensível a qualquer palavra, gesto, sorriso ou
olhar que possa, mesmo remotamente, significar alguma forma de desprezo. O
inconsciente do devedor orgulhoso fica o tempo todo em alerta máximo para
detectar e valorizar um detalhe que se tornará pretexto para não pagar o que
deve: — “ O desgraçado me ofendeu com aquele olhar! Ele pensa que se tornou meu
dono só porque me fez um favor?! Vou ensinar a esse camarada! Pagarei quando
puder, ou quiser...”
É por isso, evidentemente, que favor em dinheiro vem sempre garantido
com um título de crédito. Do contrário, qualquer ligeira demora em responder a
um aceno, ou outro ritual de cortesia pode “justificar” o não pagamento de uma
dívida sem comprovação documental. E quando o pagamento da dívida for feito com
trabalho futuro, o problema será o mesmo. Sair de casa para trabalhar e receber
logo a paga é muito mais estimulante do que sair de casa para trabalhar e
voltar com as mãos vazias, embora com a velha dívida ligeiramente menor. Sei,
porém, de alguns casos em que o devedor de serviço cumpriu direitinho seu dever
de pagar dívida de dinheiro com serviço pontual, mas isso é raro.
A frase mais brutal que encontrei entre os pensamentos sobre a gratidão
veio da boca de um ditador notório por sua grosseria, tenacidade e impiedade.
Ninguém menos que Joseph Stálin, que preferiu trocar seu sobrenome
verdadeiro, Djugashivilli, por “Stálin”,
que significa “homem de aço”,”durão”. Referindo-se ao sentimento da gratidão, Stálin
assim se expressou, segundo citação, em inglês, constante da internet
(BrainyQuote): “Gratitude is a sickness suffered by dogs” ( “Gratidão é uma
doença que ataca os cães”). Transcrevi como está na internet porque alguém
poderia duvidar do que eu escrevi, contrariando o universal elogio de uma
virtude mundialmente admiradíssima.
No mesmo site
consta que Stalin também disse: “Death is the solution to all problems. No man - no problem”( “A morte é a solução de
todos os problemas. Nenhum homem, nenhum problema”). Ainda tenho alguma dúvida
sobre a veracidade dessa citação. Stálin nunca diria isso em público. Se alguém
duvida que o Socialismo mundial — ideal concebido para tornar o mundo melhor —
esteve sob o mau comando de uma vocação de gangster, essas duas frases tirariam
qualquer dúvida. Ou será que um certo grau de “gangsterismo” é indispensável na
área internacional, onde impera a força, de braço dado com a mentira?
Voltando ao tema mencionado no título, o lado
negativo da gratidão, quis me referir à gratidão indevidamente aplicada na
política, quando lesiva ao bem comum. Uma ingratidão política pode, às vezes,
ser melhor, para a coletividade, do que a gratidão. Cito, a seguir, um exemplo
concreto. Omito nomes para evitar problemas com possíveis herdeiros, zelosos em
manter a reputação de um ancestral incapaz de se defender, porque já não mais
entre os vivos.
Contaram-me, décadas atrás, que um grande político brasileiro, quando
candidato a governador, foi muito bajulado por um cidadão que dispunha de uma
frota de peruas para sua atividade comercial. Perto da eleição, esse indivíduo teria
oferecido os préstimos de seus veículos para fazer a propaganda desse candidato,
percorrendo cidades com aparelhos de som. O político venceu as eleições, elegeu-se
governador e o indivíduo em questão — conhecido por seu amor ao dinheiro e falta
de escrúpulos — passou a assediá-lo, na sede do governo estadual. Queria, a
todo custo, ser nomeado para determinado cargo de grande significado
financeiro. O então governador instruía seu secretário a dizer sempre que ele,
governador, estava em reunião, ou dando outra desculpa. Imaginava que, com o tempo
o pretendente acabaria desistindo, o que não ocorreu. O secretário, cansado de
tourear, convenceu o governador a receber o ganancioso. Cara a cara, o dono das
peruas alegou que o governador, quando candidato, lhe prometera esse tal cargo,
se eleito. Argumentou que com a propaganda das peruas, teria, influído na sua eleição.
Exigia, portanto, o cumprimento da palavra. Aí o governador lhe teria dito: — “Se
cheguei, eventualmente, a prometer, quem lhe prometeu foi o candidato Fulano de
Tal” — disse seu nome —, “mas o governador Fulano de Tal” — repetiu o nome — “nega
o pedido!” E negou, de fato.
Se houve, realmente, uma promessa formal, ou uma vaga promessa, não sei
— por isso não mencionei nomes envolvendo pessoas já falecidas — mas o fato é
que a provável ingratidão do político foi muito mais virtuosa que a gratidão.
Outro potencial perigo relacionado com a gratidão está no critério para
a escolha de Ministros de Tribunais Superiores, principalmente do STF. Como
todos sabem, os Ministros do STF são nomeados após indicação do Presidente da
República. Incidentemente, até hoje não compreendi a justificação lógica para
tal critério, copiado dos Estados Unidos da América do Norte. Lá com a
agravante de que o jurista é nomeado não para ser um dos membro da Suprema Corte. É nomeado para ser dela
presidente, e por toda a vida. Algo que evoca a monarquia, incompreensível em
uma nação que pretende espalhar a democracia em todo o planeta, com periódico revezamento
do poder.
Uma total independência de Poderes proibiria qualquer Presidente da
República, de qualquer país, “escolher”, à vontade, quem vai votar em
julgamentos importantíssimos, inclusive das suas próprias decisões
presidenciais. Será que o Ministro nomeado, por mais idôneo que seja — e uma grande
idoneidade tende, até mesmo inconscientemente, a valorizar a gratidão — não
teria dificuldade em livrar-se da obrigação moral de retribuir quem tanto o
ajudou? Principalmente quando a matéria sob julgamento for especialmente delicada,
comportando decisões opostas e defensáveis em matéria constitucional. Dizer que
nesses casos o Ministro “grato” deve dar-se por impedido não é uma saída prática
porque pode ocorrer que largo percentual dos Ministros tenha sido nomeado pelo
mesmo Presidente da República.
A faceta perigosa, porém, da gratidão em assuntos públicos não está apenas
na nomeação dos Ministros pelo Chefe do Executivo. Maior perigo está na
gratidão do nomeado para com algum figurão, não magistrado, que se empenhou
para a transformação do jurista em um juiz
do mais alto tribunal do país. Assim como forma-se espontaneamente um lobby de admiradores em favor de
candidatos a cadeiras nas Academias de Letras e nas vagas dos Tribunais
Internacionais, presume-se — agora com razões bem mais concretas —, que o
próprio Presidente da República seja pressionado para escolher tal ou qual
jurista para preencher as vagas no STF,
onde são disputados interesses econômicos e pessoais bem mais concretos que pendências
em tribunais internacionais. Nestes últimos será remotíssimo, ou nenhum, o
interesse pessoal dos admiradores de tal ou qual especialista de Direito
Internacional. “Torcem” por um ou outro candidato ao cargo porque simpatizam e
admiram sua competência e personalidade.
Na batalha de bastidores dos
tribunais locais alguns pressionam o chefe do Executivo apenas por admiração
pessoal pela capacidade do amigo. Outros, porém, pressionam por motivos
estratégicos, prevendo que um dia poderão precisar da boa-vontade desse amigo.
Grandes financistas e empresários, principalmente aqueles em constante perigo
de serem acusados de infringir a lei — cada vez mais sutilizada e amplificada com
preocupações de “crime organizado”, “tráfico de influência”, “enriquecimento
ilícito”, “evasão de divisas”, “fraudes em licitações”, “fraude fiscal”, etc. —
certamente veem em cada vaga no STF uma conveniência de preencher essa vaga com
um “amigo do peito”. Lutarão seriamente para “emplacar” esse amigo e este, se
escolhido para o cargo, terá que — quando surgir uma demanda envolvendo
interesse, mesmo indireto, desse amigo — lutar para resistir ao próprio impulso
de retribuir, por gratidão, o favor recebido quando for possível fazer isso com
um voto bem fundamentado. E todos sabem como o Direito não é uma ciência exata.
Acredito e espero, porém, que o paradoxal dever moral da “ingratidão
cívica” esteja sempre presente na formação da futura jurisprudência brasileira.
As considerações acima não contêm indiretas à situação brasileira. Têm
apenas a intenção de analisar, genericamente, uma virtude que, como todas as
demais, não pode ser vista de forma rígida, carimbada como calculada “obrigação
de retribuir”. Uma espécie de compra e
venda moral. Traficantes, em favelas, costumam “ajudar”, com dinheiro, alguns
moradores, já contando com sua futura colaboração, avisando a proximidade da
polícia. Ser grato, nessas circunstâncias, é apenas colaboração com o crime.
Mesmo as virtudes podem ser desvirtuadas. Se o benfeitor agiu apenas por
malícia, não é malicioso ser ingrato quando cobrado o benefício.
Estou hoje com a veia moralista, mas espero que isso passe logo, porque
assuntos dessa natureza em geral apenas enfadam os leitores.
(20-5-2012)
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