sábado, 5 de maio de 2012

O “ativismo” judicial deve ser ainda maior.

                 Com alguma freqüência, recentemente, lemos, na mídia, reclamações contra o suposto “excesso de liberdade” do STF no decidir sobre temas polêmicos. A alegação seria de que a mais Alta Corte estaria, em última análise, legislando, com isso usurpando função reservada ao Congresso que, juntamente com o presidente da república, representam o povo  brasileiro. Como os juízes não foram eleitos, algumas de suas decisões — na opinião desses críticos — configurariam violação do princípio da separação dos poderes. Em português mais franco: o STF estaria distorcendo a Constituição e ampliando um “ativismo” judicial que não deveria existir nem mesmo em escala mínima.

Com a recentíssima decisão do STF — permitindo que a mulher grávida de um bebê anencéfalo possa, querendo, interromper legalmente a gravidez —, alguns legisladores, fortemente impregnados de valores religiosos, chegaram a propor uma lei que permitiria ao Congresso invalidar aquelas decisões que — no entender deles —, significam uma “nova lei”, lei que, certamente, não seria aprovada no Congresso. Insistem que o juiz deve apenas julgar, não “inventar” normas, como se legisladores fossem. 

Cabeças mais lúcidas já protestaram, de imediato, contra essa esdrúxula proposta legislativa que só mereceria alguma consideração se ocorresse um súbito e patológico ataque de insânia, de origem até criminosa, figurando como vítimas os ministros do STF.

Se — em pitoresco mas demonstrativo exemplo —, algum bioquímico excêntrico e inovador pingasse alguma substância sutilmente tóxica no café dos senhores Ministros e esses decidissem, durante uma ou duas semanas, que um marido pode, por exemplo, torturar e matar sua esposa quando desconfia que ela o trai ou que o filho dele na verdade não é dele; ou que o credor pode mandar espancar, em “legítimo reforço de seu crédito”, o devedor que se serve da justiça para retardar ou não pagar o que deve; ou que jornalistas mais atrevidos possam ser torturados quando não respeitarem a intimidade de pessoas socialmente respeitável, aí, sim, caberia a anulação de tais delirantes decisões, frutos de um desarranjo doloso da química dos neurônios. Obviamente, a própria Corte, se conseguisse voltar ao normal, tomaria decisão de anular o decidido porque a aberração jurídica seria evidente conseqüência de uma nova forma de terrorismo, agora químico e em gotas.

Não foi isso, evidentemente, que ocorreu no caso da anencefalia. A Alta Corte decidiu o caso depois de inúmeras horas de debates logicamente fundamentados, embora impregnados das filosofias subjacentes na mente de todo magistrado, como ocorre em  decisões envolvendo valores abstratos. E decidiu, a nosso ver, como deve decidir um estado laico, como é o estado brasileiro. Obrigar u’a grávida a manter no útero um bebê sem cérebro é violentar a liberdade individual. Se, abusando dos exemplos, em lugar de uma cabeça sem cérebro, o raio-x, ou outra técnica equivalente, verificasse que a criança nasceria com cinco membros, uma perna saindo do pescoço, assim mesmo seria a grávida obrigada a suportar esse desconforto psicológico durante meses? Não seria isso uma forma indireta de tortura?

Quando a natureza erra grosseiramente, sem possibilidade de conserto, por que, pergunta-se, o homem — após séculos de estudos e pesquisas científicas visando aliviar o sofrimento humano  —, não poderia “apagar” o erro da natureza? Uma vida foi ceifada? Foi, mas, a rigor, não era uma vida propriamente “humana”, porque é o cérebro humano que  distingue seu portador do animal. No caso, menos que animal, porque este pelo menos tem a capacidade de se defender e de sentir, o que não acontece com o anencéfalo. A “vida” tem seus limites, porque ela também erra. Aberrações genéticas ocorrem vez por outra.

Países democráticos que adotam a pena de morte sabem perfeitamente que toda vida é importante; inclusive — e principalmente —, a vida de pessoas inocentes que morrem, sem julgamento, de forma abusiva e cruel, nas mãos de assaltantes e outros criminosos. Juristas que apóiam a pena de morte não são necessariamente maus, somente presumem que essa punição extrema contém um poder de intimidação geral mais eficaz que o medo de um mero e eventual processo que pode resultar em nada, por prescrição ou fragilidade da prova. Presumem que esse medo da morte legal certamente diminuirá os casos de latrocínios e homicídios, com isso protegendo vidas inocentes, mais merecedoras de proteção que vidas até mesmo profissionalmente criminosas. 

Voltando ao tema “ativismo judicial”, este deve é ser aumentado, e não restringido, no caso brasileiro, porque é impossível exigir do legislador —  qualquer legislador, de qualquer país — a capacidade de prever todas as hipóteses e variantes do comportamento humano. É por isso — pelo licença para pequena divagação — que sou favorável à edição de uma lei que permita ao juiz criminal condenar o réu a uma pena abaixo da mínima, ou até mesmo nenhuma, quando as circunstâncias do crime, comprovado, evidenciarem que naquele caso específico — evidentemente raro —, a pena, mesmo em sua forma mínima, representa uma injustiça.

Recentemente, na zona rural de Pernambuco uma mulher foi absolvida, por unanimidade, pelo júri, em um caso, comprovado, de homicídio contra o pai. Este, violento, ameaçador, manteve a filha como sua escrava sexual por muitos anos, gerando vários filhos/netos. Quando ele começou a externar mesma intenção contra uma neta, a filha reuniu toda a coragem que lhe restava e contratou um matador. A prova do domínio e escravidão sexual da filha era tão robusta que o promotor disse que não se sentia moralmente em condições de apelar contra a absolvição. Foi, de certo modo, um caso de “ativismo” judicial, mesmo ocorrendo no tribunal do júri, porque este integra o poder judiciário. 

Com essa possível lei, agora sugerida, o juiz, para poder desobedecer o comando legal em fato provado, teria que fundamentar  convincentemente sua decisão, mostrando que não agiu por capricho. Se o Ministério Público discordasse desse entendimento, recorreria da decisão, o mesmo podendo fazer a vítima do crime. Melhor assim, de modo franco, do que o juiz ficar obrigado a fazer malabarismos jurídicos e verbais para concluir, falsamente — embora visando uma justiça superior — que o “crime não ficou caracterizado” ou que “não ficou provado”, quando o fato restou mais do que provado. É o que ocorre, por exemplo, com o furto esporádico de mercadorias, em supermercados, quando uma “ladra” muito pobre — e não sendo ladra habitual —, furtou um pote de margarina ou objeto de pequeno valor. Dizer, o acórdão, para absolver a ré, que a justiça não deve se ocupar de coisas mínimas é perigoso e incentivador do roubo de lojas e supermercados. Se os miseráveis souberem, de antemão, que roubar alimentos em lojas e supermercados não significa cadeia, estimularíamos saques diários. 

A sugestão acima, de edição de uma lei, foge, porém, do tema central deste ensaio porque o objetivo deste é defender o ativismo judicial na interpretação das leis. Existindo uma lei nos moldes acima sugeridos —, autorizando pena abaixo da mínima —, não haveria propriamente ativismo judicial porque qualquer cidadão, inclusive o juiz, tem o direito de sugerir ao legislador a edição de leis. Voltemos, pois, ao ativismo judicial. 

É comum, na disputa política, um partido guardar carinhosamente um “podre” qualquer — até mesmo sexual —, de político ou partido adversário para utilizá-lo, via mídia, no pior momento do denunciado, impressionando a opinião pública a ponto de inverter o resultado de uma eleição bem próxima. Pouco antes desta surge, nos jornais, a “notícia bomba”, com pedido formal de abertura de inquérito. O denunciante sabe que o acusado não terá tempo para se defender razoavelmente, mesmo em termos midiáticos. 

Pergunta-se: nesses casos, deve o juiz “fazer o jogo” do “estrategista sabido” que guardou carinhosamente a divulgação de algo errado — ou aparentemente errado — que conhecia há muito tempo? Não haveria, nesse caso, uma tentativa de utilização da justiça para vantagens estritamente políticas? Ou poderia, o juiz, usando um prudente “ativismo” judicial, desconfiando da real intenção do acusador, despachar nos autos dizendo que a notícia do crime só seria examinada após a eleição, considerando a inoportunidade de sua apresentação? Em suma: é obrigação do juiz agir como um marionete, um tolo incapaz de reagir mesmo ciente de que está sendo usado? 

Cito um outro exemplo de recomendável ativismo jurídico: na interpretação dos testamentos já vi caso em que o testador, querendo, obviamente, proteger  sua possível viúva, estabeleceu no testamento a cláusula de inalienabilidade vitalícia de dois imóveis que ficariam em condomínio da viúva e dois herdeiros necessários, filhos do casamento anterior. Enquanto a viúva estivesse viva, os dois imóveis não poderiam ser alienados. A intenção do testador era, claro, proteger a viúva, mas a realidade econômica mostrou que essa inalienabilidade se tornou apenas um ônus inútil e prejudicial à própria viúva que ele queria proteger. Um dos imóveis era um terreno perto da praia que só serviria para alguma coisa se nele fosse construída uma casa. Mas a viúva não tinha dinheiro para construir. Conseqüência:                    a viúva, após pagar IPTU sobre esse terreno, por cerca de 15 anos, já gastou mais com imposto do que vale o terreno. E os herdeiros necessários, condôminos, também só se viram prejudicados com a tal cláusula de inalienabilidade. Todos, viúva e herdeiros, precisariam vender os dois imóveis e partilhar o resultado econômico da venda, mas o testamento é expresso no sentido de que a inalienabilidade existiria enquanto a viúva vivesse. O pedido da viúva e dos herdeiros necessários foi negado pela justiça porque o Código Civil obriga um respeito total à vontade do testador. 

O testador, no caso, simplesmente errou, por falta de orientação, ao declarar sua vontade quando da redação do testamento. Se ele, por milagre, voltasse a vida, imediatamente corrigiria o que escreveu no testamento. Houvesse maior “ativismo”judicial o juiz poderia deixar de cumprir a vontade ditada pelo testador — e o próprio comando do Código Civil —, demonstrando, na sentença, que essa vontade, embora nitidamente expressa, foi conseqüência de má-informação evidente do testador que, mesmo querendo fazer o bem, acabou fazendo o mal a todos os contemplados no testamento. O pior é que o caso já foi decidido, em definitivo, contra a pretensão da viúva e dos filhos do falecido, tendo já decorrido o prazo de uma ação rescisória.

Na área penal, o acanhamento — dos próprios juízes — no encarar o “ativismo” judicial vem ocasionando uma evidente desmoralização da justiça. É caso da impunidade em crimes do colarinho branco. Como a Constituição Federal diz que só se considera culpado aquele cuja condenação transitou em julgado, quem for tecnicamente primário, tiver residência fixa e renda suficiente para viver bem só poderá ser preso depois de transitada em julgado sua condenação. Réus culpadíssimos, mas abonados, conseguem levar, com extrema lentidão proposital, à instância máxima, seus casos, “engordados” em vários e volumosos autos. Quando seus processos entram em pauta para julgamento no STF, os réus desaparecem e aguardam, em local desconhecido, o resultado do julgamento final. Se absolvidos, ou prescrita a ação, ou condenados a prisão domiciliar, voltam para casa. Se condenados a prisão em regime fechado, simplesmente somem, podendo até mudar de nome. Essa impunidade desperta rancor justificado naqueles “não privilegiados” que, por falta de recursos, não podem “esticar”seus processos. E leitores de jornais ficam pensando, cada vez mais descrentes. 

Mesmo sem uma lei específica contra a impunidade — sempre contornável —, um “ativismo” judicial bem intencionado poderia consertar a grande falha desmoralizadora. Bastaria ser criada uma jurisprudência dizendo que, confirmada uma condenação pela segunda instância, o réu seria preso preventivamente — só para garantir o cumprimento da pena. Sendo pessoa “distinta”— isto é, com recursos e residência fixa —, poderia ficar em prisão domiciliar, com passaporte confiscado e com tornozeleira monitorizando sua presença no lar. Em crimes de alto valor financeiro, o juiz poderia congelar parte de seus bens, como modo de garantir a não fuga do réu. E, se o réu sumisse antes do julgamento de seus recursos a fuga implicaria em confissão e desistência de todos os seus recursos, expedindo-se mandado de prisão. Estando o réu preso preventivamente já é de lei que seu processo tem preferência de julgamento. Não haveria tanta demora para seu julgamento. 

Duvido que o Congresso edite uma lei com esse rigor, porque a necessidade de dinheiro para financiar campanhas eleitorais sempre implica em risco de transformar o político eleito em réu. Ninguém legisla contra si próprio. Se, no entanto, a jurisprudência criar tais cautelas, visando impedir o réu de fugir antes de ser julgado em definitivo, quem poderia deixar de cumprir a decisão judicial? E a Constituição não estaria sendo violada, porque a prisão preventiva está prevista em lei. 

Outra possível criação jurisprudencial — fruto de um sadio “ativismo” capaz de trazer de volta o prestígio da nossa justiça — seria a “autorização”, implícita em Súmula do STF, permitindo que os juizes possam decretar a prisão preventiva levando em conta também a gravidade do delito, desde que convincente a prova colhida no inquérito policial ou nos autos judiciais. 

A população revolta-se, com razão, contra a liberdade de um indiciado, ou réu, que — em exemplo forte —, está sendo acusado de haver abusado sexualmente e assassinado dez crianças, enterrando-as depois em imóvel de sua posse. O denunciante do caso mostra as fotos horrendas; as cenas filmadas pelo próprio acusado — há malucos de todos os tipos — em que ele aparece cometendo suas barbaridades; o quintal do réu onde estão os cadáveres meio apodrecidos; as gravações telefônicas em que o réu se gaba de suas façanhas e, não obstante isso tudo, o juiz permita que o réu continue solto — porque não houve prisão em flagrante — até que, muitos anos depois, receba uma condenação com trânsito em julgado, que provavelmente não cumprirá porque fugiu. Essa benevolência, ou apatia, é um insulto às pessoas de sentimentos normais. 

Obviamente, não tem sentido decretar a prisão preventiva apenas porque, em tese — com discutíveis “indícios” —, haveria uma acusação greve.  Se, no entanto, o crime é gravíssimo e as provas documentais — fotos, filmagens e “grampos” — apresentados são muito convincentes, seria até obrigação moral do juiz decretar a preventiva, mantendo-a até o julgamento porque é de se esperar que o réu fugirá antes da sentença. 

A atual campanha de desmoralização da justiça, promovida por jornais — por alegados vencimentos acima do teto remuneratório — encontrou repercussão favorável na opinião pública porque esta acha-se revoltada, com razão, com a “bondade inexplicável” de nossas decisões judiciais — principalmente nos processos contra os poderosos — e também contra a “moleza” com que são julgados assaltantes e sádicos e perigosos. Para consertar isso é preciso, pelo visto, um crescimento do “ativismo” judicial, porque esperar muita “firmeza” de nossos legisladores é problemático enquanto boa parte dele se vê em perigo, acusados de tráfico de influência. Quando um Poder se omite na sua missão, é dever dos demais Poderes preencher tal omissão. O que não cabe é dizer ao povo que ele dever perder a esperança e rezar para não ser a próxima vítima. 

Como já ocupei espaço demais, fica por aqui a mensagem.



(4-5-2012)










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