Com a recentíssima decisão do STF — permitindo que a mulher grávida de
um bebê anencéfalo possa, querendo, interromper legalmente a gravidez —, alguns
legisladores, fortemente impregnados de valores religiosos, chegaram a propor
uma lei que permitiria ao Congresso invalidar aquelas decisões que — no
entender deles —, significam uma “nova lei”, lei que, certamente, não seria
aprovada no Congresso. Insistem que o juiz deve apenas julgar, não “inventar”
normas, como se legisladores fossem.
Cabeças mais lúcidas já protestaram, de imediato, contra essa esdrúxula proposta
legislativa que só mereceria alguma consideração se ocorresse um súbito e
patológico ataque de insânia, de origem até criminosa, figurando como vítimas
os ministros do STF.
Se — em pitoresco mas demonstrativo exemplo —, algum bioquímico
excêntrico e inovador pingasse alguma substância sutilmente tóxica no café dos
senhores Ministros e esses decidissem, durante uma ou duas semanas, que um
marido pode, por exemplo, torturar e matar sua esposa quando desconfia que ela
o trai ou que o filho dele na verdade não é dele; ou que o credor pode mandar
espancar, em “legítimo reforço de seu crédito”, o devedor que se serve da
justiça para retardar ou não pagar o que deve; ou que jornalistas mais
atrevidos possam ser torturados quando não respeitarem a intimidade de pessoas
socialmente respeitável, aí, sim, caberia a anulação de tais delirantes
decisões, frutos de um desarranjo doloso da química dos neurônios. Obviamente,
a própria Corte, se conseguisse voltar ao normal, tomaria decisão de anular o
decidido porque a aberração jurídica seria evidente conseqüência de uma nova
forma de terrorismo, agora químico e em gotas.
Não foi isso, evidentemente, que ocorreu no caso da anencefalia. A Alta
Corte decidiu o caso depois de inúmeras horas de debates logicamente fundamentados,
embora impregnados das filosofias subjacentes na mente de todo magistrado, como
ocorre em decisões envolvendo valores
abstratos. E decidiu, a nosso ver, como deve decidir um estado laico, como é o
estado brasileiro. Obrigar u’a grávida a manter no útero um bebê sem cérebro é
violentar a liberdade individual. Se, abusando dos exemplos, em lugar de uma
cabeça sem cérebro, o raio-x, ou outra técnica equivalente, verificasse que a
criança nasceria com cinco membros, uma perna saindo do pescoço, assim mesmo
seria a grávida obrigada a suportar esse desconforto psicológico durante meses?
Não seria isso uma forma indireta de tortura?
Quando a natureza erra grosseiramente, sem possibilidade de conserto,
por que, pergunta-se, o homem — após séculos de estudos e pesquisas científicas
visando aliviar o sofrimento humano —, não
poderia “apagar” o erro da natureza? Uma vida foi ceifada? Foi, mas, a rigor,
não era uma vida propriamente “humana”, porque é o cérebro humano que distingue seu portador do animal. No caso,
menos que animal, porque este pelo menos tem a capacidade de se defender e de
sentir, o que não acontece com o anencéfalo. A “vida” tem seus limites, porque
ela também erra. Aberrações genéticas ocorrem vez por outra.
Países democráticos que adotam a pena de morte sabem perfeitamente que
toda vida é importante; inclusive — e principalmente —, a vida de pessoas
inocentes que morrem, sem julgamento, de forma abusiva e cruel, nas mãos de
assaltantes e outros criminosos. Juristas que apóiam a pena de morte não são
necessariamente maus, somente presumem que essa punição extrema contém um poder
de intimidação geral mais eficaz que o medo de um mero e eventual processo que
pode resultar em nada, por prescrição ou fragilidade da prova. Presumem que esse
medo da morte legal certamente diminuirá os casos de latrocínios e homicídios,
com isso protegendo vidas inocentes, mais merecedoras de proteção que vidas até
mesmo profissionalmente criminosas.
Voltando ao tema “ativismo judicial”, este deve é ser aumentado, e não
restringido, no caso brasileiro, porque é impossível exigir do legislador — qualquer legislador, de qualquer país — a
capacidade de prever todas as hipóteses e variantes do comportamento humano. É
por isso — pelo licença para pequena divagação — que sou favorável à edição de
uma lei que permita ao juiz criminal condenar o réu a uma pena abaixo da
mínima, ou até mesmo nenhuma, quando as circunstâncias do crime, comprovado,
evidenciarem que naquele caso específico — evidentemente raro —, a pena, mesmo
em sua forma mínima, representa uma injustiça.
Recentemente, na zona rural de Pernambuco uma mulher foi absolvida, por
unanimidade, pelo júri, em um caso, comprovado, de homicídio contra o pai. Este,
violento, ameaçador, manteve a filha como sua escrava sexual por muitos anos,
gerando vários filhos/netos. Quando ele começou a externar mesma intenção contra
uma neta, a filha reuniu toda a coragem que lhe restava e contratou um matador.
A prova do domínio e escravidão sexual da filha era tão robusta que o promotor
disse que não se sentia moralmente em condições de apelar contra a absolvição.
Foi, de certo modo, um caso de “ativismo” judicial, mesmo ocorrendo no tribunal
do júri, porque este integra o poder judiciário.
Com essa possível lei, agora sugerida, o juiz, para poder desobedecer o
comando legal em fato provado, teria que fundamentar convincentemente sua decisão, mostrando que
não agiu por capricho. Se o Ministério Público discordasse desse entendimento,
recorreria da decisão, o mesmo podendo fazer a vítima do crime. Melhor assim,
de modo franco, do que o juiz ficar obrigado a fazer malabarismos jurídicos e
verbais para concluir, falsamente — embora visando uma justiça superior — que o
“crime não ficou caracterizado” ou que “não ficou provado”, quando o fato restou
mais do que provado. É o que ocorre, por exemplo, com o furto esporádico de
mercadorias, em supermercados, quando uma “ladra” muito pobre — e não sendo
ladra habitual —, furtou um pote de margarina ou objeto de pequeno valor. Dizer,
o acórdão, para absolver a ré, que a justiça não deve se ocupar de coisas
mínimas é perigoso e incentivador do roubo de lojas e supermercados. Se os
miseráveis souberem, de antemão, que roubar alimentos em lojas e supermercados
não significa cadeia, estimularíamos saques diários.
A sugestão acima, de edição de uma lei, foge, porém, do tema central
deste ensaio porque o objetivo deste é defender o ativismo judicial na
interpretação das leis. Existindo uma lei nos moldes acima sugeridos —,
autorizando pena abaixo da mínima —, não haveria propriamente ativismo judicial
porque qualquer cidadão, inclusive o juiz, tem o direito de sugerir ao
legislador a edição de leis. Voltemos, pois, ao ativismo judicial.
É comum, na disputa política, um partido guardar carinhosamente um
“podre” qualquer — até mesmo sexual —, de político ou partido adversário para
utilizá-lo, via mídia, no pior momento do denunciado, impressionando a opinião
pública a ponto de inverter o resultado de uma eleição bem próxima. Pouco antes
desta surge, nos jornais, a “notícia bomba”, com pedido formal de abertura de
inquérito. O denunciante sabe que o acusado não terá tempo para se defender
razoavelmente, mesmo em termos midiáticos.
Pergunta-se: nesses casos, deve o juiz “fazer o jogo” do “estrategista
sabido” que guardou carinhosamente a divulgação de algo errado — ou
aparentemente errado — que conhecia há muito tempo? Não haveria, nesse caso,
uma tentativa de utilização da justiça para vantagens estritamente políticas?
Ou poderia, o juiz, usando um prudente “ativismo” judicial, desconfiando da
real intenção do acusador, despachar nos autos dizendo que a notícia do crime
só seria examinada após a eleição, considerando a inoportunidade de sua
apresentação? Em suma: é obrigação do juiz agir como um marionete, um tolo incapaz
de reagir mesmo ciente de que está sendo usado?
Cito um outro exemplo de recomendável ativismo jurídico: na interpretação
dos testamentos já vi caso em que o testador, querendo, obviamente,
proteger sua possível viúva, estabeleceu
no testamento a cláusula de inalienabilidade vitalícia de dois imóveis que
ficariam em condomínio da viúva e dois herdeiros necessários, filhos do
casamento anterior. Enquanto a viúva estivesse viva, os dois imóveis não
poderiam ser alienados. A intenção do testador era, claro, proteger a viúva,
mas a realidade econômica mostrou que essa inalienabilidade se tornou apenas um
ônus inútil e prejudicial à própria viúva que ele queria proteger. Um dos
imóveis era um terreno perto da praia que só serviria para alguma coisa se nele
fosse construída uma casa. Mas a viúva não tinha dinheiro para construir. Conseqüência:
a viúva, após pagar
IPTU sobre esse terreno, por cerca de 15 anos, já gastou mais com imposto do
que vale o terreno. E os herdeiros necessários, condôminos, também só se viram
prejudicados com a tal cláusula de inalienabilidade. Todos, viúva e herdeiros,
precisariam vender os dois imóveis e partilhar o resultado econômico da venda,
mas o testamento é expresso no sentido de que a inalienabilidade existiria
enquanto a viúva vivesse. O pedido da viúva e dos herdeiros necessários foi
negado pela justiça porque o Código Civil obriga um respeito total à vontade do
testador.
O testador, no caso, simplesmente errou, por falta de orientação, ao declarar
sua vontade quando da redação do testamento. Se ele, por milagre, voltasse a
vida, imediatamente corrigiria o que escreveu no testamento. Houvesse maior
“ativismo”judicial o juiz poderia deixar de cumprir a vontade ditada pelo
testador — e o próprio comando do Código Civil —, demonstrando, na sentença,
que essa vontade, embora nitidamente expressa, foi conseqüência de
má-informação evidente do testador que, mesmo querendo fazer o bem, acabou
fazendo o mal a todos os contemplados no testamento. O pior é que o caso já foi
decidido, em definitivo, contra a pretensão da viúva e dos filhos do falecido,
tendo já decorrido o prazo de uma ação rescisória.
Na área penal, o acanhamento — dos próprios juízes — no encarar o “ativismo”
judicial vem ocasionando uma evidente desmoralização da justiça. É caso da
impunidade em crimes do colarinho branco. Como a Constituição Federal diz que
só se considera culpado aquele cuja condenação transitou em julgado, quem for
tecnicamente primário, tiver residência fixa e renda suficiente para viver bem
só poderá ser preso depois de transitada em julgado sua condenação. Réus
culpadíssimos, mas abonados, conseguem levar, com extrema lentidão proposital, à
instância máxima, seus casos, “engordados” em vários e volumosos autos. Quando
seus processos entram em pauta para julgamento no STF, os réus desaparecem e
aguardam, em local desconhecido, o resultado do julgamento final. Se
absolvidos, ou prescrita a ação, ou condenados a prisão domiciliar, voltam para
casa. Se condenados a prisão em regime fechado, simplesmente somem, podendo até
mudar de nome. Essa impunidade desperta rancor justificado naqueles “não
privilegiados” que, por falta de recursos, não podem “esticar”seus processos. E
leitores de jornais ficam pensando, cada vez mais descrentes.
Mesmo sem uma lei específica contra a impunidade — sempre contornável —,
um “ativismo” judicial bem intencionado poderia consertar a grande falha
desmoralizadora. Bastaria ser criada uma jurisprudência dizendo que, confirmada
uma condenação pela segunda instância, o réu seria preso preventivamente — só
para garantir o cumprimento da pena. Sendo pessoa “distinta”— isto é, com
recursos e residência fixa —, poderia ficar em prisão domiciliar, com
passaporte confiscado e com tornozeleira monitorizando sua presença no lar. Em
crimes de alto valor financeiro, o juiz poderia congelar parte de seus bens,
como modo de garantir a não fuga do réu. E, se o réu sumisse antes do
julgamento de seus recursos a fuga implicaria em confissão e desistência de
todos os seus recursos, expedindo-se mandado de prisão. Estando o réu preso
preventivamente já é de lei que seu processo tem preferência de julgamento. Não
haveria tanta demora para seu julgamento.
Duvido que o Congresso edite uma lei com esse rigor, porque a
necessidade de dinheiro para financiar campanhas eleitorais sempre implica em
risco de transformar o político eleito em réu. Ninguém legisla contra si
próprio. Se, no entanto, a jurisprudência criar tais cautelas, visando impedir
o réu de fugir antes de ser julgado em definitivo, quem poderia deixar de
cumprir a decisão judicial? E a Constituição não estaria sendo violada, porque
a prisão preventiva está prevista em lei.
Outra possível criação jurisprudencial — fruto de um sadio “ativismo”
capaz de trazer de volta o prestígio da nossa justiça — seria a “autorização”, implícita
em Súmula do STF, permitindo que os juizes possam decretar a prisão preventiva
levando em conta também a gravidade do delito, desde que convincente a prova
colhida no inquérito policial ou nos autos judiciais.
A população revolta-se, com razão, contra a liberdade de um indiciado,
ou réu, que — em exemplo forte —, está sendo acusado de haver abusado
sexualmente e assassinado dez crianças, enterrando-as depois em imóvel de sua
posse. O denunciante do caso mostra as fotos horrendas; as cenas filmadas pelo
próprio acusado — há malucos de todos os tipos — em que ele aparece cometendo
suas barbaridades; o quintal do réu onde estão os cadáveres meio apodrecidos; as
gravações telefônicas em que o réu se gaba de suas façanhas e, não obstante
isso tudo, o juiz permita que o réu continue solto — porque não houve prisão em
flagrante — até que, muitos anos depois, receba uma condenação com trânsito em
julgado, que provavelmente não cumprirá porque fugiu. Essa benevolência, ou
apatia, é um insulto às pessoas de sentimentos normais.
Obviamente, não tem sentido decretar a prisão preventiva apenas porque,
em tese — com discutíveis “indícios” —, haveria uma acusação greve. Se, no entanto, o crime é gravíssimo e as
provas documentais — fotos, filmagens e “grampos” — apresentados são muito
convincentes, seria até obrigação moral do juiz decretar a preventiva,
mantendo-a até o julgamento porque é de se esperar que o réu fugirá antes da
sentença.
A atual campanha de desmoralização da justiça, promovida por jornais —
por alegados vencimentos acima do teto remuneratório — encontrou repercussão
favorável na opinião pública porque esta acha-se revoltada, com razão, com a “bondade
inexplicável” de nossas decisões judiciais — principalmente nos processos
contra os poderosos — e também contra a “moleza” com que são julgados
assaltantes e sádicos e perigosos. Para consertar isso é preciso, pelo visto,
um crescimento do “ativismo” judicial, porque esperar muita “firmeza” de nossos
legisladores é problemático enquanto boa parte dele se vê em perigo, acusados
de tráfico de influência. Quando um Poder se omite na sua missão, é dever dos
demais Poderes preencher tal omissão. O que não cabe é dizer ao povo que ele
dever perder a esperança e rezar para não ser a próxima vítima.
Como já ocupei espaço demais, fica por aqui a mensagem.
(4-5-2012)
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