O mundialmente conhecido juiz espanhol, Baltazar Garzón, foi castigado pela instância máxima de justiça de seu próprio país. A Suprema Corte da Espanha, por unanimidade — detalhe que revela o grau de ojeriza dos colegas contra seu “estrelismo de esquerda” — proibiu-o de exercer, por onze anos, qualquer atividade como magistrado. Se a condenação não for anulada ou abrandada pela Corte Constitucional ou Europeia — não sei se admissíveis tais recursos, no caso — essa proibição equivale à uma aposentadoria compulsória como juiz no seu país. Ele está com 56 anos. Daqui a 11 anos estará beirando os setenta.
Tendo em vista, porém, a reação de boa parte das organizações que congregam juízes, como, por exemplo, a Comissão Internacional de Juristas, logo alguém proporá que Garzón consiga assento em órgão internacional de justiça. Dirá: — “Se ele, injustamente punido, não pode ser juiz de Espanha, que o seja mundial!” Ocorrendo alguma vaga, por exemplo, no Tribunal Penal Internacional, é previsível que juristas influentes, com tendência de esquerda, empenhem-se vivamente para se seja aproveitado um juiz “com tanta bravura e independência”. Se não surgir vaga no TPI mas oportunidade aparecer em algum outro tribunal internacional seu nome será lembrado, podem apostar. Uma previsão fácil será dizer que Garzón não ficará desempregado, como juiz, por muito tempo. E se quiser advogar, não lhe faltarão clientes.
Algum leitor dirá que a justiça não pode — ou não deveria poder — ser politizada, com rotulação dos juízes como sendo de esquerda ou de direita. Não deveria poder, mas o fato é que pode, não há dúvida; embora todo juiz prefira negar qualquer influência ideológica nas suas decisões. Se forçado — com muita insistência e sorrisos, por uma entrevistadora bonita —, a confessar “sua leve inclinaçãozinha, excelência...”, dirá que é “de centro”, uma boa saída. Acredito que a maioria dos juízes, nos países democráticos, é realmente de “centro”. Caso admitisse, em impulso irrefletido de sinceridade, que é mais “de esquerda”, ou “de direita”, suas decisões seriam vistas como suspeitas, quando o caso em julgamento tivesse mesmo remota conotação política. Aí, por mais que julgasse com a intenção de ser apenas justo, os adversários ideológicos não acreditariam nessa sinceridade, frisando que pelo menos o inconsciente do magistrado o traiu, ditando a decisão.
É comum, no jornalismo político, o redator fazer previsões sobre como será o voto de tal ou qual ministro e a matéria for de interesse do presidente que o nomeou. Um bom motivo para acabar com a velha prática constitucional de atribuir somente ao presidente da república o poder de indicar ministros das cortes superiores. A indicação deveria vir alternadamente dos próprios juízes e do poder executivo, preservando a independência e harmonia dos poderes. A presunção popular e dos jornalistas, acertada — infelizmente — é a de que a gratidão terá alguma ou muita influência na decisão, conforme a natureza do litígio. E em países ditatoriais, ou semi-ditatoriais as previsões não erram.
É normal e esperável que a filosofia política influa na formação de opiniões, mesmo jurídicas. Não é raro que numa mesma família, parentes divirjam fortemente no modo como encaram a política local, nacional ou mundial. Essa divergência dentro da família não tem muita importância, claro. Quando, porém, tais pessoas se tornam juízes e ocupam as instâncias mais altas, essas diferenças repercutem imensamente. Principalmente quando a “jurisdição” estende-se a todo o planeta, conseqüência da difusão dos direitos humanos.
Disse, no título, que Garzón foi punido com fundamentos errados. Segundo a mídia primeira, a acusação contra ele — a única, talvez, merecedora de alguma punição — foi a de ter mandado gravar conversas entre advogados e seus clientes acusados de ilicitudes. A mídia não esclarece, porém, se Garzón mandou grampear o telefone dos advogados ou o dos seus clientes. A meu ver, não poderia grampear o telefone dos advogados porque com isso estaria interferindo no direito de defesa e no sigilo profissional. Isso porque o advogado e seu cliente têm o direito de conversar com toda franqueza. Se o cliente não pode conversar, pelo telefone, com seu defensor, este, insuficientemente informado, fará uma defesa fraca porque sem base na prova. Pode até mentir desnecessariamente, tentando defender quem o contratou. Passará vexame nos julgamentos, completamente “por fora” dos fatos. E todos sabem que o cliente não deve mentir para seu próprio advogado.
Se, porém, Garzón mandou grampear apenas o telefone do suspeito de atos criminosos, não há o que censurar no polêmico magistrado. Se a escuta de telefone precisa estar “autorizada por um juiz”, sendo Garzón um juiz não há porque censurar seu procedimento. A menos que na Espanha sua legislação afirme que apenas determinados juízes possam autorizar o grampo telefônico, o que não parece ser o caso. E não teria muito sentido quando, grampeado o telefone de um suspeito, surgindo nas conversas detalhes seus sobre atos criminosos, a autoridade que ouvisse as gravações mandasse apagar na fita as confissões dos crimes só porque no outro lado da linha estava um advogado. Se o suspeito dissesse que “o dinheiro que roubei do governo está na casa do meu irmão”, ou que “as crianças que matei eu enterrei no meu sítio”, isso não poderia ser ignorado pela justiça. O direito á privacidade não pode ser tão amplo assim. Se o criminoso e seu advogado precisam conversar com toda a franqueza, que conversem em local afastado, ou dentro do escritório do advogado, onde não poder haver aparelhos de escuta. A comodidade do uso do telefone não pode prevalecer sobre a necessidade da sociedade se defender contra os comportamentos criminosos.
Outras atitudes de Garzón que provocaram notícia foram: a prisão de Augusto Pinochet, em 1998, quando o ex-ditador estava em fora de seu país, em tratamento de saúde; o suposto favorecimento de um banqueiro que lhe pagou regiamente para fazer conferências em Nova York, e a abertura de investigações sobre o franquismo, objeto de uma anistia firmada em 1978. A remuneração pelas conferências, se não proibida pela legislação espanhola, não poderia ser fundamento para seu “exílio judicante”. Bastaria uma advertência. Mas se a moda pega, juízes que “aparecem” muito na mídia cada vez mais estariam “desaparecendo” de seus locais de trabalho, convidados para fazer palestras lucrativas. A respeito, seria conveniente que todos os tribunais proibissem que seus juízes recebessem qualquer tipo de remuneração por aulas e conferências. Juízes da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional não podem lecionar e se fizerem alguma palestra não podem receber qualquer tipo de remuneração. Por isso ganham bem.
Qual o “fundamento” que seria justificável para punir Garzón? Seria a sua pretensão de se erigir em juiz universal, sem consultar ninguém mais que ele mesmo. Apoiado nessa conclusão de que é um juiz especial, passou a prender e processar quem bem entendia, desde que acusado de crimes contra a humanidade, violação de direitos humanos e crimes assemelhados. A se pensar assim, até o Papa, pelo visto, ele poderia mandar prender, sob o argumento, por exemplo, de que não foi suficientemente severo em punir bispos não suficientemente firmes em expulsar membros do clero acusados de pedofilia. Ele alega que crimes contra a humanidade são imprescritíveis — opinião dele — e que os direitos humanos têm aplicação universal. Por isso, ele, Gastón, assumiu as rédeas da justiça universal e decidiu prender e punir ex-ditadores, ignorando o que foi acordado, depois de exaustivas discussões, nos países que viveram sob regimes de exceção. A idéia de que os direitos humanos devem ser obedecidos em todos os países é excelente mas é preciso que a ONU, ou órgão equivalente, discipline quais juízes têm jurisdição e competência para impor os direitos humanos em escala global.
A quantidade de direitos humanos — hoje há algumas dezenas deles —, varia conforme o estilo — mais conciso ou prolixo — de quem elabora tais listas. Somente idiotas morais podem hoje se opor à efetivação desses direitos em todos os recantos da terra. É preciso, porém, que tais direitos sejam discutidos e aprovados por todos os países. Em países que passaram por guerra civil e mortandade de parte a parte, quando as alas inimigas chegaram a um acordo, pondo uma “pedra em cima”, com mútuo esquecimento das respectivas ofensas, não cabe a qualquer juiz proclamar-se juiz universal, levantando a “pedra”, como se fosse um rei planetário, sem qualquer restrição para modificar tudo o que foi arduamente combinado, pondo fim a longos conflitos. Feridas já fechadas e costuradas em acordos não devem ser reabertas. Não é possível, também, ignorar que já existe o Tribunal Penal Internacional, e outros tribunais provisórios, encarregados de julgar crimes contra a humanidade.
O perigo das inovações de Garzón está também no fato de seu comportamento incentivar outros juízes, indignados com impunidades, a abrir processos sigilosos contra qualquer político que cometa a imprudência de por os pés fora de seu país. E tem mais: se quatro juízes espanhóis, por exemplo, passarem a prender e processar ex-ditadores ou mesmo presidentes eleitos, chegando a conclusões diferentes quanto à culpa ou grau de culpa dos réus, qual a decisão que será considerada a verdadeira, a “autêntica”? A mais grave?, a mais leve?, a média das penas impostas?
Digo isso apenas para frisar que juízes locais, isto é, de qualquer país — no caso, a Espanha — não podem, por auto-nomeação e iniciativa, se transformar em juízes mundiais. Mesmo que a legislação local, em um escorregão jurídico, tenha permitido essa liberdade de ação, bastando o juiz-acusador frisar que entre os massacrados por um ditador, ou ex-ditador, havia dois, três ou mais espanhóis. Nesses violentos e demorados conflitos sempre há vítimas de várias nacionalidades. Violência gera violência e tecidos já cicatrizados é melhor que permaneçam como tais. A justiça não pode ficar indiferente ao lado prático e pacificador de sua função. E se quiser uma justiça mais absoluta, que essa sistemática seja disciplinada por uma autoridade mundial, não conforme a opinião de cada juiz do planeta.
(10-02-2012)
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