A era da mediocridade. Parte II.
Advertência: antes do leitor iniciar a leitura de algumas considerações que se seguem, deixo expresso que não me considero, moralmente, nem acima nem abaixo do nível médio da humanidade. Tenho virtudes e defeitos, como todo mundo. Explico isso porque lendo as exigentes considerações éticas contidas no texto, alguém poderá imaginar, erroneamente, que o articulista se posiciona num plano superior, como um pretensioso juiz do resto da humanidade.
Longe disso. Se algumas fraquezas humanas parecerem, eventualmente, bem examinadas no texto é porque conheço-as bem. Já lidei com elas dentro de mim. Se adentrei no campo das considerações morais, e não da técnica, foi porque não tive outra alternativa. Cheguei à conclusão — já bem difundida, por óbvia —, de que o avanço da Ciência, da Tecnologia e mesmo da Economia não bastam para nortear o futuro da humanidade. Falta alguma coisa. Quando Einstein disse que, ocorrendo uma Terceira Guerra Mundial (provavelmente atômica), a Quarta seria travada com pedradas e pauladas, ele sabia do que falava. Pereceremos não por falta de conhecimentos técnicos — que temos de sobra —, mas por uma espécie de embriaguez moral. E embriaguez existe de todo tipo. Entre as “moléstias” morais que sugam ou transformam nosso sangue em água figura uma, modesta na aparência mas de muita conseqüência: a aceitação resignada da mediocridade. A própria e a alheia. Poucos se preocupam com um trabalho bem feito.
Prosseguindo na minha desagradável — sinceramente, gostaria de dispensá-la, por desnecessária — tarefa de externar a difusa sensação de mediocridade planetária — certamente compartilhada pelos leitores mais inconformados —, abordarei aqui algumas facetas dessa impressão desanimadora que contamina quase tudo. E que não é de agora.
Procurarei demonstrar que essa vulgaridade generalizada parece originar-se, bem lá no fundo, de coisas bem corriqueiras, “pedestres”: o desprezo pela formação do caráter (dos filhos e de nós mesmos, porque nunca terminamos de nos esculpir); o horror à autodisciplina; o perdão antecipado da própria e da alheia preguiça; a convicção de que toda a culpa está nos outros (inclusive nos genes com que nascemos); a aceitação da mentira, quando charmosa e lucrativa.
As preocupações acima enumeradas são consideradas hoje como tolice piegas porque, “cá entre nós, caráter não dá dinheiro”. — “Ele dá é um tremendo prejuízo!”, gritarão muitos que só foram prejudicados, de uma forma ou outra, por terem uma visão “tímida”, “responsável em excesso”, da própria profissão e outros “códigos morais” de uma “velharada” que só se tornou moralista porque já não tem mais capacidade nem vigor para malandragens mais complicadas.
Já há 40 anos atrás, um amigo meu, formado em Direito, muito sério e correto, após passar em um concurso para fiscal na área tributária, queixava-se do fato de se sentir marginalizado pelos colegas. Isso porque não aceitava dinheiro para “fechar os olhos”. Era chamado, ironicamente, de “Catão”, aquele senador romano dos tempos de Júlio Cesar que não transigia com a desonestidade. As virtudes da sinceridade e da modéstia são, de há muito, verdadeiros venenos, “tiros no pé”, em um mundo que só valoriza o êxito financeiro. Entre dois irmãos, de igual inteligência, criados em um mesmo ambiente, “vencedor” mesmo será aquele que conseguir ganhar muito dinheiro, com ou sem escrúpulos. Se tiver escrúpulo, melhor, os parentes não correm o risco de passar vergonha quando a coisa for descoberta. Não o tendo, “isso não é importante porque se ele não fizer isso, outros fazem; e como todos têm algum segredo guardado, ninguém está moralmente autorizado a criticar ou punir quem quer que seja”.
É difícil compreender como a concomitância no avanço da ciência, da tecnologia, da democracia do voto, da investigação, da ampla e gratuita disponibilidade da informação — via internet — resultou em somatório tão pequeno. Se o “todo” (a civilização) é a soma das “partes” (ciência, tecnologia, ética, artes, etc.), trata-se de uma soma bizarra porque, nela, o todo vale menos que as partes, imensamente avançadas, a indicar que a humanidade precisa de um novo referencial, um novo ideal — com ou sem religião —, que não seja apenas o desejo de encher o bolso, consumir e gozar. — “Goze, irmão!, porque a vida é curta. Estudar demais não passa de masoquismo e vaidade! E para rápida ascensão o que vale mesmo é um bom pistolão”.
Sei que o passado da humanidade foi sobrecarregado de sofrimento mas, pelo menos, nesse sofrimento havia a atenuante da ignorância invencível e generalizada. Inclusive dos supostos “sábios” que nem sabiam que o sangue circulava e que há inimigos invisíveis, vírus e bactérias, querendo entrar em nossos organismos para se banquetearem. Na Idade Média as residências não tinham banheiro dentro de casa. Nos castelos, mesmo de reis, usavam-se penicos cujo conteúdo era despejado em determinado local, do lado de fora dos muros. Com o tempo a área, olhada do alto, parecia um pequeno mar azulado que “ondulava’. Eram as moscas, felizes, movimentando-se deliciadas no banquete de chocolate. Limpeza dos aposentos? Quase nada. Quando o rei e sua corte mudavam de castelo? Quando o fedor se tornava insuportável. Informação ao povo? Difícil. Não havia imprensa. No entanto, reis e príncipes “sabiam tudo sem nunca terem estudado nada”, porque os maiores “sábios” eram convocados para assessorar os monarcas, orientando-os em todos os negócios.
Aliás, hoje ocorre algo semelhante. Um presidente sem formação superior, pode fazer um bom governo se tiver bom senso, preocupação com os mais fracos, honestidade (intelectual e financeira) e, sobretudo, coragem. Nesse último fator tenho grandes esperanças com a Presidente Dilma. Acho até, paradoxalmente, que foi uma bênção — para ela e para nós, cidadãos —, que tenha sido torturada porque quem passou por essa terrível experiência — dor (certamente) e inevitável pavor —, e suplantou o trauma — como parece ter sido seu caso —, torna-se muito mais corajoso do que antes. “O que não me mata torna-me mais forte”, dizia um filósofo. E a coragem, na política, é uma virtude imensamente importante. Sem ela, dizia Winston Churchill, as demais virtudes tornam-se inúteis, porque imobilizadas pelo medo. Há, porém, que acoplar à coragem, outras virtudes especialmente exigíveis no estadista: o realismo e uma heróica honestidade mental. Realmente, não é fácil tomar tal ou qual decisão quando o partido e o “povo” — essa criança impetuosa e paparicada — exigem decisão contrária que favoreça seu bolso imediatamente. Um grande incentivador da desonestidade mental está no fato de que ninguém, ninguém — a não ser com a confissão do próprio estadista —, pode provar que este decidiu contra a própria consciência. Só ele mesmo sabe disso, mas não revelará nem no leito de morte, preocupado em não sujar sua biografia.
Alguém dirá, justificando a aceitação passiva da própria ignorância, que hoje a informação está, de fato, disponível mas o tempo que se gasta no trabalho e no trânsito não deixa espaço para a busca da cultura e da informação. — “Para a maioria é só trabalhar, perder tempo no trânsito, comer, assistir um pouco de televisão e dormir”.
Discordo. Nos dias úteis é isso mesmo, mas, e nos fins de semana e feriados? Como é utilizado o tempo? A internet é mais procurada para diversão, joguinhos, fofocas e sexo visual. “Feriadões” são muito mais utilizados para demoradas viagens em estradas congestionadas, ou para assistir partidas de futebol, “vale-tudo’ sanguinolentos, cervejadas, futebol e programas de auditório, todos de fraco nível cultural.
O futebol, quando praticado realmente — não sentado no sofá ou na arquibancada — seria benéfico à saúde. Mas, entre os torcedores, quantos realmente praticam esse esporte com regularidade? Essa atividade mudou de significado: tornou-se um campo de batalha e ódio cultivado e acumulado (pancadarias, assassinatos, agressão contra árbitros, técnicos e atletas). Conforme o resultado de um campeonato, hordas de jovens exaltados incendeiam carros, depredam lojas, cercam e espancam o time contrário, ou mesmo o próprio, quando perdeu. — “É sua obrigação ganhar, senão vai apanhar!”
O futebol adquiriu um prestígio desproporcional ao seu valor intrínseco, como mero esporte, isto é, exercício físico e distração. Esse prestígio migrou para outras áreas que nenhuma relação possuem com ele. Se o Pelé, dez anos atrás, se candidatasse a presidente da república e na campanha, contratasse hábeis redatores de discursos — focalizando temas mais complexos — ou seria eleito ou teria impressionante vocação. Gerou até mesmo uma nova “aristocracia”: “Rei Pelé’, “Imperador Adriano”. E não sei se logo teremos “condes”, “barões”, etc.
Recentemente, a ABL – Academia Brasileira de Letras” conferiu a “Medalha Machado de Assis” ao jogador Ronaldinho Gaúcho, o que é um evidente exagero na preocupação de agradar as massas. Se pelo menos o referido jogador fosse dado às letras, escrevendo —, ou entusiasta leitor, nas horas vagas —, essa honraria teria alguma razão de ser, pelo menos como estímulo a um atleta apreciador da literatura. Ronaldinho não merece qualquer censura por haver aceitado a homenagem porque seria grosseria recusar, mas que é estranho, é. Só falta, agora, a CBF, por reciprocidade, conceder a algum velhinho imortal da ABL, que nunca chutou uma bola, a medalha “Pelé” ou “Garrincha”, caso existam. A propósito, é um tanto decepcionante a prática, quase obrigatória, de candidatos à referida Academia visitarem todos os seus membros, solicitando votos e fazendo agradinhos. Se fosse apenas para averiguar se o candidato é uma pessoa de agradável convívio, ou um “casca grossa” inteligente, ainda se justificaria a prática. Mas não parece ser esse o fundamento de tais visitas. O ideal seria que o candidato fosse avaliado pelo seu talento como escritor e ponto final.
Ao iniciar esta Parte II do vasto tema da “Mediocridade” era minha intenção abordar, especificamente a arte plástica moderna, a literatura e um pouco do jazz. Nunca compreendi o porquê do imenso prestígio de Picasso como pintor. Para mim ele foi um excepcional psicólogo e expert do marketing e propaganda. Chegou a dizer, com outras palavras, que recebendo um museu vazio, poderia logo enchê-lo com seus quadros. O que não era bazófia porque qualquer coisa que ele colocasse na tela seria sempre “um Picasso!”. Fazia ironia com seu próprio sucesso dizendo que não era rico o suficiente para ter pendurado em sua casa um “Picasso”. Desprezava a necessidade do artista, desenhando qualquer coisa, fazer coincidir seu desenho com o que via ou recordava. Achava que o artista deve pintar o que sente, não o que vê, o que, levado ao pé da letra, autorizaria qualquer um a se auto proclamar grande pintor mesmo totalmente incapaz de desenhar qualquer coisa.
Como este artigo já se estendeu demais, ficam os Picassos e outras espertas feras da psicologia, digo, da pintura, para o próximo capítulo da novela da “Mediocridade”.
(27-2-2012)
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