segunda-feira, 29 de agosto de 2011
Crianças fazendo “arrastões” em São Paulo
Em entrevistas recentes é preocupante a filosofia de algumas autoridades sobre qual a reação mais recomendável da sociedade contra os freqüentes “arrastões” compostos de meninos e meninas de pouquíssima idade, principalmente na cidade de São Paulo.
A maior parte das altas autoridades encarregadas de lidar com o assunto encara o problema com excessiva tolerância filosófica. Enxergam apenas um dos lados do problema. Argumentam que tais crianças não passam de vítimas da sociedade; elas não têm culpa nenhuma quando invadem lojas para furtar o que bem entendem e reagem com agressividade quando apreendidas. São infelizes frutos do meio. Por isso — prosseguem —, sendo apenas vítimas, não devem nem podem, legalmente, sofrer qualquer tipo de repressão, contenção ou constrangimento como, por exemplo, a internação forçada em órgão estatal para educação, cura de dependência química, alimentação sadia e formação do caráter. Produtos de lares desfeitos, vivendo ao Deus dará — muitas delas drogadas —, não poderiam — insistem — ser diferentes. E suas mães, que não as controlam, são tão desamparadas — por vezes drogadas — e infelizes quanto os pequenos infratores. Em suma, concluem, produtos humanos da miséria não podem ser salvos com repressão. “É preciso cuidar das causa, não dos efeitos”. E como a lei não autoriza qualquer internação contra tais crianças o jeito seria deixar tudo como está, à semelhança dos pequenos macacos da índia que vivem soltos em cidades, ameaçando turistas que se negam a lhes entregar o que comem no momento.
Para tais filósofos sociais — sempre bem intencionados, frise-se — o problema está na inércia do Estado, na injustiça da economia, na indiferença ou egoísmo da sociedade, na falta de adequada estrutura governamental, tanto em termos de alojamento quanto de eficácia burocrática. Assim, prosseguem, enquanto não corrigida a verdadeira e remota origem do problema — que explica a pobreza, a ignorância e tudo o mais —, não há muito o que fazer. Ponderam, finalmente — desta vez com razão — que mandar prender os pais relapsos, agravaria mais o problema. Jogada a mãe no cárcere, só aumentaria o abandono dos filhos, mesmo que tais mães decidam fazer um esforço extra para colocar a criançada no bom caminho.
Já para as “medianas autoridades” — leia-se polícia — o máximo permitido pela legislação é levar tais mini-infratores — “minis”, mas não minimamente temidos — para entidades referidas pela lei, mesmo sabendo que ali não permanecerão mais que algumas horas.
Dominam-se, os policiais, com elogiável paciência — e assim devem continuar —, para não dar umas palmadas pedagógicos, bem merecidas, nos moleques mais agressivos que, quando contrariados, totalmente cientes da impunidade, depredam móveis e arquivos de repartição pública. Até mesmo ameaçam policiais. Convencem-se de que são “reizinhos intocáveis”. Como são cem vezes mais inteligentes que os referidos macacos indianos — e desconhecedores absolutos do alto potencial moral e intelectual deles mesmos —, o perigo de nossa inércia em enfrentar o problema dos menores infratores não tem apenas um interesse folclórico, como no caso indiano. Com nossa omissão, em termos práticos, estragamos — na verdade corrompemos —, ainda mais os menores abandonados, transformando-os em futuros delinqüentes adultos, totalmente isentos da sensação de culpa quando cometem delitos, cada vez mais pesados. Afinal, foram induzidos a pensar que “criminosa é sempre a sociedade, nunca nós mesmos”.
Há, também, nesse descaso, um problema imediato: inexistindo qualquer tipo de força estatal contrária à prática do “Pegue o que quiser e corra!”, logo, logo, centenas ou milhares de menores passarão a fazer o que antes temiam. Verificado o potencial de algum lucro nessa nova forma de criminalidade desorganizada— mas indiretamente incentivada por nossa omissão —, é previsível que os arrastões se multipliquem, até mesmo orientados por marmanjos, que sentem no ar o lucro potencial. Mães que já perderam todo o estímulo de lutar por uma vida melhor talvez vejam essas pequenas pilhagens com alguma simpatia, pois só assim podem comer bombons recheados, iguaria para elas usualmente inacessível.
E a população, cada vez mais assustada, já não sabe como proceder. O comerciante se pergunta: — “Fecho a loja ou contrato seguranças? E o que eles poderão fazer? Nada! Uns dias depois as meninas estarão de volta! Podem até incendiar minha loja, porque reagi!”. Se, tentando impedir, fisicamente, o saque de mercadorias, o comerciante ou o segurança machucar — mesmo de leve e involuntariamente —, os desinibidos infratores, corre o risco de um processo criminal por lesões corporais leves.
Como resolver o problema?
Lendo-se algumas entrevistas das altas autoridades, tem-se a impressão de que a solução do problema — ou melhor, a falta dela — sofre dupla influência: a da referida “abrangente compreensão sócio-filosófica do problema” e o pavor do “politicamente incorreto”. Medo de parecer “duro demais”, “nazista”. — “O que a imprensa dirá de mim se eu for filmado ou entrevistado dizendo que tais crianças, quando reincidentes, devem ser levadas e mantidas à força em instituições do governo?”. A impressão que tenho é de que o medo do politicamente incorreto prepondera sobejamente sobre o enfoque meramente filosófico.
Longe de microfones e de repórteres, as opiniões são, com freqüência, diferentes. Comparam, na imaginação, os modos de educar crianças, inclusive seus próprios filhos, e concluem que a velha e “chata” disciplina, embora desagradável, é necessária. Lembram-se do que disse um filósofo: “Cada nova geração é uma invasão de bárbaros”. Selvagens por natureza, embora engraçadinhos, sejam eles frutos de lares ricos ou pobres. Que o digam os casos de “bullying”, na meninice, transformados depois em assédio moral, na idade adulta. Constatada a fraqueza de alguém, surge, instintivamente, em grande parte dos seres humanos, de qualquer idade, o desejo de esmagar, ridicularizar, enganar, inferiorizar, uma espécie de herança, congênita e maldita, ainda não erradicada da espécie humana.
Todos conhecem famílias, bem numerosas e de origem humilde, em que nenhum dos filhos e filhas se tornou marginal. Moças corretas que cresceram e estudaram com muito sacrifício, nunca lhes passando pela cabeça a mera hipótese de vender o corpo para subir na vida. Um sadio “medo da desonra”. Mesmo o adultério — fruto de paixão sincera, com sua “santificação romântica”, não entrava facilmente em cogitação. Suas mães, criadas também “às antigas”, como que vacinaram as filhas contra essas tentações, mesmo sem fazerem eruditas preleções a respeito. A religião também exercia papel importante nessa luta. Não estou aqui acusando as garotas de programa, nem suas mães, porque cada caso é um caso, e a honestidade — quando absoluta — é quase receita infalível de pobreza, em um mundo corroído pela ganância e todos os seus subprodutos.
O ideal, claro, é que os próprios pais criem e orientem seus filhos. Quando, porém, as mães já atingiram o fundo do poço, físico, econômico, social e moral — talvez drogadas e praticamente irrecuperáveis —, a única solução, sábia e corajosa, é o Estado reconhecer sua omissão passada e, pondo-se logo em ação, redimir-se, colocando tais crianças em famílias de boa formação, que as aceitem, ou — ou, ou — colocando essas crianças, mesmo contra a vontade delas, em instituições estatais de onde não possam escapar facilmente pulando o muro. De crianças de rua que nunca experimentaram qualquer disciplina, só conhecendo a linguagem do medo de marginais mais fortes, não se pode esperar que aceitem facilmente aquelas disciplinas “chatas” a que as crianças de boas famílias se habituaram, mesmo sob protesto: tomar banho, alimentação balanceada, horas certas para estudo, brincadeira e sono. Se, inicialmente, recolhidas em instituições estatais, depredarem ou incendiarem as camas, que durmam no chão. Com o tempo, acharão mais confortável uma cama que o cimento frio.
Essa “moleza filosófica” — embora bem intencionada, de nunca dizer “não!” a uma criança viciada na indisciplina—, não é coisa recente nem apenas do Brasil. Exatamente dezenove anos atrás, estando estive em Londres, fazendo um curso rápido de inglês, li uma notícia local que já revelava uma tolerância irracional no encarar os caprichos de crianças.
Em uma escola, não me lembro se pública ou particular, o professor de Ciências Naturais dava sua aula à garotada. A certo momento o bedel abriu a porta da sala de aulas e avisou ao professor que o diretor queria falar com ele. O professor, que nesse momento segurava uma peça de metal, largou o objeto em cima da mesa e saiu da sala, dizendo que voltaria. Um dos meninos aproveitou a ausência do mestre e segurou, com algum pano, o objeto na chama permanente, um “bico de Bunsen”, muito comum nessas aulas. O menino sabia que o professor, quando voltasse à sala, iria continuar a explicação, pegando de volta objeto, queimando-se. Dito e feito. O professor pegou a peça quase em brasa, gritou, contorceu-se e a cena provocou risos deliciados da garotada. Indignado, ele pressionou, de imediato, os meninos e logo descobriu quem tinha sido o “engraçadinho”. Um tanto fora de si deu um tapa na cara do promissor sádico adulto. O menino queixou-se ao pai, o pai procurou a direção do colégio e o professor perdeu o emprego, além de responder a inquérito que não sei em que resultou porque eu não lia jornais locais regularmente.
Seria interessante saber, hoje, se a punição do professor injustiçado foi boa ou ruim para a formação moral do menor. Será que não se gabava, com os amigos, de ter queimando a mão do professor além de expulsa-lo do magistério? Fosse eu o diretor da escola, teria, no máximo, aplicado uma pena de advertência no “esquentado” mestre e criticado vivamente o pai do moleque por não educar o filho. “Monstros” pequenos, quando não corrigidos, tornam-se frequentemente “monstros grandes” na idade adulta.
Voltando aos dias atuais, no Brasil, espera-se que a opinião pública pressione os governos no sentido de exigir as alterações necessárias na legislação, de modo a retirar das ruas crianças que pratiquem arrastões, ou frutos freqüentes, colocando-as em instituições governamentais ou particulares que aceitem essa incumbência em troca de um pagamento mensal. Deixá-las à vontade, cheirando cola e praticando delitos, é agir de forma irresponsável, incentivadora da criminalidade e até inimiga dessas crianças. O vasto problema tem que ser atacado nas duas pontas: nas causas ( miséria e ignorância) e nos efeitos ( crianças soltas cometendo infrações).
Consertar as causas remotas, políticas e econômicas, é tarefa demorada, complexa. Enquanto não corrigida a causa, que se cuide, já, agora, dos efeitos, recolhendo essas crianças mesmo contra vontade delas e de seus pais — quando constatado que estes não conseguem dominar seus filhos. Ninguém pode garantir que entre essas crianças que entram nas lojas para furtar não está um potencial futuro cientista nuclear, um jurista, um grande atleta, um genial escritor ou um ótimo eletricista ou encanador que só realizará seu potencial genético se receber boa alimentação, estudo e disciplina, nas doses certas e sem agressões físicas.
Que os governos acordem enquanto é tempo.
(29-8-2011)
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