Hesitei algumas horas antes de escrever sobre José Saramago, falecido tão recentemente. Conselhos contra minha “heresia” e falta de “timing” não faltaram: — “Não se atreva, meu amigo, a criticar um Nobel tão unanimemente aplaudido! Com tanta gente elogiando, não é possível que todos estejam errados! É até covardia criticar quem já não pode se defender. Se não gostava dele, por que não o atacou quando ainda vivia? Espere, pelo menos, que esfrie o corpo!” — disseram-me alguns conhecidos.
Um deles, mais franco, me advertia: — “Vão dizer que você, como escrevinhador desconhecido, ignorado por editoras — desculpe a sinceridade, você provocou... —, está despeitado com o sucesso de um grande homem de letras! Não se esqueça que ele foi o único escritor de língua portuguesa a receber a maior láurea literária, quebrando a prevenção, certamente política, da Fundação Nobel contra nosso idioma! Além do mais, você de vez em quando me dizia que não conseguia lê-lo. Assim, como tem coragem de criticar uma escritor que, confessadamente, não conseguia ler? “Não li e não gostei”, este é seu lema superficial no julgar o talento alheio?”
Não obstante esse pelotão de fuzilamento moral — realmente não é de bom tom censurar pessoas recentemente falecidas, principalmente se famosas e queridas —, atrevo-me a apresentar uma restrição, talvez apenas “gráfica”, contra o único Nobel recebido por escritor de nosso idioma. Por que o faço?
Primeiro, porque sou um incondicional admirador da clareza, da verdade e da sua irmã gêmea, a sinceridade. Mesmo quando doloridas aos ouvidos — respeitadas, claro, as amenas convenções sociais. Talvez esse apego à verdade seja sinal de ingenuidade inata — ou mesmo preguiça mental —, considerando que a mentira exige um trabalho cerebral do qual está dispensada a mera exposição dos fatos tais como são, própria dos “simplórios’. E não esquecer que o trabalho imaginativo exige boa memória. Máximo Gorki, o grande escritor russo que viveu algum tempo entre vagabundos e pequenos marginais, descrevendo, em um de seus contos, um personagem particularmente desastrado, disse que ele não era suficientemente experto para ser ladrão. Ladrões, usualmente, são astutos. O exercício profissional do mal exige muito mais massa cinzenta que a fácil emissão de opiniões sinceras. Por outro lado, a adesão à verdade — por opção, não por deficiência — é o selo de ouro da grandeza moral.
Sob esse aspecto, estritamente ético, faço parte do grupo dos admiradores de Saramago, porque o escritor português sempre foi um homem franco, intelectualmente corajoso e, suponho, até mesmo fisicamente destemido. Quando ficou sem emprego, na faixa dos cinqüenta anos, tomou uma decisão de extrema bravura: dedicou-se exclusivamente à literatura, tempo integral, arriscando seu futuro. Em vez de montar um negociozinho qualquer capaz de garantir o ganha-pão, jogou no “tudo ou nada” e acabou campeão, escrevendo prolixamente, mesmo com idade avançada.
Em favor do escritor Nobel cabe também reconhecer que sempre foi um intelectual sensibilizado com o sofrimento dos menos favorecidos. Além do mais, quem com ele conviveu afirma que era um homem de convívio agradável, mesmo não abrindo mão de suas opiniões, por vezes ásperas e avessas a “panos quentes”. Enfim, “personalidade forte” era o que não faltava a esse grande vencedor da concorrida maratona cerebral conhecida como Premio Nobel de Literatura.
Incidentemente, cabe aqui a informação de que no primeiro testamento de Alfred Nobel — o químico e industrial que inventou a dinamite — a Literatura não foi prevista como item de premiação. Havia dúvida a respeito. Alfred Nobel pensou, inicialmente, apenas em química, física, medicina e outros assuntos mais “objetivos”. Tendo, porém, que permanecer afastado dos negócios, por uns dois anos, resolveu ocupar seu tempo escrevendo peças de teatro. Aí percebeu o quanto era difícil algo que parecia fácil: escrever bem. E nisso incluo a pontuação. Daí um novo testamento e a inclusão explícita da Literatura — “de conteúdo idealista”, obrigatoriamente — na lista anual dos cobiçados Prêmios. Prêmios que não seriam tão desejados se a recompensa financeira fosse apenas simbólica: a medalha de ouro e o diploma. Lembrar isso não diminui o mérito de quem recebe honraria — ao contrário, aumenta-o, em razão da aguerrida concorrência — mas dá uma pista sobre a motivação mais profunda dos seres humanos. Inclusive dos “espiritualizados literatos”, o que não era o caso de Saramago, materialista convicto. Alfred Nobel, empresário extremamente inteligente, sabia com quem lidava — o gênero humano — quando criou a Fundação Nobel, com seu cobiçado prêmio em dinheiro.
Considerações feitas, explico porque não conseguia — e ainda não consigo — ler os livros de Saramago: inicialmente, por sua aversão, aparentemente incontrolável, à abertura de novos parágrafos, transformando as páginas em “paredes gráficas”, nada atraentes da leitura voluntária. Algo parecidas com as escrituras públicas de tabeliães que começam com “Aos tantos dias da era cristã, neste cartório, etc.”
Com essa desanimadora constatação, eu comprei apenas dois volumes do escritor em referência e praticamente esqueci o assunto, sempre me prometendo ler, qualquer dia, um livro do escritor português. Sentia-me culturalmente culpado por não conseguir sentir-me bem com autor tão aclamado.
Com a notícia de sua morte e lendo, em jornais, depoimentos extremamente elogiosos de pessoas bem conhecidas no mundo intelectual, fiquei impressionado com meu “evidente” atraso cultural, deixando de apreciar um intelectual tão importante. Aí, peguei de volta os dois volumes dele e novamente tentei lê-los. Inútilmente. Descobri que Saramago não só detestava abrir novos parágrafos como também desafiava as normas usuais de pontuação. Também não gostava de ponto final. Seu texto é uma enxurrada de associações de idéias com escassa preocupação de ordem, coerência e pontuação. O que lhe vinha à cabeça, ele datilografava, ou digitava. Parecia pensar: —“O leitor que se vire para organizar o que escrevi, não vou perder tempo com essas ninharias”.
Esse método de trabalho tem a vantagem, para qualquer escritor, de permitir uma produção muito mais extensa, porque economiza tempo. Boa parte do trabalho de escrever — qualquer autor ou jornalista responsável sabe disso — é consumida na tarefa de pontuar, facilitando ao leitor a compreensão das idéias. Escrever um imenso e graficamente denso “rascunho”, registrando, sem auto-crítica, idéias soltas que venham à cabeça, não me parece prática recomendável. Nem mesmo um Nobel deveria dar-se a tal luxo de descortesia para com o leitor. E o grande perigo dessa prática está no surgimento de imitadores do estilo. Com o incentivo involuntário à indisciplina expositiva, nossa língua, já pouco conhecida internacionalmente, será menos admirada, provavelmente.
Fui juiz por pouco mais de vinte e dois anos e, nessa condição, acostumado — como os advogados e promotores — a conviver com certa objetividade e ordem na narração dos fatos e do direito. Tentando ler os livros do referido escritor eu pensava comigo mesmo: “ Uma petição inicial escrita deste jeito seria rejeitada liminarmente como “inepta”, segundo a nomenclatura jurídica processual. Confusa demais ainda que, talvez, possa conter idéias interessantes. Qualquer texto de medicina, geografia, economia, filosofia, política — seja o que for —, exige alguma disciplina, mental e gráfica. O pensamento, falado ou escrito, exige ordem. As regras de pontuação não existem por mero acaso. São exigências até da civilização. Por que jogar fora as conquistas culturais da humanidade?
A concessão do Prêmio Nobel a Saramago não me parece ter sido — a longo prazo —, boa promoção da literatura de língua portuguesa. Explico: quando um escritor recebe tal premiação há uma automática procura por suas obras, traduzidas, no mundo inteiro. E, no caso de Saramago, o que provavelmente acontecerá? O leitor estrangeiro pensará, lendo um texto quase sem parágrafos e pontos finais, sem grande preocupação com o arranjo rigoroso das idéias, que todos os escritores na língua do novo Nobel são um tanto “desorganizados”. E com isso fica prejudicada a imagem geral dos autores do país. No caso, os escritores portugueses, brasileiros e das ex-colônias portuguesas na África.
O grande perigo da consagração de escritores ”graficamente desorganizados” está no estímulo involuntário à imitação. Candidatos a escritor que queiram “brilhar” na área não mais sentirão escrúpulo de redigir textos totalmente despreocupados com a ordenação do pensamento. Até mesmo em composições escolares os alunos que escrevem de qualquer jeito, se forem repreendidos pelo professor, pela falta de ordem e pontuação, defender-se-ão dizendo que o professor está “desatualizado” e que seu trabalho escolar adota o “estilo Saramago”, já consagrado pelo Nobel.
Com as melhores intenções, a Fundação Nobel prestou talvez um desserviço à língua portuguesa, quando conferiu o prêmio a um escritor que, embora moralmente íntegro — pelo que dizem as pessoas que o conheceram — não tratava a língua com a usual reverência. Editores estrangeiros procurarão traduzir para seus respectivos idiomas a obra do autor aqui referido, mas certamente farão isso apenas pelo fato do escritor ter recebido a grande honraria, garantia de boas vendas no mercado editorial.
Há momentos em que me pergunto se Saramago — homem inegavelmente inteligente e comunista convicto —, não estava sendo, inconscientemente, um tanto “gozador” das instituições mais “respeitadas”, quando escrevia seus livros depois da premiação. Sentia prazer como “demolidor dos falsos ídolos” do Capitalismo. E o Prêmio Nobel é identificado, por alguns, como um tanto “impregnado” de valores capitalistas, inclusive na ênfase do alto valor do prêmio financeiro. A premiação de textos não muito compreensíveis não prestigiaria a famosa instituição.
A respeito de “entender a obra dos premiados”, cabe lembrar aqui o que ocorreu quando a Fundação Nobel se preocupava com a “necessidade” de conceder o prêmio de Física a Albert Einstein. O grande judeu alemão — um dos maiores gênios morais e intelectuais da humanidade — acabara de ver aprovada, cientificamente, com a observação direta de certo fenômeno cósmico, sua famosa Teoria da Relatividade. A opinião pública internacional de certa forma “exigia” que Einstein fosse premiado. Reunida a comissão de cientistas julgadores, seus membros — menos um, cujo nome não me recordo — concordaram, imediatamente, em conceder o Nobel de Física ao jovem cientista e matemático. O voto discordante, no entanto, fez pé firme na sua oposição à concessão da láurea a Einstein, dizendo que não conseguira entender sua famosa Teoria da Relatividade, o mesmo ocorrendo com os demais componentes da banca. Indagava: — “Como vamos premiar um trabalho que nós mesmos, físicos, não entendemos?” A comissão contornou o problema concedendo o prêmio a Einstein por uma outra descoberta, relacionada com o efeito foto-elétrico. Assim, a opinião pública ficou satisfeita e a Comissão Nobel de Física não poderia ser acusada de premiar algo que não compreendia.
Não sei se Alfred Nobel, vivo fosse, iria ou não aprovar a concessão do Nobel a um autor que, embora inteligente e mentalmente corajoso, deixava para o leitor a tarefa importantíssima de ordenar seu pensamento. Só o Espiritismo poderia solucionar essa questão. Minha modesta opinião é que Alfred seria mais cauteloso. Pelo menos diria ao candidato: “Por favor, coloque toda a pontuação necessária e volte, querendo, para nova avaliação. Do jeito que está, o senhor estaria sendo julgado apenas pelo seu bom caráter e opiniões esparsas em jornais, não pelo que está escrito em seus livros. E minha Fundação trabalha apenas examinando trabalhos, não reputações.”
Penso como pensaria, hipoteticamente, Alfred Nobel, uma personalidade interessantíssima que merece ter sua biografia conhecida. Solteirão, tímido com as mulheres, certa vez foi dado como morto na explosão de uma das suas fábricas. Na verdade, quem morrera fora o irmão. Lendo na imprensa os comentários sobre seu suposto óbito, ficou um tanto desagradavelmente surpreendido com o que o povo pensava a respeito dele. E isso foi bom porque serviu para seu aperfeiçoamento. Há uma remota analogia entre esse fato — a falsa morte de Alfred —, e a presente crítica parcial das obras de Saramago após a obtenção do Prêmio Nobel.
Se as editoras de José Saramago se dessem ao trabalho de reeditar seus livros, com a pontuação usual, o valente escritor seria realmente lido por número bem maior de leitores. Não apenas admirado por sua reputação. Poderei até me tornar seu grande fã. Por enquanto minhas mãos estão imóveis, em suspenso, aguardando permissão para aplaudir — mas sinceramente...
Que Saramago não será reeditado, com pontuação normal, não há dúvida. Nem editoras nem parentes admitirão isso. Para prejuízo internacional da língua portuguesa. É de lamentar, incidentalmente, que a Fundação Nobel não tenha por norma premiar também escritores falecidos. Machado de Assis, Eça de Queiroz e dezenas de outros autores promoveriam extraordinariamente as riquezas de nosso idioma.
Finalmente, que me perdoem os admiradores — quando sinceros... —, do corajoso escritor que, vivo fosse, talvez apreciasse minha franqueza, seguramente muito menor que a dele. Compreenderia que se eu respeitasse a “quarentena” de bom tom, relacionada com sua morte, para emitir uma opinião, acabaria esquecendo o assunto. Lendo minha crítica, dar-me-ia um coque na cabeça, e diria, até rindo: “Leia novamente o que escrevi, seu burro!”
(21-6-10)
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