Um humorista intelectualizado já opinou que o Direito é como a asa de qualquer xícara: você pode segurá-la com a mão direita ou esquerda, ao agosto do “freguês’, digo, do cliente — correção conveniente para não melindrar demais o defensor da causa indefensável. Se distorções interpretativas ocorrem com a invocação do Direito, em geral, a interpretação distorcida, interesseira, é multiplicada por três no campo do Direito Internacional. Isso porque a justiça-política em nível planetário, revela sintomas de dupla-personalidade: engatinha, gaguejante, quando o réu é forte e fala grosso, imperioso, quando o réu é fraco.
Forte, no caso em exame, é Israel, que despreza sanções internacionais. A rigor, juridicamente, Israel nem mesmo pode invocar “defesa de sua soberania” porque a Faixa de Gaza nunca esteve sujeita a sua soberania. Foi apenas uma área sob ocupação militar. E nem mesmo é isso, hoje. Pelo que sei, há anos a ONU considerou ilegal — lamentavelmente sem qualquer conseqüência prática... — a ocupação da Faixa de Gaza. “Soberania” implica posse pacífica, aceita pela maioria da população local. O que não é o caso de Israel que, por sinal, já reconheceu ser apenas um intruso, tanto assim que se retirou da área, não obstante o protesto violento de centenas de seus colonos.
No pólo fraco estão os árabes moradores desse pequeno retângulo litorâneo, vítimas de um bloqueio que dura cerca de três anos. Ao que parece, a cúpula do atual governo israelense não se lembra do sofrimento de seus pais, ou avós, quando os nazistas forçaram os judeus poloneses a viverem miseravelmente cercados no gueto de Varsóvia. O sofrimento foi tão intenso que os infelizes de então — esfomeados, humilhados e convictos que acabariam mesmo nas câmaras de gás — mandaram às favas a prudência e se revoltaram, sendo esmagados impiedosamente, como previam. Essa revolta heróica comoveu o mundo. Belas páginas literárias — p. ex. “Mila 18”, de Leon Uris, um judeu — surgiram, inspiradas na bravura daqueles que, lutando, sabem que vão morrer. Nas guerras “normais”, ou “civilizadas”, os combatentes confiam na possibilidade de voltarem vivos, o que não foi o caso da revolta mencionada.
É certo que o atual cerco de Gaza é menos virulento que o que existiu no gueto de Varsóvia. O gueto palestino é mais light”, sem deixar, porém, de ser gueto. Fotos em revistas internacionais mostram a cidade de Gaza estrangulada, cercada de lixo, desconforto e pobreza. Israel proíbe a entrada de quase tudo. Gueto “light” porque se fosse igual ao de Varsóvia, o horror provocaria um tal escândalo internacional que faria desaparecer o resíduo de solidariedade internacional que ainda beneficia Israel, conseqüência da perseguição nazista. O reportagem do jornal paulista “O Estado de S. Paulo”, edição de 3-6-10, à página A12, relata que “apenas 16% dos judeus não ortodoxos dos EUA, com menos de 40 anos, sentem-se muito próximos de Israel”. Isto é, 84% dos judeus americanos não ortodoxos (estes esperam o Messias) já se decepcionaram com a política israelense, pelo menos com relação aos palestinos expulsos de suas terras. E quem dá essa informação não é uma organização anti-judaica, é o Comitê Judaico Americano. Ainda segundo a mesma fonte jornalística, o editor atual da revista “Foreign Affairs” constatou que “esta nova geração, de 20, 30 anos, não se identifica mais com determinadas políticas israelenses e não enxerga mais Israel como um ator moral”.
Juristas, com ou sem aspas, e jornalistas mais sofisticados, argumentam, contra ou a favor da intervenção e comportamento dos comandos israelenses. Os argumentos são bem variados mas, se reduzidos à expressão mais simples, é fácil perceber quem está com mais razão — jurídica e política — no incidente que resultou nas nove mortes de ativistas, sem qualquer baixa entre os israelenses. Houve feridos, de ambos os lados. Como disse de início, textos jurídicos sempre se prestam — e no Direito Internacional, mais ainda — a interpretações “ao gosto do freguês”. Vejamos.
Águas internacionais. A invasão do navio ocorreu em águas internacionais, bem distantes da águas territoriais sob domínio — apenas de fato —, israelense. Relembre-se que a ONU já decidiu, anos atrás, que a ocupação da Faixa de Gaza é ilegal. Se a ocupação é ilegal, essa área não poderia, em última análise, ser policiada e isolada por Israel, porque o ilegal não merece proteção jurídica. Ponto importante a favor dos ativistas. Principalmente considerando que não havia qualquer notícia, ou razoável suspeita — a inteligência israelense teria facilmente se informado a respeito, durante os preparativos da “caravana” marítima — de que havia armas entre os alimentos e outros itens visando aliviar a situação da população sitiada.
A invasão do navio que liderava a pequena frota ocorreu às 4,00 horas da madrugada, “tática de pirata”, aproveitando o sono dos que estavam a bordo. Se houve resistência dos ativistas isso foi perfeitamente natural, legítimo, porque, primeiro, estavam em águas internacionais; segundo, porque a missão da frota era de caridade, de solidariedade, não pretendendo se apossar, violentamente, de terras alheias, ou com propósitos bélicos. A resistência física, de uns poucos, foi improvisada, com cadeiras, barras de ferro, estilingues e outros meios frágeis de defesa. Se, eventualmente — difícil acreditar na versão israelense... — algum ativista se apossou da arma de um comando distraído, meio “aloprado”, isso seria mais ato de defesa do que de agressão, como alguém que, em sua casa, enfrenta ladrões e consegue se apoderar da arma de um dos invasores. Comandos são altamente treinados, nada bisonhos, a ponto de perder a posse de suas armas em momentos de conflito.
A escritora Linda Grant, em artigo de 4-6-010, página A11, do jornal referido acima, lembra-nos o que ocorreu com o navio “Exodus”, no verão de 1947. Mostra a analogia de situações, mas em posições inversas: judeus tentando furar um bloqueio. Esse navio transportava 4.500 sobreviventes do Holocausto e partiu da França com destino à Palestina. Pretendia romper o bloqueio dos ingleses, preocupados — com razão —, com o fluxo incessante de judeus que “apodreciam” — palavra da autora — em campos de refugiados europeus. Os ingleses sabiam que os palestinos reagiam contra um “retorno” em massa de israelitas depois de uma ausência de quase dois milênios. Diz Linda Grant que os judeus “sabiam que não conseguiriam aportar, mas sabiam que o barco caindo aos pedaços com sua dolorosa carga humana de refugiados denunciaria os britânicos como patrões colonialistas desalmados”. Quando o navio se aproximava de Haifa, os líderes sionistas, via rádio, avisaram o comandante do navio para não por em risco a vida dos passageiros. O comandante desobedeceu a ordem e prosseguiu, mas o “Exodus” foi cercado por três destróieres britânicos. O navio foi abordado, os passageiros, judeus, resistiram e revidaram” — tal e qual como ocorreu com os ativistas pró-palestinos... — “com o que estava à mão, até com remessa de carne enlatada. Os britânicos mataram três pessoas”. Os transportados não conseguiram desembarcar e foram devolvidos aos campos de refugiados da Alemanha. Esse incidente ajudou tremendamente a causa judia, em termos de simpatia internacional. Qualquer semelhança com o ocorrido com a “Frota da Liberdade” não é mera coincidência. É um precedente marítimo a demonstrar que a reação violenta de umas poucas pessoas, contra abordagens armadas é perfeitamente normal. E, no caso do navio “Êxodus”, pelo que deflui do relato acima, ele não estava em águas internacionais. Acresce que o Reino Unido, à época, tinha muito mais legitimidade, do que Israel, hoje, para bloquear os 4.500 passageiros que tinham vindo para ficar na Palestina — fonte de atrito com os moradores árabes —, ao contrário do que ocorria com os ativistas da “Libertem Gaza”, que só pretendiam entregar sua carga humanitária, para retornar em seguida.
4.- Já li argumentos, a favor dos israelenses, dizendo que a frota teria sido convidada para dirigir-se ao porto israelense de Ashdod, mais ao sul, onde a carga seria entregue às autoridades locais, as quais se encarregariam de, após vistoria minuciosa, transporta-la até a cidade de Gaza. O argumento contem pouca credibilidade, porque se Israel mantém-se firme no propósito de “estrangular” o governo do Hamas em Gaza, privando a população de coisas necessárias, não é facilmente acreditável que fosse agir contraditoriamente, com total lisura no “encaminhamento” das dez toneladas de ajuda humanitária. Por que os ativistas pró-Palestina deveriam acreditar em tal promessa? Se Israel pretendia fazer chegar à Gaza essa ajuda, por que não permitir o desembarque no porto de Gaza, como pretendido pela frota, sob total vigilância do exército israelense? Trata-se, tudo indica, de um argumento fabricado à última hora, constatado o fiasco internacional da interceptação violenta.
Lamentável, no episódio, a reação, tímida demais, do governo Barack Obama, um presidente em quem ainda, teimosamente, deposito esperanças. Inicialmente, Obama pediu investigação dos próprios israelenses, em causa própria, um absurdo de ingenuidade. Depois, felizmente, sugeriu uma investigação internacional, desinteressada. A brandura da reação americana explica-se, provavelmente, pela necessidade imperiosa de apoio financeiro do lobby judaico americano na próxima eleição legislativa americana.
Como todos sabem, mesmo as democracias mais bem intencionadas não dispensam financiamentos de campanhas. De certo modo, os cargos máximos políticos são, em parte, “comprados”, via propaganda eleitoral. O sucesso não depende apenas das idéias e do caráter dos candidatos. E para agravar a difícil posição de Obama existe uma evidente divergência de visão e simpatias entre o presidente e sua secretária de estado, no que se refere ao problema do Oriente Médio. Difícil imaginar que a derrota da aguerrida senhora — dentro de seu próprio partido, quando da escolha de quem seria o candidato democrático na última eleição presidencial — não tenha deixado um forte resíduo de ressentimento que, à semelhança dos vulcões, ficam adormecidos mas não extintos, aguardam o momento certo para explodir.
Na imprensa de hoje, o premiê Netanyahu, algo assustado com a repercussão de sua “pirataria desastrada” diz buscar “soluções criativas”. Netanyahu é, realmente, um patriota. Mas patriota à moda antiga, ultrapassada, estreita, fincada apenas no egoísmo, preocupado somente com a felicidade de seus concidadãos, indiferente ao sofrimento de outros povos.
“Soluções criativas” sempre existem. O problema é que exigem sacrifícios. Um deles é o de sentar à mesa com os palestinos e enfrentar o problema da criação do Estado Palestino, com pelo menos uma larga estrada ligando a Faixa de Gaza à Cisjordânia, porque não tem sentido manter essas duas regiões separadas. Se não for possível um acordo, “lavar as mãos”: solicitar que um Tribunal internacional decida, por arbitragem, as futuras fronteiras entre os dois Estados, porque já chega de sangue, inquietação e sofrimento. Quanto ao retorno dos refugiados palestinos — aos milhares, amontoados em campos espalhados pelo mundo árabe —, uma proposta seria indenizar cada família palestina desalojada e pedir à ONU que providencie uma grande área — na África, por exemplo — onde possam tais palestinos se fixar e prosperar. Garanto que em algumas décadas, essa “segunda Palestina”, talvez africana, poderá se ombrear, em progresso, com o Israel de Netanyahu, já falecido e lembrado — com ódio ou saudade —, conforme for seu comportamento daqui pra frente. E a própria África lucrará com isso.
Lembrei-me da África, na sugestão acima, porque se o Movimento Sionista, em 1903, tivesse aceito a oferta inglesa para instalar o Estado Judeu numa região que então correspondia a Uganda, hoje Quênia, com clima relativamente fresco — oferta recusada por causa de feras e proximidade de tribos africanas — Israel teria se tornado uma potência respeitada e tranqüila, não odiada. Não sei se hoje, uma “transferência” em massa de palestinos será possível, mas terras pouco habitadas existem, capazes de abrigar novas nações.
Qual a diferença entre o Hamas e a Autoridade Nacional Palestina? Esta última, cansada de lutar, se resignou a aceitar a existência de Israel. Quer apenas ser um Estado, soberano como os demais. O Hamas, ao contrário, não “engoliu” a expulsão dos palestinos pelos “intrusos” e por isso não aceita o Estado de Israel. Tal expulsão, porém, se tornou impossível, impraticável. Muito menos um massacre desumano, de proporções homéricas, que nunca chegaria mesmo a ocorrer tendo em vista a força econômica, militar, nuclear e política de Israel. O Hamas precisa se convencer dessa realidade evidente, entrar no mundo real e fazer o que é possível fazer: pleitear uma razoável indenização para os desalojados, pedir à ONU um espaço amplo onde os refugiados palestinos se instalariam, prosperariam e formariam, mais adiante, um Estado.
Se, para salvar as finanças gregas a União Européia destinou centenas de bilhões de euros, e os EUA, para salvar bancos e indústrias americanos, empregou outro tanto, com muito menos dinheiro será possível “comprar” uma área, mais ou menos cômoda, em algum continente, para nela se instalarem os novos “judeus errantes” que atendem hoje dela designação de “refugiados palestinos’. O Hamas pode considerar isso injusto, mas precisa ser convencido que a Justiça perfeita não existe em parte alguma do planeta.
Pense nisso, senhor Netanyahu, e zele para deixar um bom nome na Terra, antes de comido pelos vermes. Poupe uma indigestão dos bichinhos. Sua biografia ainda pode crescer, transformando-o em verdadeiro estadista. E pense, mais ainda, o presidente Barack Obama, no alívio americano quando for finalmente fechada a grande ferida que contamina o Oriente Médio mas pode se espalhar por outras áreas. Desaparecida a fonte principal do rancor — a situação palestina — o terrorismo, se persistir, será mera atividade de gangsteres, muito mais fácil de controlar.
(4-6-10)
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