sábado, 26 de junho de 2010

O CS da ONU tornou-se uma Câmara de Comércio

O título não é uma frase de efeito. É a dura realidade de um mundo conturbado, liderado por “crianças” grandes, já maduras ou velhas. “Crianças” assustadas e ao mesmo tempo ferozes, astutas — algumas perigosamente inteligentes — portadoras de nutrido coquetel de taras morais: egoísmo irresponsável, inveja, cobiça desenfreada, insana vaidade e sincero entusiasmo pela mentira — no geral mais lucrativa que a verdade. No plano moral, não há muita diferença entre o homem das cavernas e um grande número de governantes, em todos os tempos. Os tais “líderes”, no fundo infantis e imprevidentes, levam seus povos à felicidade ou à desgraça, com predomínio desta última. Às vezes, um governante medíocre, terra-a-terra, pouco “criativo” revela-se mais útil a seu povo que virulentos “patriotas” — Hitler, por exemplo, e alguns outros que não me atrevo a mencionar, temendo vinganças secretas —, cheios de “projetos grandiosos” em favor de seu amado país. Pelo menos, o apagado líder não atrapalha o crescimento normal da sua comunidade e deixou os países vizinhos viverem em paz.

Os indivíduos comuns, governados, são mais limitados pelas normas morais; medo da polícia, ou do fuxico da vizinhança. Preocupam-se em cumprir a palavra empenhada. Quando, porém, transformados em governo, reescrevem o código moral, adotando padrões de nível mais “maleável”. Justificam-se: — “É um novo patamar... Vistas as coisas do alto, com longa visão, é preciso sacrificar muitas “coisinhas” antes consideradas corretas”. Sobem no status mas descem no caráter. Pressionados pela necessidade — ou mera conveniência econômica — de proteger seus súditos contra o egoísmo externo, passam também a mentir, tramar conchavos, contrapondo astúcia contra astúcia. Justificam-se: — “Se eu não defendo, mesmo mentindo e sofismando, meu país contra essa cambada, arrogante e mentirosa, de inimigos ou falsos amigos externos, ninguém mais o fará. Nem mesmo Deus, no Seu olímpico nojo por intrigas internacionais, moverá uma palha para salvar os povos mais fracos. Talvez porque veja, no sofrimento, a forma mais segura de purificação da alma, seu único interesse no bicho homem. Se Ele não protegeu os judeus, no Holocausto, certamente não protegerá agora os iranianos do massacre que se avizinha, planejado pelos descendentes dos sobreviventes do mesmo Holocausto. Apostemos, pois — sobretudo lucremos! — nos prováveis vencedores. Ninguém, jamais, ganhou dinheiro apostando no mais fraco”.

Exagero, leitor, o que aconteceu recentemente na área internacional? Penso que não. Seja qual for sua “simpatia” no conflito — não bélico, por enquanto — entre o consórcio Israel-EUA e o Irã é inegável a realidade de que o Conselho de Segurança tornou-se uma espécie de Câmara de Comércio, em que todos os votos têm um preço. Preço, mesmo, não falo em sentido figurado. “Money, business”.

Obtido um razoável acordo — mérito para Turquia e Brasil — em que o Irã concordou com a proposta americana, de vários meses atrás, de entregar, sob responsabilidade de país europeu, boa parte de seu combustível nuclear, para enriquecimento a 20%, com finalidade claramente não-militar — para fazer a bomba o enriquecimento deve chegar a 90% —, os EUA providenciaram, de imediato — sem dar tempo ao Irã de discutir, sequer pensar, as novas exigências —, uma reunião do Conselho de Segurança para adoção de novas sanções. Quer, a “dupla musculosa EUA-Israel” — embora não diga isso de modo explícito —, que o Irã paralise, totalmente, qualquer avanço no domínio da tecnologia nuclear, seja para fins pacíficos, seja para fins militares. Alega temer que o atual presidente iraniano possa, daqui a meses, ou anos, fabricar armas nucleares, privilégio que, no entender da “dupla danada”, só pode e deve pertencer a alguns poucos “países superiores”, entre eles os dois referidos, já tremendamente poderosos em armas convencionais e atômicas. A “dupla” alega, para justificar a desigualdade de tratamento, que o atual governo iraniano é ditatorial e primitivo, a ponto de permitir o açoite de ladrões em praça pública, o apedrejamento de adúlteras e outras práticas realmente primitivas, mas que ainda fazem parte da ancestral — e até mesmo religiosa — tradição islâmica. A crítica a tais costumes é procedente, mas é preciso considerar que trata-se de uma cultura que não desaparece da noite para o dia, embora precise desaparecer.

Como este artigo não visa discutir as origens e variantes do conflito Israel- palestinos — o Irã é mera metástase do câncer político nunca extirpado —, vamos nos limitar à comprovação de que o Conselho de Segurança vem se tornando uma Câmara de Comércio.

Todos os que acompanham as notícias internacionais sobre a “ameaça iraniana” estão lembradas que China e Rússia mostravam-se resistentes à aplicação de novas sanções contra o Irã. De repente, às vésperas da votação das novas sanções, a China mudou de posição. Por que? Esclarece-nos a mídia mais corajosa que esse abrupto salto ocorreu porque o governo israelense “sinalizou” à China que pretende atacar e destruir as instalações iranianas utilizadas na extração do petróleo. Com tal perspectiva, a China perderia, por longo tempo, essa fonte do precioso óleo. Por isso, Pequim achou mais prudente aprovar as novas sanções do CS e manter o fornecimento de petróleo, que não será afetado pelas sanções. “Just business”, nada contra o Irã”. Está explicada a súbita mudança de posição chinesa.

Vejamos, agora, a explicação russa. Todos sabem que a Rússia fechou contrato com o Irã para venda de mísseis terra-ar S-300. Faltava apenas entregar os tais mísseis, que funcionam apenas como meio de defesa, destinados a derrubar aviões e foguetes atacando o país. O governo russo, mesmo após a decisão do CS de criar novas sanções, deu declarações de que tais mísseis, terra-ar, seriam entregues, porque não poderiam ser classificados como “armas de ataque” e os contratos precisam ser cumpridos. Seguiu-se uma conversinha secreta e Putin mudou de posição, dizendo que os foguetes não mais seriam entregues. Desconheço se houve algum pagamento adiantado.

Por que o governo Putin decidiu mudar de idéia? Porque se a Rússia entregasse os referidos foguetes de defesa ao Irã, a França de Sarkozy — discretamente pró Israel — deixaria de vender à Rússia algo que esta muito deseja para combater os rebeldes chechenos: navios anfíbios da classe “Mistral”, que podem chegar bem perto da praia, transportar, cada navio, 16 helicópteros de ataque, 4 lanchas de desembarque, 70 veículos de combate, 13 tanques de guerra e 450 soldados. Tais navios-anfíbios dispõem até de 69 leitos de hospital. A venda de um navio “Mistral’ foi combinada e estava em estudo a venda de mais quatro. Face à perspectiva de perder o negócio com os franceses, caso vetasse as sanções, ou não as cumprisse, Putin mudou de opinião. “Sorry, business..”, deve ter dito aos iranianos, que ficarão mais desprotegidos de ataques aéreos contra suas instalações mais vitais. Prevendo como inevitável um apoio americano a um fato consumado — Israel, cerca de trinta anos atrás, bombardeou o reator nuclear Osirak, de Saddam Hussein —, é bem possível que repita a dose. Desta vez contra o Irã, bloqueando qualquer desenvolvimento nuclear desse país, seja para fins pacíficos ou militares.

O Brasil, corajosamente, manteve sua oposição às novas sanções, mesmo perdendo dinheiro nisso. Insiste na existência de um princípio que nunca poderá ser escondido debaixo do tapete — provavelmente já cheio de calombos —, da sala de reunião do CS: se todas as nações têm direitos iguais, não há porque bloquear o direito do Irã desenvolver tecnologia nuclear, uma vez que os cinco membros permanentes do CS já dispõem de armas atômicas e não se opõem à existência de tais arsenais na Índia, no Paquistão e em Israel. Este é um arqui-inimigo do Irã e nem mesmo se deu ao trabalho de aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, podendo, “consequentemente”, “juridicamente” fabricá-las à vontade, livre de inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.

O governo brasileiro promete vender álcool a Teerã, e também comida, itens não incluídos explicitamente no bloqueio. Todavia, não conseguirá vender o álcool, porque a Única, entidade representante dos produtores de etanol, sabe que se venderem álcool ao Irã sofrerão represálias tarifárias do governo americano. Assim não venderão “uma gota”, como já disse um representante da Única. Os usineiros dirão: “Nada contra os iranianos, “just business”. Mesmo as empresas brasileiras interessadas em vender alimentos aos iranianos acabarão cansados de nadar contra a corrente financeira porque os negócios de exportação são realizados mediante transações bancárias e a “dupla poderosa” já adiantou que os bancos que mantiverem transações com o Irã estão na lista negra.”Just business...”, dirão os usineiros.

Nada a criticar, claro, o fato de empresas privadas procurarem sempre o caminho comercialmente mais fácil. Nem com o fato de as Câmaras de Comércio serem frequentadas para a realização de negócios. Foram concebidas com essa finalidade. O que está errado é ver um órgão mundial poderosíssimo — criado com outra finalidade, supostamente mais nobre, o Conselho de Segurança das Nações Unidas — fazendo “concorrência” às verdadeiras Câmaras de Comércio. Cada coisa em seu lugar. O Conselho de Segurança deveria, idealmente, encarar os atritos mundiais, na iminência de conflitos armados, com olhos preponderantemente morais, analisando não só os interesses econômicos de seus membros, mas também suas opiniões éticas, evitando ou diminuindo, tanto quanto possível, eventuais injustiças e abusos. Toda “sanção” tem um componente ético. Não é apenas resultado de um resultado contábil, econômico.

Quando o CS percebesse, claramente, que o voto fora manifestado apenas em troca de uma vantagem econômica para o país votante — como tem sido, frequentemente o caso — esse voto seria inválido ou, pelo menos desmoralizado pela opinião pública. O chamado “voto de cabresto econômico” precisa desaparecer nas decisões do CS. As fundamentações de voto, de cada membro, deveriam ser obrigatoriamente publicadas e amplamente difundidas para que a opinião pública internacional e mesmo interna de cada país, conhecesse o grau de honestidade intelectual de seus representantes na ONU e dos respectivos chefes de estado.

Imagine, o leitor, como seriam, hoje, sinceramente, as fundamentações de voto. O representante da China diria: “Senhor Secretário Geral: na verdade, sou contra as novas sanções ao Irã, mas a China precisa do petróleo iraniano. Como há alta probabilidade, quase garantia de um bombardeio, israelense ou americano, das suas instalações petrolíferas desse importante fornecedor — e nesse caso a China ficaria muito tempo sem o óleo —, vejo-me obrigado, por motivos práticos, a votar a favor de novas sanções. É meu voto, Senhor Secretário”.

Quando do voto do representante russo, ele diria o seguinte: “Senhor Secretário|: também sou, como a China, contrário a novas sanções, que só aumentarão o tormento da população iraniana e, indiretamente, da de Gaza, privada de quase tudo. Entretanto, meu país já contava com a aquisição de navios-anfíbios, fabricados na França, que serão muito úteis para combater os revoltosos chechenos. E não temos outro fornecedor em vista. Ocorre que se eu não apoiar as novas sanções, a França de Sarkozy deixará o dito pelo não dito, não nos vende mais os navios, dificultando nossa luta contra o terror checheno. Pensando nos navios franceses, voto a favor das novas sanções. Acrescento que a Rússia se comprometeu a vender ao Irã foguetes terra-ar, para defesa contra aviões e mísseis que ataquem aquele país. Vou tentar cumprir o combinado mas se a França exigir que eu descumpra o acordo, eu descumpro, porque os navios-anfíbios são mais importantes para a Rússia do que eventuais justiças ou injustiças contra um país como o Irã, muito antipatizado”.

Alguns outros países, que apoiaram as sanções, poderiam, certamente, dizer coisas semelhantes, invocando transações pendentes.

Alguém dirá que cabe à Corte Internacional de Justiça e não ao CS a missão de analisar juridicamente as pendências. Ocorre que, conforme os estatutos atuais do referido Tribunal, somente Estados — e os palestinos não constituem um Estado — podem demandar contra a expulsão, sem indenização, de uma área que ocupavam há quase dois milênios. E a raiz da animosidade entre Israel e Irã está na questão palestina, sem chance de ser decidida formalmente por um Tribunal. Daí a necessidade de o CS decidir sobre sanções levando em conta critérios morais de justiça ou injustiça.

Não tenho reais preconceitos contra qualquer raça. Considero-as como mais ou menos iguais em termos de capacidade natural, inata, e tendências de caráter. Com igual variação de caracteres morais individuais dentro de cada raça. Há indivíduos excelentes, autênticas jóias humanas em todos os povos. E também astutos gângsteres travestidos de políticos. O problema está na sorte ou azar na escolha dos “chefes” e nos traumatismos sofridos e não esquecidos de cada povo, no passado próximo e/ou remoto.

Não sou admirador de Ahmadinejad — que fala muito o que não devia e provavelmente morrerá pela língua —, mas não posso ignorar que o Irã foi o único país que arregaçou as mangas para defender, com louca coragem, os palestinos, atormentados e expulsos sem terem nenhum culpa por uma injustiça romana, imperial, cometida dois milênios atrás.

Alguns leitores poderão considerar ingênuas as considerações feitas neste artigo. “Ingênuas”, considerando o mundo real, de hoje. Mas a civilização não cresceu buscando efetivar a “ingenuidade”? Houve tempo em que discutia-se se as mulheres tinham “alma”. Se a tinham, não era garantido que tivessem juízo suficiente para escolher candidatos em eleições. Não podiam votar. Serem juízas? Nem pensar! Índios também não eram considerados seres humanos plenos. E por aí vai.

Cedo ou tarde o Conselho de Segurança, visando preservar sua missão teórica — cada vez mais criticada na prática—, terá que subir um degrau acima, não mais agindo como Câmaras de Comércio. Conhecedores do Direito Internacional existem às centenas, mas parecem temer expor, com total liberdade, suas impressões negativas. Não querem arriscar suas carreiras acadêmicas.

(14-6-2010)

terça-feira, 22 de junho de 2010

Visão crítica de Saramago

Hesitei algumas horas antes de escrever sobre José Saramago, falecido tão recentemente. Conselhos contra minha “heresia” e falta de “timing” não faltaram: — “Não se atreva, meu amigo, a criticar um Nobel tão unanimemente aplaudido! Com tanta gente elogiando, não é possível que todos estejam errados! É até covardia criticar quem já não pode se defender. Se não gostava dele, por que não o atacou quando ainda vivia? Espere, pelo menos, que esfrie o corpo!” — disseram-me alguns conhecidos.

Um deles, mais franco, me advertia: — “Vão dizer que você, como escrevinhador desconhecido, ignorado por editoras — desculpe a sinceridade, você provocou... —, está despeitado com o sucesso de um grande homem de letras! Não se esqueça que ele foi o único escritor de língua portuguesa a receber a maior láurea literária, quebrando a prevenção, certamente política, da Fundação Nobel contra nosso idioma! Além do mais, você de vez em quando me dizia que não conseguia lê-lo. Assim, como tem coragem de criticar uma escritor que, confessadamente, não conseguia ler? “Não li e não gostei”, este é seu lema superficial no julgar o talento alheio?”

Não obstante esse pelotão de fuzilamento moral — realmente não é de bom tom censurar pessoas recentemente falecidas, principalmente se famosas e queridas —, atrevo-me a apresentar uma restrição, talvez apenas “gráfica”, contra o único Nobel recebido por escritor de nosso idioma. Por que o faço?

Primeiro, porque sou um incondicional admirador da clareza, da verdade e da sua irmã gêmea, a sinceridade. Mesmo quando doloridas aos ouvidos — respeitadas, claro, as amenas convenções sociais. Talvez esse apego à verdade seja sinal de ingenuidade inata — ou mesmo preguiça mental —, considerando que a mentira exige um trabalho cerebral do qual está dispensada a mera exposição dos fatos tais como são, própria dos “simplórios’. E não esquecer que o trabalho imaginativo exige boa memória. Máximo Gorki, o grande escritor russo que viveu algum tempo entre vagabundos e pequenos marginais, descrevendo, em um de seus contos, um personagem particularmente desastrado, disse que ele não era suficientemente experto para ser ladrão. Ladrões, usualmente, são astutos. O exercício profissional do mal exige muito mais massa cinzenta que a fácil emissão de opiniões sinceras. Por outro lado, a adesão à verdade — por opção, não por deficiência — é o selo de ouro da grandeza moral.

Sob esse aspecto, estritamente ético, faço parte do grupo dos admiradores de Saramago, porque o escritor português sempre foi um homem franco, intelectualmente corajoso e, suponho, até mesmo fisicamente destemido. Quando ficou sem emprego, na faixa dos cinqüenta anos, tomou uma decisão de extrema bravura: dedicou-se exclusivamente à literatura, tempo integral, arriscando seu futuro. Em vez de montar um negociozinho qualquer capaz de garantir o ganha-pão, jogou no “tudo ou nada” e acabou campeão, escrevendo prolixamente, mesmo com idade avançada.

Em favor do escritor Nobel cabe também reconhecer que sempre foi um intelectual sensibilizado com o sofrimento dos menos favorecidos. Além do mais, quem com ele conviveu afirma que era um homem de convívio agradável, mesmo não abrindo mão de suas opiniões, por vezes ásperas e avessas a “panos quentes”. Enfim, “personalidade forte” era o que não faltava a esse grande vencedor da concorrida maratona cerebral conhecida como Premio Nobel de Literatura.

Incidentemente, cabe aqui a informação de que no primeiro testamento de Alfred Nobel — o químico e industrial que inventou a dinamite — a Literatura não foi prevista como item de premiação. Havia dúvida a respeito. Alfred Nobel pensou, inicialmente, apenas em química, física, medicina e outros assuntos mais “objetivos”. Tendo, porém, que permanecer afastado dos negócios, por uns dois anos, resolveu ocupar seu tempo escrevendo peças de teatro. Aí percebeu o quanto era difícil algo que parecia fácil: escrever bem. E nisso incluo a pontuação. Daí um novo testamento e a inclusão explícita da Literatura — “de conteúdo idealista”, obrigatoriamente — na lista anual dos cobiçados Prêmios. Prêmios que não seriam tão desejados se a recompensa financeira fosse apenas simbólica: a medalha de ouro e o diploma. Lembrar isso não diminui o mérito de quem recebe honraria — ao contrário, aumenta-o, em razão da aguerrida concorrência — mas dá uma pista sobre a motivação mais profunda dos seres humanos. Inclusive dos “espiritualizados literatos”, o que não era o caso de Saramago, materialista convicto. Alfred Nobel, empresário extremamente inteligente, sabia com quem lidava — o gênero humano — quando criou a Fundação Nobel, com seu cobiçado prêmio em dinheiro.

Considerações feitas, explico porque não conseguia — e ainda não consigo — ler os livros de Saramago: inicialmente, por sua aversão, aparentemente incontrolável, à abertura de novos parágrafos, transformando as páginas em “paredes gráficas”, nada atraentes da leitura voluntária. Algo parecidas com as escrituras públicas de tabeliães que começam com “Aos tantos dias da era cristã, neste cartório, etc.”

Com essa desanimadora constatação, eu comprei apenas dois volumes do escritor em referência e praticamente esqueci o assunto, sempre me prometendo ler, qualquer dia, um livro do escritor português. Sentia-me culturalmente culpado por não conseguir sentir-me bem com autor tão aclamado.

Com a notícia de sua morte e lendo, em jornais, depoimentos extremamente elogiosos de pessoas bem conhecidas no mundo intelectual, fiquei impressionado com meu “evidente” atraso cultural, deixando de apreciar um intelectual tão importante. Aí, peguei de volta os dois volumes dele e novamente tentei lê-los. Inútilmente. Descobri que Saramago não só detestava abrir novos parágrafos como também desafiava as normas usuais de pontuação. Também não gostava de ponto final. Seu texto é uma enxurrada de associações de idéias com escassa preocupação de ordem, coerência e pontuação. O que lhe vinha à cabeça, ele datilografava, ou digitava. Parecia pensar: —“O leitor que se vire para organizar o que escrevi, não vou perder tempo com essas ninharias”.

Esse método de trabalho tem a vantagem, para qualquer escritor, de permitir uma produção muito mais extensa, porque economiza tempo. Boa parte do trabalho de escrever — qualquer autor ou jornalista responsável sabe disso — é consumida na tarefa de pontuar, facilitando ao leitor a compreensão das idéias. Escrever um imenso e graficamente denso “rascunho”, registrando, sem auto-crítica, idéias soltas que venham à cabeça, não me parece prática recomendável. Nem mesmo um Nobel deveria dar-se a tal luxo de descortesia para com o leitor. E o grande perigo dessa prática está no surgimento de imitadores do estilo. Com o incentivo involuntário à indisciplina expositiva, nossa língua, já pouco conhecida internacionalmente, será menos admirada, provavelmente.

Fui juiz por pouco mais de vinte e dois anos e, nessa condição, acostumado — como os advogados e promotores — a conviver com certa objetividade e ordem na narração dos fatos e do direito. Tentando ler os livros do referido escritor eu pensava comigo mesmo: “ Uma petição inicial escrita deste jeito seria rejeitada liminarmente como “inepta”, segundo a nomenclatura jurídica processual. Confusa demais ainda que, talvez, possa conter idéias interessantes. Qualquer texto de medicina, geografia, economia, filosofia, política — seja o que for —, exige alguma disciplina, mental e gráfica. O pensamento, falado ou escrito, exige ordem. As regras de pontuação não existem por mero acaso. São exigências até da civilização. Por que jogar fora as conquistas culturais da humanidade?

A concessão do Prêmio Nobel a Saramago não me parece ter sido — a longo prazo —, boa promoção da literatura de língua portuguesa. Explico: quando um escritor recebe tal premiação há uma automática procura por suas obras, traduzidas, no mundo inteiro. E, no caso de Saramago, o que provavelmente acontecerá? O leitor estrangeiro pensará, lendo um texto quase sem parágrafos e pontos finais, sem grande preocupação com o arranjo rigoroso das idéias, que todos os escritores na língua do novo Nobel são um tanto “desorganizados”. E com isso fica prejudicada a imagem geral dos autores do país. No caso, os escritores portugueses, brasileiros e das ex-colônias portuguesas na África.

O grande perigo da consagração de escritores ”graficamente desorganizados” está no estímulo involuntário à imitação. Candidatos a escritor que queiram “brilhar” na área não mais sentirão escrúpulo de redigir textos totalmente despreocupados com a ordenação do pensamento. Até mesmo em composições escolares os alunos que escrevem de qualquer jeito, se forem repreendidos pelo professor, pela falta de ordem e pontuação, defender-se-ão dizendo que o professor está “desatualizado” e que seu trabalho escolar adota o “estilo Saramago”, já consagrado pelo Nobel.

Com as melhores intenções, a Fundação Nobel prestou talvez um desserviço à língua portuguesa, quando conferiu o prêmio a um escritor que, embora moralmente íntegro — pelo que dizem as pessoas que o conheceram — não tratava a língua com a usual reverência. Editores estrangeiros procurarão traduzir para seus respectivos idiomas a obra do autor aqui referido, mas certamente farão isso apenas pelo fato do escritor ter recebido a grande honraria, garantia de boas vendas no mercado editorial.

Há momentos em que me pergunto se Saramago — homem inegavelmente inteligente e comunista convicto —, não estava sendo, inconscientemente, um tanto “gozador” das instituições mais “respeitadas”, quando escrevia seus livros depois da premiação. Sentia prazer como “demolidor dos falsos ídolos” do Capitalismo. E o Prêmio Nobel é identificado, por alguns, como um tanto “impregnado” de valores capitalistas, inclusive na ênfase do alto valor do prêmio financeiro. A premiação de textos não muito compreensíveis não prestigiaria a famosa instituição.

A respeito de “entender a obra dos premiados”, cabe lembrar aqui o que ocorreu quando a Fundação Nobel se preocupava com a “necessidade” de conceder o prêmio de Física a Albert Einstein. O grande judeu alemão — um dos maiores gênios morais e intelectuais da humanidade — acabara de ver aprovada, cientificamente, com a observação direta de certo fenômeno cósmico, sua famosa Teoria da Relatividade. A opinião pública internacional de certa forma “exigia” que Einstein fosse premiado. Reunida a comissão de cientistas julgadores, seus membros — menos um, cujo nome não me recordo — concordaram, imediatamente, em conceder o Nobel de Física ao jovem cientista e matemático. O voto discordante, no entanto, fez pé firme na sua oposição à concessão da láurea a Einstein, dizendo que não conseguira entender sua famosa Teoria da Relatividade, o mesmo ocorrendo com os demais componentes da banca. Indagava: — “Como vamos premiar um trabalho que nós mesmos, físicos, não entendemos?” A comissão contornou o problema concedendo o prêmio a Einstein por uma outra descoberta, relacionada com o efeito foto-elétrico. Assim, a opinião pública ficou satisfeita e a Comissão Nobel de Física não poderia ser acusada de premiar algo que não compreendia.

Não sei se Alfred Nobel, vivo fosse, iria ou não aprovar a concessão do Nobel a um autor que, embora inteligente e mentalmente corajoso, deixava para o leitor a tarefa importantíssima de ordenar seu pensamento. Só o Espiritismo poderia solucionar essa questão. Minha modesta opinião é que Alfred seria mais cauteloso. Pelo menos diria ao candidato: “Por favor, coloque toda a pontuação necessária e volte, querendo, para nova avaliação. Do jeito que está, o senhor estaria sendo julgado apenas pelo seu bom caráter e opiniões esparsas em jornais, não pelo que está escrito em seus livros. E minha Fundação trabalha apenas examinando trabalhos, não reputações.”

Penso como pensaria, hipoteticamente, Alfred Nobel, uma personalidade interessantíssima que merece ter sua biografia conhecida. Solteirão, tímido com as mulheres, certa vez foi dado como morto na explosão de uma das suas fábricas. Na verdade, quem morrera fora o irmão. Lendo na imprensa os comentários sobre seu suposto óbito, ficou um tanto desagradavelmente surpreendido com o que o povo pensava a respeito dele. E isso foi bom porque serviu para seu aperfeiçoamento. Há uma remota analogia entre esse fato — a falsa morte de Alfred —, e a presente crítica parcial das obras de Saramago após a obtenção do Prêmio Nobel.

Se as editoras de José Saramago se dessem ao trabalho de reeditar seus livros, com a pontuação usual, o valente escritor seria realmente lido por número bem maior de leitores. Não apenas admirado por sua reputação. Poderei até me tornar seu grande fã. Por enquanto minhas mãos estão imóveis, em suspenso, aguardando permissão para aplaudir — mas sinceramente...

Que Saramago não será reeditado, com pontuação normal, não há dúvida. Nem editoras nem parentes admitirão isso. Para prejuízo internacional da língua portuguesa. É de lamentar, incidentalmente, que a Fundação Nobel não tenha por norma premiar também escritores falecidos. Machado de Assis, Eça de Queiroz e dezenas de outros autores promoveriam extraordinariamente as riquezas de nosso idioma.

Finalmente, que me perdoem os admiradores — quando sinceros... —, do corajoso escritor que, vivo fosse, talvez apreciasse minha franqueza, seguramente muito menor que a dele. Compreenderia que se eu respeitasse a “quarentena” de bom tom, relacionada com sua morte, para emitir uma opinião, acabaria esquecendo o assunto. Lendo minha crítica, dar-me-ia um coque na cabeça, e diria, até rindo: “Leia novamente o que escrevi, seu burro!”

(21-6-10)

sábado, 5 de junho de 2010

“Frota da Liberdade”. Quem está com a razão?

Um humorista intelectualizado já opinou que o Direito é como a asa de qualquer xícara: você pode segurá-la com a mão direita ou esquerda, ao agosto do “freguês’, digo, do cliente — correção conveniente para não melindrar demais o defensor da causa indefensável. Se distorções interpretativas ocorrem com a invocação do Direito, em geral, a interpretação distorcida, interesseira, é multiplicada por três no campo do Direito Internacional. Isso porque a justiça-política em nível planetário, revela sintomas de dupla-personalidade: engatinha, gaguejante, quando o réu é forte e fala grosso, imperioso, quando o réu é fraco.

Forte, no caso em exame, é Israel, que despreza sanções internacionais. A rigor, juridicamente, Israel nem mesmo pode invocar “defesa de sua soberania” porque a Faixa de Gaza nunca esteve sujeita a sua soberania. Foi apenas uma área sob ocupação militar. E nem mesmo é isso, hoje. Pelo que sei, há anos a ONU considerou ilegal — lamentavelmente sem qualquer conseqüência prática... — a ocupação da Faixa de Gaza. “Soberania” implica posse pacífica, aceita pela maioria da população local. O que não é o caso de Israel que, por sinal, já reconheceu ser apenas um intruso, tanto assim que se retirou da área, não obstante o protesto violento de centenas de seus colonos.

No pólo fraco estão os árabes moradores desse pequeno retângulo litorâneo, vítimas de um bloqueio que dura cerca de três anos. Ao que parece, a cúpula do atual governo israelense não se lembra do sofrimento de seus pais, ou avós, quando os nazistas forçaram os judeus poloneses a viverem miseravelmente cercados no gueto de Varsóvia. O sofrimento foi tão intenso que os infelizes de então — esfomeados, humilhados e convictos que acabariam mesmo nas câmaras de gás — mandaram às favas a prudência e se revoltaram, sendo esmagados impiedosamente, como previam. Essa revolta heróica comoveu o mundo. Belas páginas literárias — p. ex. “Mila 18”, de Leon Uris, um judeu — surgiram, inspiradas na bravura daqueles que, lutando, sabem que vão morrer. Nas guerras “normais”, ou “civilizadas”, os combatentes confiam na possibilidade de voltarem vivos, o que não foi o caso da revolta mencionada.

É certo que o atual cerco de Gaza é menos virulento que o que existiu no gueto de Varsóvia. O gueto palestino é mais light”, sem deixar, porém, de ser gueto. Fotos em revistas internacionais mostram a cidade de Gaza estrangulada, cercada de lixo, desconforto e pobreza. Israel proíbe a entrada de quase tudo. Gueto “light” porque se fosse igual ao de Varsóvia, o horror provocaria um tal escândalo internacional que faria desaparecer o resíduo de solidariedade internacional que ainda beneficia Israel, conseqüência da perseguição nazista. O reportagem do jornal paulista “O Estado de S. Paulo”, edição de 3-6-10, à página A12, relata que “apenas 16% dos judeus não ortodoxos dos EUA, com menos de 40 anos, sentem-se muito próximos de Israel”. Isto é, 84% dos judeus americanos não ortodoxos (estes esperam o Messias) já se decepcionaram com a política israelense, pelo menos com relação aos palestinos expulsos de suas terras. E quem dá essa informação não é uma organização anti-judaica, é o Comitê Judaico Americano. Ainda segundo a mesma fonte jornalística, o editor atual da revista “Foreign Affairs” constatou que “esta nova geração, de 20, 30 anos, não se identifica mais com determinadas políticas israelenses e não enxerga mais Israel como um ator moral”.

Juristas, com ou sem aspas, e jornalistas mais sofisticados, argumentam, contra ou a favor da intervenção e comportamento dos comandos israelenses. Os argumentos são bem variados mas, se reduzidos à expressão mais simples, é fácil perceber quem está com mais razão — jurídica e política — no incidente que resultou nas nove mortes de ativistas, sem qualquer baixa entre os israelenses. Houve feridos, de ambos os lados. Como disse de início, textos jurídicos sempre se prestam — e no Direito Internacional, mais ainda — a interpretações “ao gosto do freguês”. Vejamos.

Águas internacionais. A invasão do navio ocorreu em águas internacionais, bem distantes da águas territoriais sob domínio — apenas de fato —, israelense. Relembre-se que a ONU já decidiu, anos atrás, que a ocupação da Faixa de Gaza é ilegal. Se a ocupação é ilegal, essa área não poderia, em última análise, ser policiada e isolada por Israel, porque o ilegal não merece proteção jurídica. Ponto importante a favor dos ativistas. Principalmente considerando que não havia qualquer notícia, ou razoável suspeita — a inteligência israelense teria facilmente se informado a respeito, durante os preparativos da “caravana” marítima — de que havia armas entre os alimentos e outros itens visando aliviar a situação da população sitiada.

A invasão do navio que liderava a pequena frota ocorreu às 4,00 horas da madrugada, “tática de pirata”, aproveitando o sono dos que estavam a bordo. Se houve resistência dos ativistas isso foi perfeitamente natural, legítimo, porque, primeiro, estavam em águas internacionais; segundo, porque a missão da frota era de caridade, de solidariedade, não pretendendo se apossar, violentamente, de terras alheias, ou com propósitos bélicos. A resistência física, de uns poucos, foi improvisada, com cadeiras, barras de ferro, estilingues e outros meios frágeis de defesa. Se, eventualmente — difícil acreditar na versão israelense... — algum ativista se apossou da arma de um comando distraído, meio “aloprado”, isso seria mais ato de defesa do que de agressão, como alguém que, em sua casa, enfrenta ladrões e consegue se apoderar da arma de um dos invasores. Comandos são altamente treinados, nada bisonhos, a ponto de perder a posse de suas armas em momentos de conflito.

A escritora Linda Grant, em artigo de 4-6-010, página A11, do jornal referido acima, lembra-nos o que ocorreu com o navio “Exodus”, no verão de 1947. Mostra a analogia de situações, mas em posições inversas: judeus tentando furar um bloqueio. Esse navio transportava 4.500 sobreviventes do Holocausto e partiu da França com destino à Palestina. Pretendia romper o bloqueio dos ingleses, preocupados — com razão —, com o fluxo incessante de judeus que “apodreciam” — palavra da autora — em campos de refugiados europeus. Os ingleses sabiam que os palestinos reagiam contra um “retorno” em massa de israelitas depois de uma ausência de quase dois milênios. Diz Linda Grant que os judeus “sabiam que não conseguiriam aportar, mas sabiam que o barco caindo aos pedaços com sua dolorosa carga humana de refugiados denunciaria os britânicos como patrões colonialistas desalmados”. Quando o navio se aproximava de Haifa, os líderes sionistas, via rádio, avisaram o comandante do navio para não por em risco a vida dos passageiros. O comandante desobedeceu a ordem e prosseguiu, mas o “Exodus” foi cercado por três destróieres britânicos. O navio foi abordado, os passageiros, judeus, resistiram e revidaram” — tal e qual como ocorreu com os ativistas pró-palestinos... — “com o que estava à mão, até com remessa de carne enlatada. Os britânicos mataram três pessoas”. Os transportados não conseguiram desembarcar e foram devolvidos aos campos de refugiados da Alemanha. Esse incidente ajudou tremendamente a causa judia, em termos de simpatia internacional. Qualquer semelhança com o ocorrido com a “Frota da Liberdade” não é mera coincidência. É um precedente marítimo a demonstrar que a reação violenta de umas poucas pessoas, contra abordagens armadas é perfeitamente normal. E, no caso do navio “Êxodus”, pelo que deflui do relato acima, ele não estava em águas internacionais. Acresce que o Reino Unido, à época, tinha muito mais legitimidade, do que Israel, hoje, para bloquear os 4.500 passageiros que tinham vindo para ficar na Palestina — fonte de atrito com os moradores árabes —, ao contrário do que ocorria com os ativistas da “Libertem Gaza”, que só pretendiam entregar sua carga humanitária, para retornar em seguida.

4.- Já li argumentos, a favor dos israelenses, dizendo que a frota teria sido convidada para dirigir-se ao porto israelense de Ashdod, mais ao sul, onde a carga seria entregue às autoridades locais, as quais se encarregariam de, após vistoria minuciosa, transporta-la até a cidade de Gaza. O argumento contem pouca credibilidade, porque se Israel mantém-se firme no propósito de “estrangular” o governo do Hamas em Gaza, privando a população de coisas necessárias, não é facilmente acreditável que fosse agir contraditoriamente, com total lisura no “encaminhamento” das dez toneladas de ajuda humanitária. Por que os ativistas pró-Palestina deveriam acreditar em tal promessa? Se Israel pretendia fazer chegar à Gaza essa ajuda, por que não permitir o desembarque no porto de Gaza, como pretendido pela frota, sob total vigilância do exército israelense? Trata-se, tudo indica, de um argumento fabricado à última hora, constatado o fiasco internacional da interceptação violenta.

Lamentável, no episódio, a reação, tímida demais, do governo Barack Obama, um presidente em quem ainda, teimosamente, deposito esperanças. Inicialmente, Obama pediu investigação dos próprios israelenses, em causa própria, um absurdo de ingenuidade. Depois, felizmente, sugeriu uma investigação internacional, desinteressada. A brandura da reação americana explica-se, provavelmente, pela necessidade imperiosa de apoio financeiro do lobby judaico americano na próxima eleição legislativa americana.

Como todos sabem, mesmo as democracias mais bem intencionadas não dispensam financiamentos de campanhas. De certo modo, os cargos máximos políticos são, em parte, “comprados”, via propaganda eleitoral. O sucesso não depende apenas das idéias e do caráter dos candidatos. E para agravar a difícil posição de Obama existe uma evidente divergência de visão e simpatias entre o presidente e sua secretária de estado, no que se refere ao problema do Oriente Médio. Difícil imaginar que a derrota da aguerrida senhora — dentro de seu próprio partido, quando da escolha de quem seria o candidato democrático na última eleição presidencial — não tenha deixado um forte resíduo de ressentimento que, à semelhança dos vulcões, ficam adormecidos mas não extintos, aguardam o momento certo para explodir.

Na imprensa de hoje, o premiê Netanyahu, algo assustado com a repercussão de sua “pirataria desastrada” diz buscar “soluções criativas”. Netanyahu é, realmente, um patriota. Mas patriota à moda antiga, ultrapassada, estreita, fincada apenas no egoísmo, preocupado somente com a felicidade de seus concidadãos, indiferente ao sofrimento de outros povos.

“Soluções criativas” sempre existem. O problema é que exigem sacrifícios. Um deles é o de sentar à mesa com os palestinos e enfrentar o problema da criação do Estado Palestino, com pelo menos uma larga estrada ligando a Faixa de Gaza à Cisjordânia, porque não tem sentido manter essas duas regiões separadas. Se não for possível um acordo, “lavar as mãos”: solicitar que um Tribunal internacional decida, por arbitragem, as futuras fronteiras entre os dois Estados, porque já chega de sangue, inquietação e sofrimento. Quanto ao retorno dos refugiados palestinos — aos milhares, amontoados em campos espalhados pelo mundo árabe —, uma proposta seria indenizar cada família palestina desalojada e pedir à ONU que providencie uma grande área — na África, por exemplo — onde possam tais palestinos se fixar e prosperar. Garanto que em algumas décadas, essa “segunda Palestina”, talvez africana, poderá se ombrear, em progresso, com o Israel de Netanyahu, já falecido e lembrado — com ódio ou saudade —, conforme for seu comportamento daqui pra frente. E a própria África lucrará com isso.

Lembrei-me da África, na sugestão acima, porque se o Movimento Sionista, em 1903, tivesse aceito a oferta inglesa para instalar o Estado Judeu numa região que então correspondia a Uganda, hoje Quênia, com clima relativamente fresco — oferta recusada por causa de feras e proximidade de tribos africanas — Israel teria se tornado uma potência respeitada e tranqüila, não odiada. Não sei se hoje, uma “transferência” em massa de palestinos será possível, mas terras pouco habitadas existem, capazes de abrigar novas nações.

Qual a diferença entre o Hamas e a Autoridade Nacional Palestina? Esta última, cansada de lutar, se resignou a aceitar a existência de Israel. Quer apenas ser um Estado, soberano como os demais. O Hamas, ao contrário, não “engoliu” a expulsão dos palestinos pelos “intrusos” e por isso não aceita o Estado de Israel. Tal expulsão, porém, se tornou impossível, impraticável. Muito menos um massacre desumano, de proporções homéricas, que nunca chegaria mesmo a ocorrer tendo em vista a força econômica, militar, nuclear e política de Israel. O Hamas precisa se convencer dessa realidade evidente, entrar no mundo real e fazer o que é possível fazer: pleitear uma razoável indenização para os desalojados, pedir à ONU um espaço amplo onde os refugiados palestinos se instalariam, prosperariam e formariam, mais adiante, um Estado.

Se, para salvar as finanças gregas a União Européia destinou centenas de bilhões de euros, e os EUA, para salvar bancos e indústrias americanos, empregou outro tanto, com muito menos dinheiro será possível “comprar” uma área, mais ou menos cômoda, em algum continente, para nela se instalarem os novos “judeus errantes” que atendem hoje dela designação de “refugiados palestinos’. O Hamas pode considerar isso injusto, mas precisa ser convencido que a Justiça perfeita não existe em parte alguma do planeta.

Pense nisso, senhor Netanyahu, e zele para deixar um bom nome na Terra, antes de comido pelos vermes. Poupe uma indigestão dos bichinhos. Sua biografia ainda pode crescer, transformando-o em verdadeiro estadista. E pense, mais ainda, o presidente Barack Obama, no alívio americano quando for finalmente fechada a grande ferida que contamina o Oriente Médio mas pode se espalhar por outras áreas. Desaparecida a fonte principal do rancor — a situação palestina — o terrorismo, se persistir, será mera atividade de gangsteres, muito mais fácil de controlar.

(4-6-10)