Quem se dignar a estudar, mesmo não extensamente, a astuta campanha internacional que se faz contra o desenvolvimento nuclear iraniano só pode ficar pasmo com a tremenda parcialidade da mídia impressa contra o único país, o Irã, que teve a coragem de oferecer firme solidariedade aos palestinos, expulsos de terras ocupadas por quase dois milênios. É aí que está o foco do problema do Oriente Médio. O Irã é mero desdobramento, propício à distorções interpretativas na complexa política internacional, porque imagens de cogumelos atômicos impressionam mais que humilhações do dia-a-dia contra populações indefesas, no caso, os palestinos.
Solidariedade, a iraniana, que pode vir a custar, a seu povo, o bombardeio de suas instalações nucleares e não-nucleares, seguindo-se guerra defensiva — que será tortuosamente batizada de “ofensiva” — com conseqüente massacre de sua população. “Estadistas” envenenados de ódio, estupidez ou interesses escusos, encontram-se excitados com o cheiro de sangue e petróleo de um país fraco, se comparado com Israel e seus acólitos, inclusive os EUA.
Qual o “fundamento” para o cerco àquele país? A possibilidade, ainda remota, de que ele venha a desenvolver armas atômicas, as quais poderiam, em tese, ser arremessadas contra seu feroz inimigo, Israel, um inimigo figadal que jamais negou ser potência nuclear e desfruta do privilégio de nunca ter sido incomodado por isso. Aliás, nem mesmo se deu ao trabalho de assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear. E não o tendo assinado, não está sujeito à inspeções, podendo fabricar armas nucleares à vontade. Conseqüência jurídica tecnicamente perfeita mas moralmente aberrante para o mundo globalizado. Algo que precisa ser urgentemente corrigido pela Organização das Nações Desunidas, digo, Unidas, se tiver lucidez e coragem suficiente para isso. O que se afigura duvidoso, porque carneiros mentais, até com Ph.D., existem em toda parte.
Alguém poderá argumentar que, cerca de quarenta anos atrás, o Irã assinou o Tratado de Não-Proliferação e nele ficou prevista a possibilidade de qualquer país dele se retirar — bastando alegar que assim o faz por questão de segurança, sem maiores explicações. Pelo referido acordo, decorrido o prazo de três meses, a partir da informação de que se retira do Tratado, o Irã ficaria “livre” para fabricar armas nucleares, igualando-se juridicamente a Israel. Ocorre que se o Irã, hoje, pedir sua retirada do tratado, seus inimigos soltariam foguetes de euforia dizendo que esse afastamento seria autêntica “confissão” de que pretende desenvolver armas nucleares, precisando ser contido e, se necessário, destruído. É espantoso que o Irã não tenha se lembrado de simplesmente se retirar, formalmente, do TNP, escapando da acusação de que está violando normas internacionais. Esclareça-se que não existem “normas internacionais”. Existem tratados internacionais.
A mídia, quase toda ela inimiga do Irã, repete o tempo todo que o presidente iraniano, Ahmadinejad, prometeu, anos atrás, “varrer Israel do mapa” e uma bomba atômica — interpretam seus inimigos — seria a vassoura previsível para essa tarefa. Um arroubo retórico não só tolo como também de impossível realização e que só não foi renegado, formalmente, por seu emissor, por medo de parecer fraco. Sem mencionar, aqui, sua falta de astúcia. Qualquer outro presidente, mais esperto, diria, no microfone — talvez recorrendo à mentira —, que a promessa da “vassoura” foi proferida em um momento de indignação contra os abusos cometidos contra os palestinos e que jamais pensou seriamente em destruir um país de sete ou oito milhões de habitantes. Diria também que seu não reconhecimento do Holocausto também foi um exagero de sua parte e que jamais iniciaria uma guerra nuclear porque nela não haveria vencedores. Com esse “recuo”, sincero ou verdadeiro, veria melhorada, pelo menos ligeiramente, sua imagem no plano internacional. Talvez não tenha voltado atrás por saber que não seria acreditado e ainda pareceria covarde. De qualquer forma, tais sentenças bombásticas não justificam o que se pretende fazer agora contra o Irã, castigando todo o povo por causa de frases tolas de uma única pessoa, embora presidente da república.
Ahmadinejad deve saber, perfeitamente, que na remota hipótese de um ataque nuclear contra Israel, Teerã seria reduzido a cinzas quase imediatamente. E o Mossad, a eficientíssima inteligência israelense, saberia quase imediatamente do plano de ataque iraniano, tomando rápidas providências.
É evidente que o presidente iraniano, com suas “indiretas’ de futuro poder nuclear bélico, quer muito mais “impor respeito” do que fabricar armas atômicas que possam ser efetivamente usadas, neste ano ou no próximo. Especialistas da área atômica frequentemente externam a opinião de que serão necessários alguns anos para que o Irã possa fabricar e remessar armas atômicas para Israel. Não esquecer que países que fabricam armas nucleares precisam realizar testes, antes de utilizá-las. E qualquer teste atômico iraniano seria detectado por Israel e seus incontáveis aliados, solidários quando deveriam ser apenas justos, separando o joio do trigo. Nessa metáfora, Ahmadinejad, com suas bravatas, representa o joio.
Como todos sabem, Israel é portador de imensa superioridade em armas convencionais, no Oriente Médio. Para manter a hegemonia bélica não precisa de armas nucleares mas, “por via das dúvidas”, reforça seu poder com a subentendida força nuclear, jamais inspecionada. Quer continuar assim, o que lhe permitirá prolongar, indefinidamente, o impasse com os palestinos na criação de dois Estados. Tudo indica que Benyamin Netanyahu não tem intenção de concluir um acordo, apesar de dizer o contrário. Ganha tempo e, com a oportuna e “bendita” ameaça nuclear iraniana, encontra bom pretexto para esticar o impasse enquanto prolonga e amplia a ocupação na Cisjordânia. Além disso, dispõe de imbatível lobby internacional, capaz até de vergar um Barack Obama. Concede-se o direito de ser arrogante, até mesmo pressionando presidentes de países, como o do Brasil, para que não vá visitar o Irã.
A mídia internacional é tão aberrantemente parcial que chega a considerar como “desafio ao Ocidente” o fato de Teerã exigir troca simultânea, em território iraniano, de seu urânio levemente enriquecido (a 3,5%) por material enriquecido a 20%, vindo do exterior e necessário para fins medicinais. As potências ocidentais pretendem — parece piada... — que o material nuclear uraniano seja entregue, “em confiança”, à Rússia, e depois à França, para só depois, anos depois, ser devolvido ao Irã. Esquema que não impede que esse material seja “confiscado” ou retido na Europa, com tais ou quais pretextos, por forças políticas interessadas em manter total hegemonia israelense no Oriente Médio. Que autoridade moral têm os países ocidentais, useiros e vezeiros em duplicidade, para exigir tanta confiança, neles, de um país comparativamente fraco e sem aliados fortes?
A China, com poder de veto no Conselho de Segurança, tem mantido uma discreta resistência à pressão quanto a novas sanções contra o Irã. Quinze por cento do petróleo consumido na China vem do Irã. Daí a resistência chinesa ao pedido de novas sanções mais sérias. No entanto, como na área internacional não existe ética, apenas interesses, não está afastada a hipótese dos inimigos do Irã acertarem um esquema de fornecer petróleo, em condições mais favoráveis, à China, desde que ela não vete, no Conselho de Segurança, sanções mais fortes, inclusive bombardeios, contra o Irã. Isso ocorrendo, o Irã pagará caro pela solidariedade ao povo palestino.
Vejam também o que ocorre com a Rússia: inicialmente, ela se mostrava firme contra novas sanções contra Teerã. Como, agora, está precisando comprar aviões de transporte franceses e Sarkosy “condiciona” a venda de tais aviões “ao voto russo na ONU”, isto é, na questão das sanções — é o que diz a Associated Press, citada no jornal “Estado de S.Paulo, de 2-3-10, pág. A-14 — o presidente russo já aceita “sanções inteligentes”, a demonstrar que chefes de estado “ajeitam” a própria consciência conforme exigem as circunstâncias.
Dirá alguém que a postura de Ahmadinejad não se explica pela solidaridade para com os palestinos. Dirá que ele quer é exercer maior domínio na conturbada região. Concedamos que exista também essa motivação, porque é comuníssimo, na política, uma mistura habilidosa de motivações. De qualquer forma, existindo essa pretensão de poder regional, sua realização será muito problemática, porque vários países árabes não vêem com bons olhos a submissão a um país que nem árabe é, e sim persa. Ahmadinejad, como presidente, passará, cedo ou tarde. Será sucedido, tudo indica, por um governo menos “fanático” e mais cuidadoso com as palavras. Sairá do poder antes que esteja “maduro” o fruto bélico nuclear, com respectivo teste. E se conseguir fabricar a bomba, no seu mandato, não a utilizará porque não é doido para ignorar que o revide seria imediato e mortal, inclusive carbonizando o próprio presidente.
Agora, o que me impressionou, pelo inusitado, provocando minha óbvia ira, é o atrevimento de certas autoridades norte-americanas ameaçando o presidente brasileiro, quase “proibindo-o” de visitar o Irã, na excursão que fará em maio ao Oriente Médio. Arturo Valenzuela, americano, secretário-assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, deixou um recado ameaçador: “Queremos que os brasileiros sejam mais enérgicos com os iranianos”. E, segundo a imprensa, Hillary Clinton vai subir o tom quando vier conversar com Lula, por esses dias. Felizmente, para os brasileiros, o presidente já respondeu à altura, dizendo que conversa com quem bem entende. Lição de altivez de um simples ex-operário a muitos engravatados incapazes de não “seguir a onda”.
Por que o desespero dos políticos israelenses contra a visita de Lula ao Oriente Médio, inclusive ao Irã? A meu ver, não é porque o Brasil tenha peso nas deliberações do Conselho de Segurança. O perigo está em Lula acalmar Ahmadinejad, convencê-lo a abrandar seu discurso, retirar a intenção da “varredura”, a negação do Holocausto e a promessa de que poderá fabricar armas nucleares. E um Ahmadinejad mais brando, não ameaçador, é tudo o que os “falcões” israelenses não querem, porque com essa calma o problema da criação dos dois Estados, na Palestina, teria que ser retomado.
Povos, em geral, são assemelhados, feitos do mesmo barro. Há gente mais e menos inteligente, mais e menos culta, mais e menos inclinada à solidariedade humana. Sua felicidade, ou desgraça, depende da sorte ou o do azar na escolha de seus governantes. O mesmo ocorre com israelenses e iranianos, ambos, no momento, em maré de azar. Boa parte dos judeus, bons judeus, ótimos judeus, gostaria de viver sem apreensão, mas esta origina-se, essencialmente, do impasse com os palestinos. Enquanto não resolvida a questão, por acordo entre as partes — quase impossível —, ou por imposição do Tribunal Internacional de Justiça — feitas as modificações na Carta da ONU — viveremos à beira de uma guerra, que pode se generalizar, ou virar uma nova forma de guerrilha. Se o Irã for bombardeado, não é impossível que diplomatas israelenses sejam assassinados em variados pontos do globo, e vice-versa, porque a violência estimula a violência. Quem se sente injustiçado, e tem o temperamento forte, sempre se concede o “direito” de reagir segundo o próprio critério de justiça, mandando a lei às favas.
O mundo aplaudiria a imensa sorte de ver surgir, em Israel, um líder excepcional, à altura dos bons judeus que tanto enriqueceram a civilização. Ele já deve estar lá, mais moço que velho, um tanto anônimo e sem poder. Um político de grande envergadura moral e intelectual. Uma mistura de Baruch Spinoza, Einstein e inúmeros outros intelectuais de corajosa honestidade mental, que sabem o que seria melhor para seu país e também para os palestinos — com ou sem Hamas, mero efeito colateral de uma ferida profunda. Um novo Moisés, com nova função: a de estender a mão, sem truques, aos palestinos, primos semitas que, por viverem séculos separados, esqueceram-se, no reencontro, que continuam parentes.
(2-3-10)
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