Como a vasta maioria daqueles brasileiros favoráveis à extradição do ex-ativista italiano — porque, afinal, ele foi regularmente julgado e condenado por quatro homicídios no seu país, entrando no Brasil usando passaporte falsificado — tive também a impressão inicial de que não teria sentido prático nem jurídico o STF deixar “nas mãos” do Presidente da República — algo assim como “decida conforme seu capricho” — a decisão de entregar, ou não, ao governo italiano, o foragido. “Foragido” — não se estranhe o termo —, porque assim deve ser juridicamente considerado o italiano após o STF decidir que seu “status de refugiado político”, concedido pelo Ministro da Justiça, foi considerado ilegal.
Perguntei-me, como muitos, decepcionados com essa parte aparentemente ilógica da decisão do STF: — “Por que não atender de imediato o pedido da Itália, determinando, simplesmente, a entrega do foragido ao seu país, onde foi julgado e condenado? Se era para deixar nas mãos do Presidente Lula decidir o que bem entendesse, como um rei nos tempos do absolutismo monárquico, por que pedir um trabalhoso pronunciamento do STF? Mera curiosidade de ouvir “um palpite jurídico” que poderia desconsiderar?
Lendo, porém, hoje (21-11-09), no jornal “O Estado de S. Paulo”, pag.06, uma entrevista concedida pelo Min. Carlos Ayres Britto à jornalista Mariângela Gallucci, convenci-me de que o voto do digno e corajoso ministro — deixando ao Presidente da República a missão de “entregar” o foragido à Justiça italiana — tem forte fundamentação teórica. Isso porque, no campo do Direito Internacional ainda não foi modificado o equivocado, atrasado e por vezes exagerado conceito de soberania. Como, ainda hoje, “em cada país só manda o próprio governo”, o qual, em tese, “pode” — mas não deve — dar abrigo até mesmo aos maiores facínoras — não é realmente o caso do ativista italiano —, somente ao Presidente da República cabe dar efetividade à decisão do STF. E a decisão desta corte foi, estritamente, de considerar regular o pedido de extradição e ilegal a concessão do refúgio.
Como bem salientou o digno Min. Carlos Britto, o dilema estritamente jurídico, não político, foi encaminhado ao STF para análise da decisão proferida pelo Ministro da Justiça. E por maioria — estreita ou não, isso é juridicamente indiferente —, ficou decidido que, conforme nossa legislação, o foragido não poderia ser considerado estritamente uma vítima de perseguição política. Além disso, seu crime não está prescrito; Battisti não é brasileiro (um absurdo privilégio concedido aos nacionais, ainda consagrado em lei), e os crimes pelos quais foi condenado na Itália são também considerados crimes no Brasil. Tudo tecnicamente considerado, Cesare Battisti poderia ser extraditado. Isto é, o Presidente Lula não cometeria uma ilegalidade — violando o Direito brasileiro — se concedesse a extradição pedida pelo governo italiano. Frisou também, o referido Ministro, que o STF não foi acionado pelo governo italiano, que não é “parte” no processo. Pode ser interessado, mas não tecnicamente “parte’.
No fundo, essencialmente, não obstante a aparência de menor prestígio, o STF funciona, sim, nesses casos, como um órgão de consulta. Repita-se: consulta jurídica, não política. O Presidente da República como que faz duas perguntas ao Supremo: “O pedido de extradição de tal país tal está regular e o status de refugiado foi concedido corretamente?” E a resposta do Tribunal foi: “O pedido de extradição está correto e a situação de refugiado está errada. Nada impede a extradição. O foragido pode ser extraditado”. Mas não lhe cabia ignorar a existência do conceito de soberania de cada nação. Uma tecnicidade, realmente, mas que corresponde a este mundo ainda imperfeito que habitamos. Espera-se que nas próximas décadas isso melhore, porque é o cúmulo permitir a qualquer governante abusar de seu poder, invocando a “santa soberania” negando a entrega de presumidos criminosos a países democráticos.
Em suma, o Min. Carlos Ayres Britto não está equivocado ou contraditório em seu voto, não obstante a primeira impressão que causou em muitos, desatentos às normas internacionais.
O fato, porém, de, em certos casos, a soberania “autorizar” que “em cada país só manda o próprio governo”, isso não dispensa o Presidente do Brasil de agir como um estadista zeloso da sua reputação pessoal e do bom nome do país que governa. Seria o cúmulo da desmoralização internacional se o Brasil descumprisse o tratado de extradição firmado com a Itália, transformando um foragido da justiça — assim tecnicamente julgado na mais alta instância judiciária brasileira — em mero “protegido do rei, doa a quem doer!”. A se emprestar um valor absoluto à vontade de qualquer chefe de estado este poderia, em tese, escudado na “soberania”, abrigar criminosos condenados e da mais alta periculosidade — não é o caso, hoje, de Battisti —, assassinos seriais de crianças e chefes do tráfico internacional, porque os países interessados nesses marginais não teriam como, pela força, “arrancar” tais meliantes do território brasileiro.
Se o digno Presidente Lula desprezar as leis do próprio país, reguladoras do “status de refugiado”, cedendo a impulsos de simpatia para com o foragido — que é realmente, hoje, um escritor simpático, diferente do tempo em que, presumivelmente, matava ou mandava matar desafetos políticos — por que deveriam os demais países confiar na seriedade de nosso país? Pensarão, em casos semelhantes: “O Brasil é atrasado e imprevisível... Não percamos tempo estudando a legislação local nem os tratados assinados por esse país. Tudo depende da veneta de quem o preside”. Só restaria, nesses caso, à opinião pública nacional, mais esclarecida, a possibilidade de um impeachment para tirar do poder um presidente movido a caprichos, completamente alheio à sua própria legislação.
Não há porque o Presidente se preocupar com suposto desprestígio do Min. da Justiça, caso determine a extradição. Ontem, na internet, assisti uma entrevista, talvez de dias anteriores, do Ministro Tarso Genro e fiquei bem impressionado com sua habilidade verbal e inteligência, respondendo ao entrevistador sobre o caso Cesare Battisti. Sua fala foi cautelosa e muito persuasiva. A meu ver, se Battisti for extraditado, esse fato não abalará sua reputação como conhecedor do Direito. Era sua opinião pessoal, que foi externada com personalidade. Tem a seu favor a opinião coincidente de quatro ministros do STF e de muitos juristas brasileiros que concordam com sua posição. Só que agora, findo o julgamento, já há uma palavra oficial do Judiciário.
Minha opinião pessoal, obviamente irrelevante, é a de que referido Ministro foi bastante influenciado pela identificação ideológica com o ex-ativista italiano. Presumo que se o foragido fosse um ex-extremista italiano de direita, condenado pela morte de alguns esquerdistas no país dele, o Ministro da Justiça negaria seu pedido. Mas isso não é supreendente. É dificílimo a qualquer homem — com ou sem toga — livrar-se de suas convicções políticas mais profundas. Se fosse realizada uma sondagem de opinião pública com uma primeira pergunta indagando se o entrevistado é, de modo geral, “de direita” ou “de esquerda” e, no fim do questionário fosse perguntado, meio de surpresa, se era a favor ou contra a extradição de Cesare Battisti, podem contar que haveria uma clara prova de que a opinião sobre a extradição coincidiria, quase sempre, com as tendências políticas do entrevistado.
O Min. da Justiça não ficará desprestigiado com a extradição do italiano, assim como os Ministros do STF que foram minoritários no julgamento não ficaram “desprestigiados”. Tais discordâncias fazem parte de toda decisão humana, pública ou privada. O governo brasileiro, porém, ficará com péssima imagem no cenário jurídico internacional se descumprir um tratado internacional e a própria legislação interna, movido por simpatias pessoais de esquerda ou de direita. E não haverá “sal” que cure tão cedo essa ferida, apesar do entusiasmo do “Pré-Sal”. O Presidente Lula deverá, no caso, agir como estadista, e não como mero simpatizante de uma tendência política. Quase posso apostar nesse sentido, mera intuição, favorável ao presidente.
Se, comparativamente, especulando-se, um brasileiro matasse, por vingança, alguns ministros de estado brasileiros, ou um parente do nosso presidente, e voasse para a Itália, pedindo lá a condição de refugiado político, e o governo italiano concedesse esse status ao brasileiro — violando a legislação italiana e um tratado com o Brasil —, qual seria a reação do governo brasileiro?
Li, em jornal, que o Presidente poderia sair pela tangente, “anistiando” o foragido. A decisão seria anômala porque só pode anistiar um réu o país que o condenou, no caso a Itália. Alegar medo de que o extraditado será assassinado também será visto como desculpa esfarrapada pela comunidade internacional. A Itália não é uma Uganda, ao tempo Idi Amin Dada; nem um Iraque, ao tempo de Saddam Hussein. E certamente não faltarão advogados e grupos políticos de esquerda, na Itália, que estudarão meios legais de melhorar a sorte de Cesare Battisti. Penalistas italianos “brigarão” para pegar um caso que promoveria qualquer profissional. Se a Itália, recebido o foragido, torturasse essa figura hoje tão conhecida internacionalmente, seria a desmoralização daquele país. Só faltava essa para enterrar, politicamente, o Primeiro-Ministro italiano, um homem polêmico mas certamente não burro.
Tentaram, voluntária ou involuntariamente, colocar nas mãos do presidente brasileiro, uma bomba de difícil manuseio. Mas, com um pouco de reflexão, S. Exa. perceberá que, simpatias à parte, o melhor para a reputação, sua e do país, é agir como estadista pelo menos “normal” e seguir as normas internacionais e locais. Quem sabe, extraditado, Battisti conseguirá, no seu próprio país — com novo governo, mais de esquerda —, melhorar sua situação jurídica via anistia ou conseguindo um novo julgamento. Há um velho ditado de que Lula precisa se lembrar: “Devemos ajudar o próximo a retirar dos ombros o pesado fardo, mas não é necessário colocá-lo nas próprias costas”.
(21-11-09)
Nenhum comentário:
Postar um comentário