terça-feira, 19 de maio de 2009

O DVD da Haia

No fim do mês de abril e começo de maio de 2008 resolvi visitar — acompanhado de um filho munido de filmadora —, a cidade e os tribunais internacionais de Haia, nos Países Baixos. Como sou um entusiasta dos temas internacionais, na Política e no Direito, e confesso propagandista de um governo federativo mundial — para muitos uma idéia “desagradável” ou “ingênua” (pensa-se logo em “prepotência norte-americana” e “sociedades secretas”) — decidi conhecer mais de perto, fisicamente, as cortes internacionais e alguns juízes que ali trabalham.

Como todos sabem são quatro os tribunais sediados na cidade de Haia: a Corte (ou Tribunal) Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional, o Tribunal de Arbitragem Permanente e o Tribunal Penal Internacional da Antiga Iugoslávia, um tribunal provisório, “ad hoc”, que será extinto quando terminarem os julgamentos dos crimes de genocídio ocorridos naquela região.

É óbvio que qualquer estudioso do Direito Internacional não precisa visitar “a” Haia — com artigo definido feminino, como prefere a maioria — para conhecer sua importância. Hoje, com livros, revistas e internet disponibilizando fotos e informações abundantes sobre todos os lugares e instituições, o cidadão pode conhecer quase tudo sem sair de casa. No entanto, nada substitui inteiramente o contato direto, estimulante, visual e falado, com uma cidade que está impregnada do Direito Internacional. Se o mundo, como acredito, caminha para a solução pacífica e racional de seus problemas de convivência — a alternativa velha e idiota será sangue, ódio e vingança sem fim — certamente será a justiça mundial que dará os impulsos decisivos para uma ordem mais justa. Isso porque revestida da presunção de eqüidistância. Muito mais que a política, com sua tradicional e inevitável parcialidade. Dizia Margaret Thatcher que em política não se pode ser neutro: quem fica no meio da pista acaba sendo duplamente atropelado. Já o juiz só será atropelado se esquecer a imparcialidade. Sua missão é mesmo ficar no centro, levando raspões de ambos os lados, mas vivo.

Haia é uma cidade pequena, com cerca de quinhentos mil habitantes. Mesmo não sendo a capital da Holanda, é sua capital administrativa, com mais de cem embaixadas, escolas internacionais de Direito, e o lugar onde reside e trabalha — há uma certa insistência nesse detalhe... — a rainha Beatriz.

Por mero acaso de uma apresentação feita pelo jornalista Delci Lima, antes de eu ir à Haia, perguntei ao Min. Francisco Rezek — que foi juiz da CIJ por nove anos —, se poderia me indicar um contato brasileiro no Palácio da Paz, construído, no início do século XX, com recursos do magnata americano do aço, Andrew Carnegie. Talvez alguns não saibam que, paradoxalmente, o principal tribunal do planeta não tem prédio próprio. Apenas ocupa o Palácio da Paz, onde também funciona o Tribunal de Arbitragem Permanente.

Com sua invulgar boa-vontade e sensibilidade, o Min. Francisco Rezek, mesmo não me conhecendo pessoalmente mas confiando na minha impessoal condição de desembargador aposentado, prontificou-se a me indicar a pessoa certa, no referido Tribunal. Com tal apresentação tudo ficou resolvido. Não só pude tirar fotos como também filmar o interior do Palácio da Paz, um símbolo do idealismo do homem no esforço de evitar todas as guerras.

Próximo à entrada principal do referido Palácio, mas já dentro do edifício, um relações-públicas imensamente simpático e cordial pediu-me que observasse atentamente uma grande estátua de mármore, distante cerca de vinte metros. Olhei, olhei, mas não notei nada de estranho na magnífica figura que me encarava com suas feições marmóreas. Não sabendo o que dizer, desisti da charada visual. Disse-lhe apenas que era uma bonita estátua, certamente com alguma mensagem simbólica, porque, do contrário, não estaria ali.

Explicou-me o guia que atentasse para as mãos e o tórax da estátua. Aí, notei algo ligeiramente estranho, uma espécie de falta de sintonia entre mãos e o conjunto da obra. Pareciam mãos grandes, de homem, em um corpo que sugeria mais u’a mulher forte. Aí o guia me explicou que a peça de arte, de modo proposital, mesclara caracteres masculinos e femininos. Simbolizava a fusão dos gêneros, homem e mulher na construção da harmonia universal. O escultor, por livre iniciativa — ou a pedido de quem lhe encomendara a estátua —, fizera uma estátua hermafrodita. Daí as mãos fortes e o peito um tanto cheio demais. Note-se que a estátua foi esculpida na primeira metade do século passado, quando as mulheres ainda não tinham direitos iguais em todas as nações ditas civilizadas.

O sufrágio feminino foi conquistado a duras penas, daí a pertinência, para a época, do hermafroditismo simbólico. Observo, incidentemente, que a mulher, por instinto natural e invencível de proteção da prole, é geralmente inimiga de guerras e outras carnificinas. Se todos os países fossem governados por mulheres certamente teria sido muito menor o número de conflitos armados. A mulher não aceita que seu filho, neto ou sobrinho, vá morrer sangrando numa trincheira; ou queimado vivo dentro de tanque ou aeronave em chamas. Já o homem maduro, empolgado pela vaidade belicosa — e confortavelmente distante dos campos de batalha... — aprova a participação da rapaziada nas guerras, principalmente quando presume que o país dele vai ganhá-la.

À medida que percorríamos as dependências do Palácio da Paz o guia nos mostrava vasos, pisos, bancos, quadros, estátuas e outras contribuições, cada detalhe dádiva de um país membro das Nações Unidas. Um banco de madeira, se não me engano feito de pau-brasil, fora nossa contribuição.

Graças à apresentação de Francisco Rezek consegui facilmente uma entrevista com a então presidente da Corte, a juíza Rosalyn Higgins que, com imensa cordialidade, inteligência — e paciência com meu inglês verbal gaguejante —, respondeu às minhas indagações. Note-se que, nas perguntas lidas, fui bastante incisivo, até mesmo indiscreto, na crítica implícita do ponto fraco — institucional, não pessoal — do Tribunal Internacional de Justiça: a possibilidade de o país, vencido na demanda, não cumprir a decisão do tribunal, o que implica na transferência do problema para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. E todo sabem que, no Conselho, basta o veto de um dos cinco membros permanentes para impedir medidas mais enérgicas contra o país que não cumpriu a decisão judicial. Um outro ponto fraco, também institucional — contra o qual nada podem fazer seus juízes, atados que são ao estatuto da Corte Internacional —, está no fato de os processos dependerem do consenso, isto é, um país só será julgado se concordar com isso. Por outras palavras, ainda existe, na ordem internacional o direito de “recusa de jurisdição”, algo superado ha muitas décadas no direito interno de todos os países civilizados. É evidente que o país que sabe estar errado não irá aceitar o julgamento de seus atos. E contra esse absurdo os juízes da CIJ nada podem fazer. Esse detalhe retrógrado decorre da invencível desconfiança mútua entre os povos, algo que precisa ser melhorado, mas com exemplos, não meras palavras.

Não obstante tais senões, os juízes internacionais têm se esforçado tanto, pessoalmente, para compensar as deficiências institucionais, que os casos de descumprimento de decisões sobre o conflito entre estados soberanos é mínimo, como nos explica a presidente entrevistada. Enfim, a CIJ tem sido imensamente útil, daí o merecido prestígio de que goza. Resta um passo além, no sentido de cancelar a referida recusa de jurisdição, empenho que espero um dia entrar na agenda de intenções de Barack Obama e outros influentes chefes de estado.

O único ponto fraco do DVD, confesso, está em mim mesmo, no meu inglês tatibitante ao entrevistar Madam Rosalyn Higgins. Mas a imensa delicadeza da jurista procurou relevar o fato e nos deu uma convincente explicação sobre o que lhe foi perguntado. Como saliento no disco, o incidente serviu para comprovar a necessidade da prática constante do inglês falado. Quem quiser penetrar na área internacional não pode se satisfazer com a mera capacidade de ler textos em língua estrangeira. Quando menos se espera, é a boca, não os olhos, que precisa trabalhar.

A jurista brasileira Sylvia Steiner, do Tribunal Penal Internacional, também prontificou-se, com sua elegância, competência e clareza, a esclarecer o papel da corte em que trabalha, criada para julgamento de políticos que praticaram crimes contra a humanidade e não foram punidos em seus respectivos estados. À época da conversa filmada não havia o problema de como prender o presidente do Sudão, que conta com o apoio de alguns chefes de estado e se recusa a comparecer a seu julgamento. Sendo o TPI um órgão ainda novo, e enfrentando de uma situação absolutamente nova, a engenhosidade jurídica dos seus juízes certamente encontrará a solução mais sensata e possível para o delicado impasse. Sua Excelência aproveitou a oportunidade da entrevista para dar algumas “dicas” aos interessados em crescer profissionalmente na área internacional.

Regressando ao Brasil ocorreu-me a idéia de entrevistar o Min. Francisco Rezek e depois o Prof. Luiz Olavo Baptista, dois nomes que dispensam apresentação. Quem os ouvir e sentir, ao vivo, a evidente sinceridade de suas palavras ficará, não há dúvida, estimulado a estudar o Direito Internacional, tanto o público quanto o privado. Embora consciente de que, profissionalmente, no momento, o Direito Internacional Privado oferece mais campo que seu “irmão” jurídico, pois o Brasil não tem tido necessidade, felizmente, que demandar contra seus vizinhos, em questões de fronteira. E nosso atual presidente — também felizmente, a meu juízo — é propenso à conciliação. Tenta resolver os problemas mais com um gesto amigo e compensações do que com gritos ou socos. O Brasil está inserido em um continente coberto por nuvens políticas carregadas de eletricidade anti-americana, prontas a emitir raios à menor provocação. Fosse o nosso presidente um homem de pavio curto já estaríamos em guerra pelo menos com a Venezuela, Equador, Paraguai, Uruguai e Argentina.

Nos próximos dias verificarei o interesse das livrarias e faculdades de Direito e Relações Internacionais em distribuir cópias do referido DVD, transformando o disco em incentivo para o estudo dos temas internacionais. Em vez de um DVD para uso apenas particular — como era meu objetivo inicial —, poderei transformá-lo em fonte de incentivo cultural. Assim espero.

Como toda idéia puxa outra, penso que o atual momento de dificuldade econômica global e o relativo prestígio brasileiro nos foros internacionais, é propício para o Brasil criar, aqui mesmo, um centro de estudos e preparação de profissionais na área internacional. Um centro realmente internacional — sobretudo sério... —, estimulando jovens bacharéis de toda a América Latina — e talvez de outros continentes — a aqui vir estudar e se preparar para o novo mundo — retificado! — da globalização. Por que, pergunta-se, não criar, no Brasil, o equivalente qualitativo cultural dos grandes centros de estudos internacionais, hoje existentes em Paris, Oxford, Cambridge e Harvard? Alguns professores que lecionam lá não fariam objeção a aqui também lecionar em determinados períodos do ano. Tais convites, obviamente aceitos, dariam o tom de respeitabilidade cultural necessária a uma iniciativa desse gênero. E a “Sorbonne brasileira” teria um diferencial: além de ensinar o que já se ensina nas grandes universidades de Direito Internacional estudaria, com especial empenho como apressar o criação de um governo mundial democrático, hoje um tema ainda algo marginalizado.

A globalização é irreversível. Recentemente, já foi acolhida a idéia, externada por alguns chefes de estado, de que é urgente a necessidade da criação de mecanismos controladores e moralizadores das altas finanças. Controle impossível se mantida, fanaticamente, a soberania absoluta, cada país fazendo o que bem entende, indiferente à repercussão de suas práticas na área internacional.

Um detalhe que me surpreendeu, no depoimento de Francisco Rezek — e ninguém conhece o assunto melhor do que ele — foi a informação de que temos, no Brasil, juristas monoglotas que conhecem o direito norte-americano melhor que muitos juristas daquele país. Falta-nos, porém, para nos habilitar ao trabalho na área internacional, o domínio de algumas línguas estrangeiras, falha a ser sanada com o centro de estudos acima sugerido. Não basta “falar” inglês ou francês, por exemplo. É preciso dominar o vocabulário jurídico específico em tais línguas.

Deixo aqui a sugestão que, por mero acaso, poderá cair em ouvidos alertas. O Min. Celso Amorim, coincidentemente, é alerta, lúcido e equilibrado. Bem que poderia pensar no assunto. Se não ele, outros, igualmente competentes, poderão acariciar e materializar essa idéia, que não pertencerá a qualquer partido político, mas ao Brasil e ao Mundo.

(19 - 5 - 09)

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