domingo, 16 de setembro de 2012

"Criônica". O romance e a realidade



Como autor, sinto-me injustiçado. O que não deve causar estranheza nas pessoas melhor informadas. Imagino que nenhum escritor, bom ou mal, se considera plenamente realizado. Se ele se considera “o máximo”, está redondamente enganado, porque a perfeição é inatingível e incompatível com qualquer arte. Certamente padece de sutil burrice, ainda que Nobel, confundindo, por exemplo, ganhar dinheiro — escrevendo livros —, com o status, de grande escritor. Estes existem em pequeno número e eu, com um mínimo de realismo, não me incluo no selecionado rol. Se, eventualmente, me incluísse, jamais o diria porque a imodéstia ofende e com ela a já mencionada burrice estaria mostrando as garras.

No caso de autores, homens e mulheres, que enriqueceram escrevendo livros de medíocre qualidade — mas estão bem conscientes disso —, não há porque criticá-los. Pelo contrário. São pessoas inteligentes.  Vencedoras. Sabiam francamente o que queriam — ganhar muito dinheiro —, e agiram em conformidade com esse objetivo.  São homens e mulheres práticos, bons empresários de si mesmo, dublês de psicólogos e marqueteiros, com grande percepção do que agrada e desagrada não só o público leitor como também os editores, esses atribulados intermediários entre o talento e o público.

Sem editor, nada feito. Imprimir livros, propagandeá-los e distribuí-los é ciência esotérica, cara e arriscada. Alguém já proclamou que autor e editor precisam fazer como as galinhas: não basta botar o ovo, é preciso cacarejar. Mas apenas para as galinhas isso sai barato. Editores precisam de faro superior ao de cães de aeroportos, detectores de drogas — um olfato mais mercantil que literário — para impedir que seus produtos impressos não se transformem em encalhes, provocando gastrites monumentais. São, essencialmente, comerciantes de livros, não funcionários do Ministério da Cultura, encarregados de elevar a instrução do país. Somente por exceção é que publicam obras que são respeitáveis mas financeiramente “cheiram mal”. E o Estado não é rico o suficiente para garantir aos editores que todos seus livros encalhados serão indenizados pelo tesouro público. Há necessidades muito mais urgentes que erguer o ânimo de autores que veem seus originais rejeitados.

 Em 2005 publiquei, por minha conta, um romance — “Criônica”, Edições Inteligentes, autor Pinheiro Rodrigues — em torno na Criogenia aplicada a seres humanos. Todos sabem que a Criogenia é um capítulo sério da ciência, dedicado a estudar os efeitos das baixas temperaturas em seres vivos e não vivos. O frio interessa aos pesquisadores da velocidade da eletricidade nos materiais, à pesquisa espacial, ao armazenamento dos bancos de óvulos e esperma e em muitas outras coisas.

Envolvendo o humano, a Criogenia acabou interessando às mentes mais “visionárias” que entenderam conveniente criar um ramo próprio da Criogenia que especificamente estudaria o congelamento de seres humanos. Esse “ramo” foi batizado, nos EUA, de “Cryonics” — que traduzi para “Criônica”. Tais “visionários”— melhor seria dizer “entusiastas”— passaram a imaginar o seguinte: se um homem, não muito velho, for acometido de doença incurável, com morte próxima, o que haveria de moralmente censurável se ele, em vez de aguardar passivamente o “doentio pelotão de fuzilamento”, pedisse para ser congelado, imediatamente após sua morte natural, como se fosse um espermatozoide, ou óvulo? Mantido a uma temperatura próxima ao zero absoluto — em que os inquietos átomos ficam praticamente imóveis —, não haveria apodrecimento, não é mesmo?

— “Mas o sujeito estaria morto! Como ressuscitar um cadáver congelado? Estando morto, sua alma teria ido embora! Onde a pegaríamos de volta para reintroduzí-la no maluco falecido décadas atrás?” — diziam os espiritualistas mais indignados.

Com base nessa esperança, moralmente não censurável, os “entusiastas utópicos” passaram a imaginar as técnicas possíveis para ver se conseguiam congelar uma pessoa logo após sua morte, com isso evitando a deterioração, principalmente dos neurônios. Eles imaginaram, usando apenas a lógica — por vezes enganadora porque desatenta aos detalhes fáticos —, que se um ser vivo qualquer ficar congelado de tal forma que suas células não apodreçam, imobilizadas pelo frio, é possível — pelo menos possível —, que daqui a algumas décadas, quando a ciência e a técnica estiverem muito mais adiantas, ele possa ser descongelado e manipulado de forma a retornar à vida. Os danos resultantes do longo e álgido sono seriam consertados pela ciência futura. Algo assim como ocorre quando alguém assiste a um filme em DVD, faz um “pause” e depois prossegue vendo a fita. Se nada apodreceu, quando extremamente congelado, por que seria impossível o “ressuscitar” algumas décadas depois? Tudo dependerá das técnicas futuras, muito mais avançadas que as atuais.

Essa esperança, em um ser humano que se sabe próximo da cova, ou da cremação, tem um efeito psicológico secundário nada desprezível: é muito mais confortador saber que vai perder a consciência numa mesa de operação, para talvez — pelo menos talvez — acordar em um futuro mais cientificamente avançado, do que saber, com absoluta certeza que vai morrer mesmo e apodrecer ou torrar, em crematório, até ser reduzido a cinzas que cabem em pequena urna. — “Se a criônica não funcionar, paciência. Já estarei morto e nem saberei disso. É como adormecer para uma operação arriscada. Algo muito mais palatável que a certeza da morte iminente, com seu pavoroso “nada”, ou o inferno. Uma conjetura semelhante às apostas na Mega Sena. Provavelmente não ganharei nesta semana mas posso ganhar na próxima. E meu investimento no congelamento não será exagerado. O único prejuízo, caso a criogenia não funcione, será de meus herdeiros, com os gastos do congelamento. Se funcionar, o prejuízo será maior porque os herdeiros terão que devolver boa parte da herança recebida do “velho maluco!”.

Vejamos, agora, o lado técnico da ideia e depois a conclusão desestimulante a que cheguei.

Não há dúvida, como já disse, que o frio intenso da criogenia — 196º Célsius negativos — impede em, digamos, 99%, o apodrecimento dos tecidos. No entanto, esse frio não tem apenas consequências benéficas. Há o lado negativo: com o congelamento a água que existe no interior das células de nosso corpo transforma-se em cristais de gelo, dilatam-se e, sendo tais cristais dotados de arestas, essas perfuram a membrana celular, deixando vazar o precioso líquido sem o qual será impossível a “nova vida”. Quando do descongelamento, haveria bilhões de células totalmente inutilizadas. Aí o grande obstáculo técnico para a eficácia da criogenia.

Surgiu, porém, nos últimos anos, uma esperança: sapos e rãs da regiões árticas ficam congelados no inverno, aparentemente mortos, mas com a retorno da primavera, “acordam”, lampeiros, prontos para continuar o ciclo biológico: comer e copular — porque esses cretinos feios não pensam em outra coisa. Para tal façanha, de ressuscitar, o organismo de uma rã dessas regiões, a “rã-leopardo” (Rana pipiens), produz uma forma de açúcar que impede que a água das células se transforme em gelo e, com isso, dilatando-se, provoque o dano celular. Em suma, as células ficam congeladas, vitrificadas”, mas sem dilatação. E sem dilatação, as células conservarão a água indispensável.

Era o que os adeptos da Criônica queriam ouvir. O resto de empecilhos seria contornável, como, por exemplo, as proibições legais, exageradas, exigindo que o paciente esteja “totalmente” morto para que se iniciem os preparativos para o congelamento, com imediata retirada de seu sangue e substituição dele por glicerol. Essa exigência legal implica em manter de prontidão uma equipe de técnicos, espera que pode demorar dias. No momento em que o coração para de bater desencadeia-se uma maratona contra o tempo porque cada minuto é precioso. Se o cérebro for privado de oxigênio, mais que alguns minutos — o número exato é sujeito a discussão —, o neurônio começa a se estragar, o que tiraria a razão de ser da criônica. Quem deseja se congelar, para despertar daqui a algumas décadas, quer “acordar” tão lúcido quanto era antes de morrer.

Com a boa notícia de que algumas rãs e sapos congelados podem retornam a vida, bastaria aos adeptos da criônica se esforçarem para sintetizar uma substância que, introduzida imediatamente no “paciente”, após sua morte, impedisse a água da células se transformar em gelo. Sem gelo, repito, nenhuma dilatação, nenhum “estouro” de células.

Neste ponto da exposição, confesso que minha esperança maior — ao estudar o assunto e escrever o romance — não estava tanto em propiciar a um doente de câncer incurável, por exemplo, desfrutar mais alguns anos de vida após a “ressurreição”. Seria muito trabalho e gasto para alguns anos de vida a mais. Minha “ambição secreta”, “inconfessável” — não propriamente para minha pessoa —, era a perspectiva de uma coisa muito mais abrangente, uma quase eternidade física. Como assim? Explico a seguir.

Se o paciente, após décadas de “criopreservação” acordasse lúcido e fosse um excepcional cientista — um Einstein, ou equivalente —, com imensa bagagem de informação e reflexão original, seria útil à humanidade que ele vivesse — lúcido, lúcido! — duzentos, trezentos ou mais anos, com periódicos acréscimos de novos neurônios — verdadeiras “gavetas” que armazenam informações — que adicionariam novos conhecimentos aos conhecimentos já existentes.

Onde obteríamos esses novos neurônios? Através das células-tronco embrionárias, capazes de se transformarem em qualquer tipo de célula, inclusive a nervosa. Mesmo as melhores cabeças envelhecem e enfraquecem. A natureza, “mesquinha”, tem essa limitação. Faz questão de que não sobre ninguém além dos 130 anos. Se ocorrer isso estaremos vendo uma múmia viva, mas cega, muda, surda e desnorteada.

Mesmo as melhores cabeças envelhecem, infelizmente. Porém, com periódicos acréscimos de novos neurônios — mesmo com eventual necessidade de fazer algumas intervenções cirúrgicas na caixa craniana —, com tais neurônios “loucos para trabalhar”, a mente humana daria grande salto à frente. Voltando ao grande físico, um Einstein três vezes mais capacitado em quantidade de neurônios, certamente teria muita coisa a nos ensinar.

Nesse entusiasmado ponto de reflexão, recebi uma ducha de água fria em meu entusiasmo especulativo. Lembrei-me de que, pelo que se sabe, nenhuma célula é imortal. Neurônio é uma célula. E os neurônios novos, obtidos via células-tronco embrionárias, seriam “células-bebês”, totalmente ignorantes. Precisariam aprender a falar, a ler, a fazer o curso primário, ginasial, universitário e pós-graduação para só então ajudar, acrescentando algo o cérebro do velho cientista. Neurônios velhos, embora sábios, iriam enfraquecendo e morrendo à medida que a “garotada ignorante” fosse brotando em seu cérebro, outrora privilegiado. Continuaria existindo, no córtex cerebral,  essa periódica “invasão de bárbaros” — como disse um certo filósofo, referindo-se a cada nova geração.

Como desconheço qualquer possibilidade de tornar os neurônios imortais, não vejo agora, lamentavelmente, na criônica, utilidade maior do que o paciente continuar a vida que levava antes de ser congelado, vivendo, depois de “acordado”, os anos que normalmente viveria se não tivesse sido acometido da doença mortal. Provavelmente alguns anos a mais, devido aos recursos da futura medicina. Nada mais. Apenas uma “esticada”, depois de uma longa “parada”, nunca alguns séculos de acréscimo.

Insisto: mesmo que uma pessoa consiga “ressuscitar”, sem danos — por si só uma estrondosa façanha técnica — o “ressuscitado” continuaria envelhecendo. Se recebesse, periodicamente, o implante de células-tronco embrionárias capazes de se transformar em neurônios, estes seriam, como já disse, “caixas vazias” que necessitariam ser preenchidas a partir do zero. Com o passar dos anos, o grande cientista já não seria mais ele mesmo, porque seus velhos e sábios neurônios estariam mortos. Einstein não mais saberia que nasceu em Ulm e que é alemão, a não ser que alguém lhe ensinasse isso. Triste, não?

Se existe um Deus que criou deliberadamente uma criatura tão especial, “à sua semelhança” — o bicho homem,— parece que não estava nas Suas intenções colocar no Planeta Terra um ser não muito confiável, ganancioso e orgulhoso que, um dia, pretenderia viver eternamente, talvez tentando Lhe tomar o poder. Não confiando plenamente na sua especial criatura instalou no seu cérebro neurônios de duração limitada e carimbou essas palavras invisíveis: “Artigo perecível. Prazo de validade: 120 anos. Convém consumir bem antes do vencimento”.

Esse, por enquanto, o desanimador futuro da criônica. Mas meu romance é bom, ou pelo menos ilustrativo. Pena que não tenha sido difundido. À breca com a modéstia.
(16-09-2012)









































































































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