domingo, 20 de maio de 2012

Quando a gratidão torna-se um mal

Não existe sentimento mais digno e nobre que a gratidão. Se consultado algum livro, ou site, de citações famosas na internet sobre essa bela virtude, a grande maioria delas esmera-se em por nas alturas esse fenômeno psicológico e moral que praticamente nos obriga,  com paradoxal prazer — toda obrigação é meio desagradável... — a agradecer e retribuir quem nos estendeu a mão. Mão que provavelmente nos foi negada, anteriormente, por várias pessoas que, da boca pra fora, davam a entender, ou mesmo garantiam, que poderíamos sempre contar com elas.

Os moralistas, frequentemente, insistem na comparação entre o homem e o cão, pois este, se tratado com bondade, mesmo sendo mal alimentado, pode ficar dias perto do túmulo do dono; talvez uivando, o equivalente canino do choro humano. Alegam que homem nenhum passará longo tempo chorando pelos cantos a morte de seu cão. A comparação é obviamente desproporcional porque o “horizonte” mental do cão é tremendamente restrito enquanto que o pensamento do homem sofre miríades de interferências diárias exigindo contínua atenção sobre variados assuntos, práticos e teóricos. E talvez alguns cães sejam mais “sentimentais” que outros...

Há, também, os pensadores “cínicos”, ou “céticos”, que tudo encaram com desconfiança, sempre propensos a investigar o possível “lucro”, financeiro ou social, de todo agir humano.Um grande moralista do passado, François de La Rochefoucauld, dizia que a gratidão pode significar apenas o desejo de novos favores. É claro que há gente dessa laia, mas presumo que representem minoria. O leitor, certamente — se chegou a ler este artigo até aqui é porque tem preocupações morais —, já sentiu algum sentimento de gratidão e ao externar esse sentimento ao benfeitor não teve a mais remota intenção de pedir novo favor, consciente de que gratidão com olho em nova vantagem é “negócio”, ou abuso da bondade alheia.

A gratidão, porém, tem um ferrenho e, no fundo, biológico inimigo: o amor-próprio, o orgulho, a necessidade de preservar o próprio valor. Pessoas que se consideram “especiais” — poucos não se consideram — não gostam de dever favores. Recebê-los é uma admissão de que estão em posição algo inferior, dependente; tanto assim que precisaram “pedir” algo. E, mais vexatório: pedir temendo um “não”. Pedir um favor não é o mesmo que pedir uma informação na rua. Fossem “fortes”, pensam, não pediriam nada: — “Odeio que sintam pena de mim!”. E frequentemente é mesmo a comum compaixão que leva pessoas a atender pedido de amigo, parente, ou mesmo do simples conhecido. Foi pensando nisso, no orgulho ferido, que o “Marquês de Maricá” — pseudônimo de Mariano José Pereira da Fonseca, um carioca  falecido em 1848, que foi senador e Ministro da Fazenda de D. Pedro I,—, chegou a mencionar, em suas “Máximas”, que algumas pessoas “vingam-se dos benefícios recebidos”.

Realmente, “dever favor a um sujeito antipático e que está, talvez, se pavoneando por aí dizendo que me ajudou, é carregar uma ferida que exigiria certa vingançazinha: uma futura posição trocada, ele me pedindo algo que eu talvez negasse de início, só para vê-lo implorando, de joelhos, como me senti quando pedi a ele aquele favor”.

Para evitar a ingratidão por orgulho ferido recomendam, os entendidos em venenos d’alma, que o benfeitor não fique muito tempo perto do ajudado e nunca mencione — em público ou em particular — o favor prestado. Isso cutuca a velha ferida. Um outro fenômeno mental — até mesmo inconsciente — relacionado com a ingratidão é que o orgulho magoado torna seu portador, quando beneficiado por favor em dinheiro, tremendamente sensível a qualquer palavra, gesto, sorriso ou olhar que possa, mesmo remotamente, significar alguma forma de desprezo. O inconsciente do devedor orgulhoso fica o tempo todo em alerta máximo para detectar e valorizar um detalhe que se tornará pretexto para não pagar o que deve: — “ O desgraçado me ofendeu com aquele olhar! Ele pensa que se tornou meu dono só porque me fez um favor?! Vou ensinar a esse camarada! Pagarei quando puder, ou quiser...”

É por isso, evidentemente, que favor em dinheiro vem sempre garantido com um título de crédito. Do contrário, qualquer ligeira demora em responder a um aceno, ou outro ritual de cortesia pode “justificar” o não pagamento de uma dívida sem comprovação documental. E quando o pagamento da dívida for feito com trabalho futuro, o problema será o mesmo. Sair de casa para trabalhar e receber logo a paga é muito mais estimulante do que sair de casa para trabalhar e voltar com as mãos vazias, embora com a velha dívida ligeiramente menor. Sei, porém, de alguns casos em que o devedor de serviço cumpriu direitinho seu dever de pagar dívida de dinheiro com serviço pontual, mas isso é raro.

A frase mais brutal que encontrei entre os pensamentos sobre a gratidão veio da boca de um ditador notório por sua grosseria, tenacidade e impiedade. Ninguém menos que Joseph Stálin, que preferiu trocar seu sobrenome verdadeiro,  Djugashivilli, por “Stálin”, que significa “homem de aço”,”durão”. Referindo-se ao sentimento da gratidão, Stálin assim se expressou, segundo citação, em inglês, constante da internet (BrainyQuote): “Gratitude is a sickness suffered by dogs” ( “Gratidão é uma doença que ataca os cães”). Transcrevi como está na internet porque alguém poderia duvidar do que eu escrevi, contrariando o universal elogio de uma virtude mundialmente admiradíssima.

No mesmo site consta que Stalin também disse: “Death is the solution to all problems. No man - no problem”( “A morte é a solução de todos os problemas. Nenhum homem, nenhum problema”). Ainda tenho alguma dúvida sobre a veracidade dessa citação. Stálin nunca diria isso em público. Se alguém duvida que o Socialismo mundial — ideal concebido para tornar o mundo melhor — esteve sob o mau comando de uma vocação de gangster, essas duas frases tirariam qualquer dúvida. Ou será que um certo grau de “gangsterismo” é indispensável na área internacional, onde impera a força, de braço dado com a mentira?

                    Voltando ao tema mencionado no título, o lado negativo da gratidão, quis me referir à gratidão indevidamente aplicada na política, quando lesiva ao bem comum. Uma ingratidão política pode, às vezes, ser melhor, para a coletividade, do que a gratidão. Cito, a seguir, um exemplo concreto. Omito nomes para evitar problemas com possíveis herdeiros, zelosos em manter a reputação de um ancestral incapaz de se defender, porque já não mais entre os vivos.

Contaram-me, décadas atrás, que um grande político brasileiro, quando candidato a governador, foi muito bajulado por um cidadão que dispunha de uma frota de peruas para sua atividade comercial. Perto da eleição, esse indivíduo teria oferecido os préstimos de seus veículos para fazer a propaganda desse candidato, percorrendo cidades com aparelhos de som. O político venceu as eleições, elegeu-se governador e o indivíduo em questão — conhecido por seu amor ao dinheiro e falta de escrúpulos — passou a assediá-lo, na sede do governo estadual. Queria, a todo custo, ser nomeado para determinado cargo de grande significado financeiro. O então governador instruía seu secretário a dizer sempre que ele, governador, estava em reunião, ou dando outra desculpa. Imaginava que, com o tempo o pretendente acabaria desistindo, o que não ocorreu. O secretário, cansado de tourear, convenceu o governador a receber o ganancioso. Cara a cara, o dono das peruas alegou que o governador, quando candidato, lhe prometera esse tal cargo, se eleito. Argumentou que com a propaganda das peruas, teria, influído na sua eleição. Exigia, portanto, o cumprimento da palavra. Aí o governador lhe teria dito: — “Se cheguei, eventualmente, a prometer, quem lhe prometeu foi o candidato Fulano de Tal” — disse seu nome —, “mas o governador Fulano de Tal” — repetiu o nome — “nega o pedido!” E negou, de fato.

Se houve, realmente, uma promessa formal, ou uma vaga promessa, não sei — por isso não mencionei nomes envolvendo pessoas já falecidas — mas o fato é que a provável ingratidão do político foi muito mais virtuosa que a gratidão.

Outro potencial perigo relacionado com a gratidão está no critério para a escolha de Ministros de Tribunais Superiores, principalmente do STF. Como todos sabem, os Ministros do STF são nomeados após indicação do Presidente da República. Incidentemente, até hoje não compreendi a justificação lógica para tal critério, copiado dos Estados Unidos da América do Norte. Lá com a agravante de que o jurista é nomeado não para ser um dos  membro da Suprema Corte. É nomeado para ser dela presidente, e por toda a vida. Algo que evoca a monarquia, incompreensível em uma nação que pretende espalhar a democracia em todo o planeta, com periódico revezamento do poder.

Uma total independência de Poderes proibiria qualquer Presidente da República, de qualquer país, “escolher”, à vontade, quem vai votar em julgamentos importantíssimos, inclusive das suas próprias decisões presidenciais. Será que o Ministro nomeado, por mais idôneo que seja — e uma grande idoneidade tende, até mesmo inconscientemente, a valorizar a gratidão — não teria dificuldade em livrar-se da obrigação moral de retribuir quem tanto o ajudou? Principalmente quando a matéria sob julgamento for especialmente delicada, comportando decisões opostas e defensáveis em matéria constitucional. Dizer que nesses casos o Ministro “grato” deve dar-se por impedido não é uma saída prática porque pode ocorrer que largo percentual dos Ministros tenha sido nomeado pelo mesmo Presidente da República.

A faceta perigosa, porém, da gratidão em assuntos públicos não está apenas na nomeação dos Ministros pelo Chefe do Executivo. Maior perigo está na gratidão do nomeado para com algum figurão, não magistrado, que se empenhou para a transformação do  jurista em um juiz do mais alto tribunal do país. Assim como forma-se espontaneamente um lobby de admiradores em favor de candidatos a cadeiras nas Academias de Letras e nas vagas dos Tribunais Internacionais, presume-se — agora com razões bem mais concretas —, que o próprio Presidente da República seja pressionado para escolher tal ou qual jurista para preencher  as vagas no STF, onde são disputados interesses econômicos e pessoais bem mais concretos que pendências em tribunais internacionais. Nestes últimos será remotíssimo, ou nenhum, o interesse pessoal dos admiradores de tal ou qual especialista de Direito Internacional. “Torcem” por um ou outro candidato ao cargo porque simpatizam e admiram sua competência e personalidade.

 Na batalha de bastidores dos tribunais locais alguns pressionam o chefe do Executivo apenas por admiração pessoal pela capacidade do amigo. Outros, porém, pressionam por motivos estratégicos, prevendo que um dia poderão precisar da boa-vontade desse amigo. Grandes financistas e empresários, principalmente aqueles em constante perigo de serem acusados de infringir a lei — cada vez mais sutilizada e amplificada com preocupações de “crime organizado”, “tráfico de influência”, “enriquecimento ilícito”, “evasão de divisas”, “fraudes em licitações”, “fraude fiscal”, etc. — certamente veem em cada vaga no STF uma conveniência de preencher essa vaga com um “amigo do peito”. Lutarão seriamente para “emplacar” esse amigo e este, se escolhido para o cargo, terá que — quando surgir uma demanda envolvendo interesse, mesmo indireto, desse amigo — lutar para resistir ao próprio impulso de retribuir, por gratidão, o favor recebido quando for possível fazer isso com um voto bem fundamentado. E todos sabem como o Direito não é uma ciência exata.

Acredito e espero, porém, que o paradoxal dever moral da “ingratidão cívica” esteja sempre presente na formação da futura jurisprudência brasileira.

As considerações acima não contêm indiretas à situação brasileira. Têm apenas a intenção de analisar, genericamente, uma virtude que, como todas as demais, não pode ser vista de forma rígida, carimbada como calculada “obrigação de retribuir”.  Uma espécie de compra e venda moral. Traficantes, em favelas, costumam “ajudar”, com dinheiro, alguns moradores, já contando com sua futura colaboração, avisando a proximidade da polícia. Ser grato, nessas circunstâncias, é apenas colaboração com o crime. Mesmo as virtudes podem ser desvirtuadas. Se o benfeitor agiu apenas por malícia, não é malicioso ser ingrato quando cobrado o benefício.

Estou hoje com a veia moralista, mas espero que isso passe logo, porque assuntos dessa natureza em geral apenas enfadam os leitores.

                  (20-5-2012)























                    




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