segunda-feira, 5 de março de 2012

Orelha versus cotovelo no "vale-tudo"

Orelha versus cotovelo no “vale-tudo”

Tomo a liberdade de abordar um assunto menos intelectualizado, mas de alguma utilidade geral, considerando que os esportes exercem um papel não desprezível na formação moral dos cidadãos. Eles ajudam no fortalecimento do caráter, incentivam a auto-disciplina, a auto-confiança, a tenacidade. Servem de escoadouro legal para o componente de agressividade que faz parte da nossa herança animal. Isso sem mencionar os benefícios para a saúde, quando praticado. Um atleta dominado pela gula, pelo álcool, pelas drogas, pela preguiça e pela atividade sexual sem controle pode dar adeus ao estrelato nos esportes. Se chegar a campeão, será por pouco tempo. Logo um outro atleta, talvez menos dotado porém mais disciplinado, o humilhará, no campo, na quadra, no ringue ou no “octógono” do “vale-tudo”.

Sempre gostei de esportes de luta, embora tenha-os praticado muito pouco e com reduzido talento. Tinha pouca resistência, cansava logo; talvez falta de treino. Um pouco de boxe, quando no ginásio, e outro tanto de judô, quando juiz da comarca de Cachoeira Paulista- SP. A academia de judô, onde estive algumas vezes, localizava-se na vizinha cidade de Lorena. Notei que alguns dos meus adversários, nos treinos, caiam muito facilmente, provavelmente para agradar “sua Excelência”. Era uma época em que os juízes eram altamente respeitados — e tenho a certeza de que voltarão a sê-lo, passada a maré baixa atual, desencadeada por variados fatores, a maior parte sem culpa dos próprios magistrados, em sua vasta maioria.

Justamente por apreciar esportes de luta é que sinto-me motivado a externar alguma preocupação com o progresso — ou regresso — das artes marciais. Tudo o que é bom pode se tornar mau, conforme o rumo. O equilíbrio, em tudo, é raro e precário. Neste artigo abordarei o “vale-tudo”, um esporte que cada vez mais atrai entusiastas. Até mesmo do sexo feminino, assistindo as lutas ou até mesmo praticando-o — o que é um tanto contrário à natureza da mulher. Presumo, no entanto, que boa parte das moças — as menos moças certamente confessam que “odeio essa barbárie!” — que comparecem aos estádios estão ali apenas para vigiar e agradar aos namorados ou maridos, porque a concorrência feminina na caça e guarda dos varões é sempre tenaz, embora sutil. Digo isso porque as mulheres são, no geral, menos apreciadoras de cenas de violência e sangue.

Por que eu “evoluí” para o “vale-tudo” atual, bem mais violento que o boxe, o judô e outras formas orientais de luta? Porque o “vale-tudo” na sua fase inicial, de muitos anos atrás, era apenas um “show”, uma simulação de luta, com espetaculares “tesouras-voadoras”, golpes e cambalhotas artisticamente combinadas. Não eram permitidos nem socos nem pontapés. Apenas golpes com macios e carnudos antebraços. Usar os cotovelos? Nem pensar! E havia sempre, no ringue, um “herói’ e um ‘bandido”, quando não quatro artistas, digo, lutadores, dois contra dois. Até mesmo, vez por outra, anões enfeitavam o espetáculo. Quando — conforme o combinado —, era a vez do “bandido” bater, o “herói” só apanhava, sem reagir, parecendo um “zumbi” sonolento. De repente, o “zumbi” virava uma fera e espancava o “bandido”, agarrado pela barba, em submissão humilhante, um castigo por ser tão mau.

O público, porém, acabou cansando da brincadeira que era também uma ofensa à inteligência. Alguns brasileiros da área de luta, porém, os aguerridos Gracie, arregaçaram as mangas do quimono e deram um basta na palhaçada. Um deles foi morar nos EUA, abriu academia e ali deram início às lutas de verdade. Um pioneirismo brasileiro, porque o ser humano realmente gosta de assistir uma boa briga. Eu, por exemplo, não acho a mínima graça no futebol mas quando surge uma briga no campo só mudo de canal quando o jogo prossegue. O mesmo ocorre, aliás, quando surge pancadaria entre parlamentares de qualquer país. Suponho que o nível de audiência sobe na proporção direta das “porradas” e chutes dos ilustres representantes do povo. No noticiário televisivo as cenas de pancadaria, nos parlamentos, são anunciadas no início do programa mas somente exibidas no encerramento, uma técnica para manter o telespectador ligado no canal.

O “vale-tudo real” venceu — talvez ainda venha a suplantar o futebol e o basquete no número de adeptos — porque preencheu um vazio existente desde que foram proibidas as lutas entre gladiadores na antiga Roma, em que os gladiadores realmente se matavam com armas metálicas. Com o avanço do Cristianismo as lutas entre gladiadores foram proibidas no tempo de Constantino I, no ano de 325, embora, dizem, não cessassem totalmente na clandestinidade.

Mais recentemente, passou a vigorar, no “vale- tudo”, uma arma que, embora feita de osso, também pode cortar. Refiro-me aos cotovelos. Por sinal, dizem os arqueólogos que no Neanderthal as tíbias dos esqueletos já eram usadas como porretes nas lutas tribais, porque era uma arma que combinava leveza com dureza. Umas boas “ossadas”, ou “tibiadas” no crânio do adversário provocavam uma instantânea resignação ou desmaio.

Poucos dias atrás, acessando, por outros motivos, o “Terra” , apareceu uma cena de “vale-tudo” em que boa parte da orelha de um dos atletas foi realmente “cortada”, ou melhor, decepada pelo cotovelo do adversário. Os seguidos e violentos golpes no pavilhão auricular funcionaram como uma tesoura de jardineiro e o pedaço de cartilagem saltou, apavorada, quase um metro distante do cotovelo assassino. Orelhas foram providenciadas, pela Natureza, para auxiliarem na audição. Funcionam como concha acústica. Devem, portanto, ser preservadas, jamais cortadas ou fatiadas em lutas. E o fato — agora comprovado na referida cena —, é que o cotovelo pode arrancar orelhas, pelo menos parcialmente. E não sei se podem ser costuradas de volta. De qualquer maneira, o incidente deve ser encarado como um aviso de que o uso do cotovelo deve ser banido do “vale-tudo”, pelo menos na cabeça e no pescoço. Os maiores sangramentos que aparecem nas lutas — cenas que estimulam inconscientemente a barbárie — ocorrem com os cortes provocados pelas pontas ossudas. Isso sem mencionar as cotoveladas no olho que, talvez, possam cegar. Se, eventualmente, alguém já ficou cego de um olho, por causa de cotovelada especialmente certeira, essa notícia dificilmente seria difundida, porque prejudicaria a disseminação de um esporte que cresce cada vez mais, gerando negócios até milionários.

Alguém poderá argumentar que sendo o “vale-tudo” uma arte marcial em que “tudo vale”, seria contraditório estabelecer regras que cerceiem o principal atrativo desse tipo: refletir os conflitos corporais da vida real. Quando dois homens se enfrentam de verdade, em uma briga, eles não se preocupam com regras. Querem, normalmente, apenas não chegar ao ponto de matar o adversário, porque isso traria complicações e prisão. Sendo assim — argumentaria esse hipotético argumentador —, por que não permitir o uso do cotovelo, mesmo que isso implique em mais freqüente derramamento de sangue?

Contra tal argumento cabe dizer que o “vale-tudo” já está parcialmente civilizado. Nem tudo é permitido. Pontapés nos órgãos genitais; mordidas; enfiar o dedo no olho; beliscões; impedir, com a mão, que o adversário respire; socos na nuca e joelhadas na cabeça, quando o adversário está de quatro, estão proibidos há bom tempo. Tais restrições não transformaram o “vale-tudo” em esporte de “mariquinhas”. Socos quebram narizes e pontapés altos, nocauteando o oponente, já são triviais. Essa forma de combate já é muito mais agressiva que o boxe, que nunca foi acusado de esporte de “mocinhas”, sendo considerado muito violento. A desvantagem do boxe para o “vale-tudo” está no excesso de limitação do primeiro: na proibição do uso das pernas como arma; na impossibilidade da luta se desenvolver no chão e na infinita capacidade de combinar golpes. Por causa da criatividade, da constante inovação, o “vale-tudo” é muito menos monótono que o boxe, e por isso é fácil prever que o boxe se tornará um esporte que perderá muito público para o seu concorrente principal. O “vale-tudo” é, em suma, muito mais dinâmico e “real”.

A “sede de sangue”, ou de “hiper-realismo” nos combates — presumível justificativa para os golpes de cotovelo no rosto e no crânio —, pode levar algum maluco a, futuramente, sugerir — em espaços clandestinos —, que lutadores muito necessitados de dinheiro, usem soco-inglês, ou pequenos canivetes, porque na “vida real” tais armas são utilizadas.Digo isso porque a violência pode se tornar um vício, necessitando de doses crescentes de adrenalina.

A visão diária ou quase diária de sangue na televisão, oriunda de lutas, estimula o uso da violência, quando surge algum desentendimento no trânsito ou em qualquer lugar. Com freqüência a mídia revela agressões ocorridas em casas noturnas em que algum freguês quase morre de apanhar, por discussão sobre o preço das bebidas ou porque olhou de modo especial para uma moça acompanhada.

Sei que nas boas academias de artes marciais os professores alertam constantemente os alunos para que não briguem na rua. Insistem que em vez de brigar, devem lutar, obedecendo às regras de seu esporte. O perigo da violência sanguinolenta não está, porém, no comportamento dos alunos de academia mas no fato de que tais lutas são vistas na televisão, sem aconselhamento algum por parte de professores. Jovens revoltados — desempregados ou empregados, mas ganhando muito pouco — vendo os lutadores com o rosto coberto de sangue, aplaudidos e admirados pela combatividade, podem ser estimulados para buscar na violência uma forma de serem admirados e valorizados. Um desejo justo, humano, mas concretizados em forma errada.

De 1934 a 1967 vigorou, nos EUA, um código de produção cinematográfica denominado “Código Hays” — assim chamado porque seu criador chamava-se William H. Hays, um dos líderes do Partido Republicano. Esse “código” foi concebido por iniciativa da associação de produtores cinematográficos, preocupados com a influência, que pode ser muito negativa, dos filmes na formação moral do país. Como esse “Código” acabou exagerando nas proibições — uma tendência natural de algumas censuras — acabou sendo paulatinamente desobedecido e finalmente foi substituído pela “Classificação por idade”, partir de 1967.

Descontado o exagero, o “Código Hays” tinha o seu lado bom, tanto assim que vigorou por mais de trinta anos. Entre suas proibições, figuravam as seguintes: não se autorizará a exibição de filme que possa rebaixar o nível moral dos espectadores, induzindo-o a tomar partido em favor do crime, do mal e do “pecado” (?!); a técnica do assassinato deverá ser apresentada de maneira a não suscitar imitação; não se apresentarão detalhes dos assassinatos brutais; as técnicas de roubo, de arrombamento de cofres-fortes, a dinamitação de trens, minas e edifícios não devem ser detalhadas; as feridas devem mostrar un mínimo estrito de sangue, mesmo em filmes de guerra. A lista é longa e exagerada, para os padrões modernos, mas tinha o seu lado positivo: a tentativa de livrar o público da influência do cinema na prática do mal, que ninguém pode alegar que não existe. Esse Código, em resumo, tinha a preocupação — acabou exagerando, reconheça-se — de não habituar o público à vulgaridade, ao desrespeito à leis, às religiões e aos valores da família (aconselhava a não apresentar o adultério sob um ângulo atraente). Mesmo as cenas de enforcamento e eletrecutação deveriam ser amenizadas, não insistindo nos detalhes. Cenas prolongadas de sangue, de modo geral, não eram bem vistas pelo referido Código, o mesmo acontecendo nos filmes em que os criminosos saem-se muito bem nas suas empreitadas.

Não se trata aqui de se apregoar a volta da censura, mas de demonstrar que o cinema e a televisão podem influir muito, tanto para elevar quanto para rebaixar o gosto e atitudes da população. E lutadores com nariz quebrado, boca, olho, testa e couro cabeludo sangrando bundantemente não estimulam sentimentos mais delicados, ou pelo menos civilizados. Principalmente considerando que é justamente onde o sangue escorre mais que o adversário procurará centralisar seus golpes. Só falta o árbitro consultar a platéia sobre se o derrotado deve ou não morrer, virando o polegar para baixo ou para cima.

Acredito que o prestígio de todo esporte, mostrado em um gráfico, tem uma curva sinuoso. Chegando a um ponto máximo — no item violência sangrenta —, o exagero poderá suscitar um progressivo sentimento de repulsa (que já existia, mesmo sem o uso de cotovelos), levando o público mais equilibrado a procurar distração em esportes com valores mais humanos. E há que pensar também na integridade física dos atletas.

Antes de encerrar, mais uma sugestão, que não será acatada: quando os atletas, de pé, trocam socos e um é nocauteado, seria mais justo — e coerente com a preocupação de saber quem realmente luta melhor — que o árbitro parasse a luta e contasse até dez para saber se o nocauteado está realmente fora de combate. Se o atleta consegue se levantar, em condições, antes do fim da contagem, a luta continua. Tal e qual acontece no boxe. Isso porque não é raro que o lutador menos forte ou menos técnico, na troca estabanada de socos, acabe acertando, por mera sorte, o queixo do adversário. Com essa melhoria de regras as lutas diminuiriam o fator sorte e seriam mais longas, não decepcionando o público. Afinal, as lutas procuram verificar a força e a habilidade dos lutadores, não a sorte ou azar deles quando trocam socos ou joelhadas. Essa susgestão, porém, não será jamais aceita porque pareceria “imitação do boxe”, um crime inominável na aguerrida competição entre os tipos de esporte.

Por enquanto, vou assistindo minhas lutas. Quando, porém, o líquido vermelho cobre o rosto do atleta, já exausto e meio cego, estimulando seu carrasco a aumentar o castigo localizado, sinto vontade de mudar de canal.

Tudo que é demais, enjoa. Isso aconteceu com o “Código Hays” e poderá acontecer também com a versão moderna da luta de gladiadores.

(5-3-2012)

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