sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Fibra indomável

Não é título de filme de vaqueiro...

Vez por outra talvez seja tolerável, em sites sisudos e especializados em Direito e Relações Internacionais — especialmente nas férias —, escapar um pouco à especificidade de seus temas. Principalmente quando o autor do texto retrata como alguns seres humanos, perfeitamente medianos, suplantaram, na vida real, com invulgar sangue-frio, o medo, a dor e o aleijão. Como o homem pertence a uma espécie única, imprevisível, potencialmente mais valente — quando corretamente motivada — do que “sapiens”, variando apenas no formato e cor da pele, será útil conhecer alguns exemplos de firmeza que estimulem, por emulação, nossa fibra moral quando “desgraças” e acidentes sérios nos acometem. Considerando a atual onda de “depressão”, que considero menos uma doença que um sentimento — justificável... — de impotência em enfrentar um mundo demasiadamente complexo, talvez seja estimulante verificar com reagiram algumas pessoas em situação de súbito desespero. A reação delas é uma prova das nossas reservas de força, dorminhocas mas capazes de saltar da cama, alertas e calmas, quando despertadas pelo clarim do perigo. E digo isso sem qualquer intenção de auto-ajuda, gênero literário que considero útil só para três finalidades: consolar os desconsolados, animar os desanimados e propiciar alguma recompensa financeira aos esforçados profissionais das letras. Estes, finalmente — ainda bem —, podem se livrar da quase obrigação de apelar para safadezas de todo gênero para atrair os leitores. A auto-ajuda, pelo menos tem isso de bom: é casta e olha para o alto, ou para dentro de si mesma.

Em brevíssimos relatos, citemos três casos. O primeiro ocorreu na África, tendo como vítima uma moça branca americana que ali se encontrava como babá dos filhos de um cientista, também americano, que, com sua família, residia fora da área urbana. O espírito de aventura dessa moça — cujo nome não me recordo mas que contou sua rápida odisséia na revista “Seleções” — mostra que ainda há jovens motivadas por coisas muito acima do dinheiro, sexo e conforto. A moça em questão, não sendo uma pobrezinha — pelo que me lembro — poderia limitar suas ambições ao gozo do conforto de viver em um país rico, “casando bem” ou lutando por uma carreira. Mas não, preferiu conhecer “de perto” a sofrida África negra, com todos os riscos implícitos nessa decisão.

Certo fim de tarde, referida jovem, na faixa dos vinte anos, resolveu refrescar-se, com trajes adequados, em um pequeno rio próximo a casa onde trabalhava. Fez isso na companhia das duas crianças e de um rapaz que trabalhava para o cientista. Segundo informações de moradores locais, aquele rio não oferecia risco da presença de crocodilos, ao contrário de outros cursos d’água, bem mais distantes. Confiando nessa tranqüilizadora “jurisprudência crocodiliana”, banhava-se enquanto os menores brincavam na margem.

Após alguns mergulhos, sem se distanciar muito da margem, atenta às crianças, ficou de pé, com água pela cintura. Ao torcer os cabelos longos, para livrá-lo do excesso de água, sentiu que alguma coisa roçava se cotovelo. Antes, porém, de poder examinar a origem desse toque, sentiu as mandíbulas de um enorme crocodilo fechando-se sobre seu braço. O animal tentou arrastá-la para a parte mais profunda do rio, seguindo o comportamento usual de afogar a presa antes de devorá-la. Ela resistiu a essa intenção, tentando sair da água, arrastando o agressor, enquanto, alertava o rapaz com gritos de “crocodilo!” O moço, porém, inicialmente de costas para ela, certo de que ali não havia tais répteis, pensou que se tratava de uma brincadeira e até disse, sem se voltar, que não devia brincar desse modo, assustando os menores.

Enquanto ele pensava dessa forma, o crocodilo passou a girar vigorosamente sobre o próprio eixo, como faz sempre, duas ou três vezes, de forma a arrancar o braço da presa. Esta, percebendo que não poderia impedir o violento movimento — porque se continuasse resistindo ficaria sem o membro —, deixou-se levar passivamente na rotação. Tão rápida que nas breves pausas, tonta, submersa, quando abria os olhos não sabia onde estava a superfície, que lhe permitiria respirar Só concluía que estava no fundo porque via as bolhas de ar subindo.

Com esse alvoroço o referido rapaz logo verificou o que ocorria e tentou ajudar, mas não sabia como. Tentou agarrar o rabo do réptil, com a intenção de puxá-lo para a praia, mas viu logo que não tinha forças para tanto. Tentou introduzir os polegares nos olhos da fera, mas constatou que isso seria inútil, pois equivalia — explicou depois — a tentar enfiar os dedos em um pneu de automóvel, tal a dura consistência das duas ou três pálpebras. Para concluir, o sáurio, com novo giro, acabou separando do ombro o braço que mantinha entre os dentes. A brava garota viu o inimigo afastando-se lentamente, movimentando a boca para cima, de forma a poder engolir, por inteiro, no sentido do comprimento, seu inesperado lanche americano.

A vítima foi socorrida com urgência. Aplicaram-lhe um torniquete no toco deixado pela amputação. Levada de helicóptero a um hospital, conseguiu sobreviver. Bem depois, já restabelecida, os jornalistas lhe perguntaram o que passara pela sua cabeça quando constatou o que a atacara. Respondeu prontamente: a preocupação com a segurança das crianças e a idéia de que não se conformava com a idéia de vir de tão longe para morrer na África, no estômago de um crocodilo. Lutaria até o fim. Na referida revista aparece sua foto: toda tranqüila, não me lembro se sorrindo, usando um pulôver em que se percebe o vazio de um braço. E, mais impressionante: ela prometeu voltar à África, para continuar o que vinha fazendo, dizendo-se fascinada com o conturbado e trágico continente. Não houve, obviamente, mérito algum dela — não escolheu — em ser alvo de um crocodilo propenso a conhecer as redondezas. O mérito dela está na calma em não resistir aos giros do bronco e tenaz animal, visando não perder o braço, embora, finalmente, isso tenha vindo a acontecer.

Um outro caso de heroísmo na luta pela sobrevivência ocorreu também com um americano — salvo falha de memória também na faixa dos vinte anos —, que resolveu explorar sozinho o Grande Canyon. A certo momento, aproximou-se da beira do abismo para espiar sua profundidade. Com medo de cair, agarrou-se a uma pedra enorme, arredondada, existente na beirada, mas esta, imprevisivelmente, se deslocou de tal forma que prendeu seu braço. Depois de horas, ou dias — relato o fato de memória — tentando, sem êxito, libertar o membro, constatou a necessidade da dura opção: ou, amputaria o braço, sem anestesia, usando uma faca, ou morreria de sede e fome, porque estava por demais distante da civilização. Conhecendo a região, não adiantaria gritar. Depois de muito deliberar consigo mesmo e com a dor, por dois ou três dias, já sem esperança de um golpe de sorte — o aparecimento de algum aventureiro — constatou que não poderia esperar mais. Suas forças o abandonavam. Aí optou por viver, fosse qual fosse o preço. Iniciou a grotesca operação, cirurgião improvisado de única mão.

Ele contou, depois, que cortar a própria carne foi, claro, extremamente doloroso, mas nada comparável à dor, infinitamente maior, de cortar um grande nervo que passa pelo braço. Quando a faca teve que seccionar o tal nervo, a dor que sentiu não poderia ser descrita por palavras. Seus gritos, presumo, devem ter aterrorizado até mesmo os endurecidos escorpiões do deserto. Mas ele conseguiu a façanha. Deixou o braço na junção das pedras e usou o cinto como torniquete no que sobrou, caminhando, com o resto de suas forças, até uma distante rodovia. Interessante é que, meses depois, restabelecido, disse que continuaria a praticar o seu esporte preferido.

Finalmente, relato um caso, muito mais dramático, agora ocorrido no Brasil, se bem me lembro em Goiás, relatado ao vivo pela vítima a um amigo meu que tem uma casa de ótica no interior do Estado de São Paulo. Esse amigo, um dia, estando na sua loja, foi abordado por um homem com rosto bem “esquisito”, à falta de denominação mais adequada. Esse estranho de cara torta perguntou-lhe, em voz ciciante, difícil de entender, se o estava reconhecendo. Meu amigo disse que não. Aí o visitante lhe explicou que fora seu cliente alguns anos tempo atrás. E contou o seu drama, que agora transmito ao leitor apenas apoiado no relato verbal desse amigo. Não foi possível localizar o cidadão para colher maiores detalhes, que mencionaria neste artigo, porque ele passou a morar em outro Estado, não se sabendo o endereço. E não seria o caso de eu contratar um detetive apenas para enriquecer o presente texto com minúcias.

Foi assim: dirigindo seu veículo, novo e caro, numa estrada, foi obrigado a parar, para abastecimento, ou outro motivo qualquer. Aí foi então dominado por marginais armados que, certamente, estavam de olho no seu novo e bonito veículo. Despojado de seus bens e amarrado a uma árvore, pensou que seu pesadelo logo terminaria com a partida dos bandidos, embora levando seu dinheiro e tudo o mais.

Quando estavam para deixar o local, um dos bandidos teve uma dúvida: “O que vamos fazer com esse sujeito? Ele viu nossas caras... Vai nos denunciar...” Aí um deles, certamente um assassino nato, prontamente resolveu o problema: desamarrou a vítima da árvore, obrigou-a a deitar-se no chão, amarrando-a novamente e encostou o cano de uma carabina .12 no rosto. A vítima, como é natural, se encolheu e virou o rosto para o outro lado. Nesse momento houve o disparo. De certo modo, ainda foi sorte da vítima que o tiro tenha sido dado de tão perto, porque assim não houve espaço para os chumbinhos se espalharem, o que seria morte certa.

A carga de pequenas esferas praticamente arrancou o maxilar do infeliz viajante, removeu boa parte dos dentes, estraçalhou a língua, fez um buraco no céu da boca e ainda o deixou surdo de um dos ouvidos. Não obstante, ele não morreu. Teve que fazer cerca de trinta operações — não me lembro do número mencionado. Uma particularidade trágica, mas algo cômica, era o fato de que quando a vítima bebia algum líquido boa parte dele saía pelos ouvidos Não esguichava, como nas fontes de jardim, apenas escorria. Isso perdurou enquanto o buraco do céu da boca não foi “tapado” com uma cirurgia, uma das muitas. A explicação está na anatomia da cabeça, na comunicação dos condutos que ligam nariz, boca e ouvidos. A língua, por sua vez, para ser recomposta, precisou de grande número de intervenções, mas assim mesmo sua fala ficou sibilante, dificultando o entendimento do que dizia.

Continuemos. Os meliantes foram embora, pensando que a vítima estava morta, tal o vulto do estrago feito pela carabina. Essa equívoca dedução o salvou. Algum tempo depois um caminhoneiro que por ali passou, parou o caminhão e penetrou no mato para esvaziar a bexiga. Enquanto fazia isso, notou algo estranho. Algo que gemia e se mexia um pouco. Curioso, se aproximou e viu a cena dantesca da vítima com a cabeça toda inchada, rosto arrebentado e muito sangue coagulado. Procurou outras pessoas, a polícia foi chamada e, verificados os documentos, sua família foi avisada, tomando todas as providências imagináveis.

Levada, ao que parece, de helicóptero a São Paulo, para ser operado em um hospital de grandes recursos, a vítima, na ambulância, na Av. Paulista, começou a sufocar. Sua cabeça, muito inchada, e o sangue coagulado a impediam de respirar. Sentindo que morreria sufocada, e mal conseguindo articular as palavras, passou a balbuciar algo próximo de “...tampa da Bic”..., enquanto apontava, angustiada, para uma caneta do enfermeiro, ou para-médico, que ela via no bolsinho do avental. Ela fazia assim porque sabia que se não fizesse logo uma traqueotomia sua morte seria certa, pois o hospital ainda estava distante. E assim foi feito: o enfermeiro usou a tampa da Bic para fazer um furo logo abaixo do pomo de Adão. Pelo que sei, sem anestesia. E o cidadão pôde respirar.

Para mim, esse cidadão é um herói anônimo. Não sei se eu teria coragem de, mesmo sufocando, pedir esse uso improvisado e doloroso de uma tampa de caneta esferográfica sendo enfiada em minha traquéia. E sua fibra moral também se revelou na forma como, após dezenas de cirurgias, encarava o mundo. Contou, na loja de ótica, que já estava tão bom que domava cavalos bravos, provavelmente por esporte. Estava muito feliz no casamento porque sua fiel esposa não se importara com a forte mudança de sua aparência, após tantas cirurgias. Suportou com galhardia a desanimadora rotina de dezenas de operações e, como se diz, “deu a volta por cima”.

Esse cidadão deveria ser procurado pelo Fernando Morais, nosso grande biógrafo. Sua odisséia — não buscada mas galhardamente suportada —, mereceria um pequeno livro. Pelo menos como exemplo de paciência, insistência no viver e otimismo. Pelo que sei não se tornou um homem triste, amargo. Ele comprovou que fibra e alegria podem caminhar juntas.

(16-7-08)

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