domingo, 20 de novembro de 2011

Compaixão - I

A compaixão é um “tempero” imprescindível nas políticas governamentais, na justiça, no trabalho, nas profissões, nos casamentos e até nas relações internacionais. Na verdade, em tudo. Sem esse tempero propenso ao perdão — os insensíveis o chamarão de ingênuo —, bondoso, sentimental, os mais racionais e rígidos esquemas de eficiência podem transformar-se em uma “úlcera” moral chamada arrependimento. A dureza excessiva de um pai, ou patrão, por exemplo, pode levar um filho ou empregado ao suicídio. Não esquecer, porém, que essa virtude é apenas um “molho”, não propriamente um alimento. Na falha da distinção é que mora o perigo. Pessoas ricas, principalmente quando idosas, excessivamente liberais em ajudar o próximo, passam a ser encaradas — por necessitados e aproveitadores, ou a mescla de ambos — como lojas momentaneamente abandonadas em noite de rebeliões e saques generalizados.
Não existe virtude — embora “simplória”, qualquer um pode tê-la — mais atraente e imprescindível à boa convivência humana do que essa: sentir, como própria, a dor alheia — física ou moral.

Disse “atraente’ porque, por definição, é sincera, infalsificável, autêntica. Não o sendo já não merecerá esse nome. Será qualquer coisa, mas não compaixão. Estaremos mudando de assunto. É como a moeda, no campo da Economia. Moedeiros falsos não fabricam moeda, propriamente; imprimem notas de papel com aparência de moeda, mas moeda aquilo não é.

O mesmo ocorre com a compaixão. Só existe se autêntica, realmente sentida. Se não experimentada no íntimo será algo bem diferente: um simulacro, teatrinho, contrafação, como pode ocorrer, por exemplo, com uma virtude exteriormente assemelhada e com ela por vezes confundida: a caridade financeira, praticada por exibicionismo.

O grande problema da compaixão é que, ao contrário do que ocorre com a moeda falsa, por exemplo — que pode ser desmascarada por um laudo pericial —, a compaixão permanece como fenômeno essencialmente subjetivo, refratário a uma prova irrefutável. “Como provar — em juízo, por exemplo — que realmente senti pena daquela pessoa ou animal?” Só quem a sentiu pode constatar sua existência, porque experimentou — não “na pele”, mas no íntimo —, a angustiosa e misteriosa “sensação dolorosa”. É, no entanto, como disse, uma prova limitada, vale somente para quem dela não precisa. Ninguém mais é obrigado a acreditar porque as palavras (mais) e os olhos (menos) podem mentir. Até as lágrimas mentem, dispensando o truque da cebola, talento raro. Homens traídos, ou malévolos, dizem que não se pode confiar em choro de mulher. Garantem que não basta presenciar a careta, é preciso constatar a lágrima; talvez até colhendo uma amostra para exame de laboratório. Faltando sal, é água.

Conheci um corretor de seguros — um desperdício, ele deveria estar em Hollywood — que conseguia “chorar” — na verdade derramar lágrimas — bastando se concentrar um pouco. Provavelmente evocava uma cena. Lágrimas realmente desciam pelo rosto do malandro. Apenas os psiquiatras, esses detetives da alma, é que — talvez, talvez... — possam arriscar a certeza de uma contrafação inconsciente da compaixão porque o homem consegue o prodígio de enganar a si mesmo. Não contente de enganar o “mundo de fora”, engana o “mundo de dentro”. Esse fenômeno “lacrimal”, sutilíssimo, deve ocorrer raramente. Talvez mais em mulher do que em homem. E se ocorrer, estaremos, de novo, desviando do assunto, porque compaixão não houve, e sim teatrinho amador.

A compaixão é como a sinceridade: ou existe ou não existe. Sua presença real só admite prova indiciária, com o estudo minucioso da vida de uma pessoa e da maneira com que reagiu — longe da mídia, claro... — perante o sofrimento alheio. Principalmente enfiando a mão no bolso — o próprio, frise-se. Um detector de mentiras pode ter alguma utilidade porque quando o investigado mente sua pressão arterial e seu batimento cardíaco sofrem alteração. Se, porém, o investigado é um tremendo mau-caráter, com longo treino na enganação, talvez seu organismo moral, exausto, já não reaja: uma gota a mais de mentira, na piscina olímpica da falsidade, não fará diferença.

Falei, pouco atrás, em virtude parecida: a caridade. Esta pode resultar da compaixão, mas pode também resultar do exibicionismo, da timidez ou do cálculo para dedução do imposto de renda. A causa do exibicionismo e do cálculo anti-tributário dispensa explicação. A timidez resulta do acanhamento, do medo de parecer sovina ou pobre — “esse cara é tão pobre que só pôde dar uma esmola ou contribuição mínima!”. Algumas denominações religiosas usam esse truque para sacar contribuições mais generosas dos fiéis.

Finalmente, para terminar essa cansativa introdução — a exigir alguma compaixão com o leitor —, cabe alertar contra a moderna mania da sofisticação excessiva no analisar sentimentos ancestrais e bem familiares. Lendo alguns trechos do atual Dalai Lama, notei que ele faz questão de frisar que compaixão não se confunde com “sentir pena”, ou “dó”, porque este sentimento pressupõe uma “superioridade” do compassivo em relação ao sofredor. Sentir “pena” ou “dó” seria, pelo visto, “politicamente incorreto”, porque implicaria em alguma “humilhação” do sofredor.

Um exagero de originalidade, convenhamos! — com o devido respeito ao líder budista, excessivamente preocupado em não melindrar quem precisa de socorro. Por que alguém sentiria compaixão por um homem rico, jovem, bem-amado, inteligente, feliz, poderoso, sadio e sem problema na família? Qualquer sentimento nosso com relação a esse diamante de duas pernas será tudo, menos compaixão. Devemos ser justo e não invejosos em relação a ele, mas compaixão mesmo não há porque sentir. Não há “compaixão” desacompanhada da elementar “dó”. Por definição, na compaixão “(com)partilhamos” a dor alheia, física ou moral. Se não há “dor” alguma no outro, compartilharíamos o que? O vácuo? Não haveria um objeto a ser dividido. Procure-se outro termo para designar o que sentimos pelo felizardo. Admiração, alegria pelo sucesso dele, ausência de inveja, etc, mas não compaixão.

O grande problema dessa virtude é que trata-se de um sentimento inato, incontrolável. Não a tem quem quer. Por vezes têm-na quem não a quer, porque freqüentemente é um fardo, no mundo materialista em que vivemos. “Chiclete” moral incômodo, difícil de desgrudar da alma. Rarissimamente traz alguma recompensa (Prêmio Nobel da Paz) a seu portador. Pelo contrário. É de sua natureza causar prejuízos. Avalistas e fiadores — quando assinaram o título por mera solidariedade —, sabem a que me refiro. Beneficiário da compaixão é sempre “o outro”, nem sempre eternamente agradecido. Grato, claro, no momento do auxílio, mas talvez rancoroso, com o passar do tempo, porque o incomoda a “humilhação” de dever favores. Há quem se vingue de um favor. O sentimento da compaixão é como o raio: cai onde bem entende, antes mesmo da vítima nascer. Sua vítima “virtuosa” — virtude involuntária... — sofrerá mais que os outros, os insensíveis. Sua carga será maior. Talvez, daqui a um século, os neurologistas, de mãos dadas com os geneticistas, poderão graduar, nos fetos, os genes relacionados com a compaixão. Aumentando a dosagem nos egoístas natos e eliminando o excesso genético nos obesos da bondade.

Fosse a compaixão bem mais generalizada e não teríamos, há séculos, guerras movidas pela cobiça, orgulho e prepotência (a vasta maioria delas). Nem mesmo as guerras “lícitas”, em defesa, teriam ocorrido, porque sem agressões anteriores não havia necessidade de guerra defensiva. Imaginando, “sentindo” o sofrimento alheio — dos próprios súditos e dos povos vizinhos —, reis e outros governantes, evitariam os abusos tradicionais, astutamente “justificados” por versões de patriotismo.

Sem as pesadas e injustas cargas impostas ao povo alemão, no Tratado de Versalhes, não teria havido o clima rancoroso nutriente do crescimento de um Hitler. Se este fosse bem dotado de compaixão não teria agido como agiu, indiferente à dor de milhões de não-alemães e alemães judeus. A bondade natural — irmã gêmea da compaixão — seria um freio. Ele teria sido, provavelmente, um grande homem porque sabia como impressionar e moldar a opinião pública. Não teria ocorrido o “Holocausto”, que acabou provocando, pela imigração excessiva, décadas depois, o conflito de árabes com judeus, carga de sofrimentos que se arrasta por décadas e não terminará enquanto a ONU não der um passo adiante, ampliando a competência e eficácia da Corte Internacional de Justiça. Somente uma decisão — não das partes, mas “de fora”, da referida Corte, ou de outra criada pela ONU — é que resolverá de vez, com aplicação da equidade — essa “compaixão judicial” — a delicada questão que tanto estimula o terrorismo internacional.

O mesmo se diga de Lenine e Stálin. Lenine era altamente inteligente e idealista, mas refratário ao “vulgar sentimento burguês” da compaixão. Via as coisas de um modo gelado, estritamente político. Se convinha à Revolução assassinar o Czar Nicolau II, sua esposa, acompanhantes e crianças, por que hesitar — assim pensava — se, com isso, dificultava o retorno da monarquia e enfraquecia a resistência dos “brancos” contra-revolucionários, adeptos do Czar? Esse massacre familiar não enriqueceu sua biografia. Stálin, também por “idealismo” revolucionário, mas impiedoso, vencia a resistência natural dos agricultores —que se recusavam a entregar suas colheitas —, enviando-os à Sibéria, onde morriam, aos milhões, de frio e subnutrição.

Alguém dirá que é ingenuidade pensar que com bons modos e compaixão será possível grandes transformações políticas, pois estas implicam em necessário sofrimento. Dirá que os ditadores referidos não se tornariam os grandes vultos históricos conhecidos se não tivessem dispensado a vulgar, caseira sensibilidade ante o sofrimento alheio. A este hipotético objetor caberia dizer que os “grandes homens” referidos venceram no curto prazo, mas perderam no longo. Se ainda vivos, seriam hoje considerados criminosos. A Alemanha terminou em ruínas e só se tornou o segundo país mais rico do mundo — algumas décadas após a guerra —, em razão do vigor de seu povo. Quanto ao socialismo “linha dura”, desmoronou por ser um regime em desacordo com a natureza humana. O socialismo “linha mole”, democrático, como adotado pela Escandinávia, é o regime do futuro. Compatibiliza a humana sede de lucros com a solidariedade, que também é humana mas menos difundida nas almas.

Como este artigo já se tornou longo demais, deixo para o próximo a agradável tarefa de relacionar a compaixão com a justiça, as profissões e os casamentos. Nestes, ressalvo, a tarefa não será tão agradável porque ninguém quer ser objeto de “pena”, mesmo a merecendo. Vespeiro à vista. Abordarei ainda o problema do perigo da compaixão sem critério, estimuladora de eventual parasitismo.

( 6-12-2007 )

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