quarta-feira, 3 de março de 2010

''Bolões" lotéricos e outros azares

"Bolões” lotéricos e outros azares

Poucos não souberam, no Brasil, o que aconteceu em uma casa lotérica na cidade de Novo Hamburgo-RS, no dia 20-2-10. O prêmio máximo da Mega-Sena era de 53 milhões de reais. Os quarenta “felizes” sorteados no “bolão” — organizado, particularmente, pela casa lotérica, sem responsabilidade da Caixa Econômica Federal — passaram, em poucas horas, da imensa euforia à “cava depressão”, como diria Nelson Rodrigues, ao saber que tais apostas não tinham sido registradas na entidade oficial. Em suma, como não houve aposta, os “azarados-felizardos” não têm direito a um só centavo, restando-lhes apenas processar civilmente a casa lotérica, ou pedir ao Ministério Público que processe criminalmente, por estelionato, as pessoas da lotérica, se constatada a má-fé.

Obviamente, não é consolo, para os frustrados apostadores, o mero “direito” de processar civilmente a casa lotérica. A demanda será longa, com longo arsenal de recursos disponíveis para ambas as partes e se, finalmente, como é provável, for reconhecida a responsabilidade cível da casa lotérica (o patrão responde pelos prejuízos causados pelo empregado) o dono da empresa certamente não terá um patrimônio em condições de indenizar os prejudicados.

Pelo vídeo da câmara de segurança existente na loja, com imagem transmitida nos canais de televisão, a impressão que se tem é de que houve apenas uma falha humana. A funcionária esqueceu de registrar a aposta dos referidos “bolões”. No entanto, a polícia, até mesmo por dever de ofício, não pretende se contentar com a filmagem porque, em tese — apenas em tese —, infratores costumam ser muito habilidosos em se defender. E quanto maior o valor econômico em jogo, maior o talento dramático para encobrir faltas. Mas, no caso em exame, como já disse, os discretos — e por isso mesmo convincentes — gestos da funcionária ao perceber a própria falha, não me parecem uma representação teatral. Tudo indica que houve mesmo um esquecimento. E falhas humanas ocorrem em todas as atividades, sem exceção.

Como o prêmio não saiu para ninguém, muito menos para a casa lotérica, o interesse da polícia é saber se a loja era useira e vezeira em recolher o dinheiro dos apostadores (em “bolões”), deixando de registrar tais apostas, confiante na raridade de se ganhar o primeiro prêmio na Mega-Sena. Não é impossível que algumas casas lotéricas, vez por outra, em situação de aperto financeiro do dono, deixem de registrar tais apostas, arriscando na quase certeza de que os apostadores do “bolão” não vão ganhar o prêmio máximo.

Lê-se, na mídia, que os revoltados “ganhadores” estudam processar a Caixa Econômica Federal porque ela, sabedora dessa prática, muito comum, nada fez para proibi-la. De um ponto de vista legal, essa pretensão não teria a menor possibilidade de êxito na justiça, se aplicada sem demagogia. Se os clientes das casas lotéricas nelas confiam, a Caixa não pode impedir essa confiança, assim como não pode impedir que apostadores particulares combinem fazer “bolões” particulares, entre amigos e parentes, prática também usual. Se o portador, particular, do comprovante da aposta eventualmente recebe o dinheiro e desaparece, lesando os amigos, a Caixa não tem nada com isso. É um caso de polícia, mas sem responsabilidade da instituição financeira oficial.

O mesmo ocorre com os “bolões” das casas lotéricas. E, no caso concreto do Rio Grande do Sul, já ouvi, na televisão, alguns apostadores habituais, ainda não lesados, afirmando que é gosto e direito deles jogar em “bolões”, tendo em vista a maior chance de “ganhar alguma coisa”. São contrários à proibição dessa prática. No entanto, é elogiável a preocupação da Caixa no sentido de desestimular esse “jeitinho” brasileiro do apostador “ganhar pelo menos uma fatia”. Desconheço se já ocorreu, no Brasil, a hipótese do dono da casa lotérica fugir do país, com o prêmio máximo de uma Mega-Sena, obtido via “bolão”. Isso, no entanto, não é impossível de ocorrer, tendo em vista a força magnética do dinheiro, capaz de causar curtos-circuitos na sistema elétrico cerebral, travando qualquer conselho do super-ego, no caso muito mais ego do que super.

Tempos atrás, a imprensa relatou — poucos leram isso — o que ocorreu nos bastidores do “jogo do bicho”. Uma determinada mulher começou a ganhar, com freqüência impressionante, o primeiro prêmio, religiosamente pago, como é usual nesse tipo de jogo que subsiste apenas baseado na confiança. A “cúpula” da contravenção, desconfiada da milagrosa felicidade no jogo, encarregou alguém de investigar a vida da “sortuda”. Descobriu que era amante de um “executivo” da contravenção, justamente o cidadão responsável pelo sorteio das apostas. Aprofundando as investigações — talvez usando métodos persuasivos não previstos em lei — foi descoberto o segredo de tanta “coincidência”: determinadas bolinhas numeradas eram colocadas no refrigerador e, depois de bem geladas, colocadas, disfarçadamente, em um saco escuro, misturadas com as outras bolinhas de temperatura ambiente. A pessoa, cúmplice no esquema, encarregada de “pescar”, “ao acaso”, o número vencedor, selecionava, pelo tato, as peças geladas que comporiam o cobiçado prêmio. Isso explicava a “sorte imensa” daquela mulher, amante do “espertinho” que vinha lesando seus companheiros de contravenção. Houve uma “convenção” dos “cardiais” para decidir a sorte do “malandro” e o veredicto foi de pena de morte, com utilização de um pistoleiro. Como, entretanto, o “réu” era parente de um dos membros da cúpula, esse parente cobriu o prejuízo. A pena de morte foi transformada em “degredo”, isto é, em expulsão da atividade, com devolução do que ainda estava em seu poder.

Essa notícia puxa outra lembrança; no caso, mera suspeita, mas que mereceria ser investigada, pela verossimilhança dos argumentos e probabilidade estatística de uma fraude capaz de derrubar governos, se constatada sua realidade.

Alguns poucos anos atrás, no jornal “O Estado de S. Paulo”, um leitor, engenheiro, A. F. Guimarães (talvez ele prefira não ver mencionado seu nome por inteiro), na seção de cartas, externou sua suspeita quanto à lisura no sorteio dos prêmios da Mega-Sena. Informou que o prêmio se acumulava e depois saía com, invulgar freqüência, para apostadores situados em perdidos rincões no nordeste e norte do país, afrontando todas as leis da probabilidade. Salientou que era raríssimo o prêmio sair para São Paulo e Rio, como seria o mais provável, considerando que nestas cidades é enorme a quantidade de apostas. Lendo e pensando no que ele dissera, até escrevi, na época, um artigo, que pouquíssimos leram, sugerindo que o assunto fosse examinado pela polícia e Ministério Público. Não sei se os argumentos do referido engenheiro estão corretos porque jamais me interessei por saber quais as cidades beneficiadas pela grande sorte.

Penso que, aproveitando a repercussão do caso do “bolão”, seria oportuno que a Polícia Federal, hoje mais auto-confiante, prestigiada e bem remunerada, examinasse o assunto da eventual fraude na Mega Sena, de alguns anos para cá. Até mesmo para tranqüilizar aqueles que nela apostam mas sem total certeza de que não está sendo iludidos, juntamente com milhões de brasileiros. Com alguns bons matemáticos, conhecedores do cálculo de probabilidades, seriam examinados os resultados dos últimos dois ou três anos de premiação. Se constatada a estranhável preferência da sorte, beneficiando exageradamente pequenas cidades, essa bofetada na lógica dos números aconselharia a investigação do percurso do dinheiro posto nas mãos dos ganhadores, talvez meros “laranjas”.

Voltando ao assunto da funcionária que esqueceu de registrar as apostas no “bolão”, cito um precedente assemelhado que ocorreu quando existia apenas a Loteria Esportiva. Quem me contou foi o advogado do apreensivo dono de uma casa lotérica situada no ABC paulista. Naquela época, as apostas na Loteria Esportiva só podiam ser feitas na Capital do Estado. Apostadores do interior, faziam suas previsões de resultado e as entregavam, em confiança, às casas lotéricas de suas cidades. Os donos de tais estabelecimentos deveriam encaminhar os palpites e registrá-los na Caixa, em São Paulo, até, no máximo, as sextas-feiras. Ocorre que, passado o prazo, o dono da lotérica, ao abrir uma gaveta, que supunha vazia, verificou que a mesma estava repleta de apostas. Falha de um funcionário. O que fazer? Apavorado, procurou o advogado. Este lhe explicou que a melhor solução seria levar à Delegacia de Polícia, imediatamente, antes dos jogos, as apostas e o dinheiro correspondente, comprovando que não houvera má-fé. Com isso, livrava o cliente de qualquer acusação criminal. “E quanto à parte cível” — perguntou o cliente —, “a indenização que terei de pagar aos apostadores, caso tenham acertado?”. A resposta foi, aproximadamente, a de que só lhe restaria rezar bastante para escapar da imensa indenização. E, de fato, nenhum dos apostadores acertou.

Pensei, à época, em escrever um conto que mereceria o título de “Guerra de Rezas”. De um lado, o dono da lotérica, ajoelhado, aflito, olhando para um céu imaginário e pedindo fervorosamente que todos os apostadores esquecidos na gaveta não acertassem nos resultados. De outro lado seria fácil imaginar vários apostadores rezando em sentido contrário

Certamente o incidente contribuiu muito para fortalecer a fé do dono da lotérica. Sem diminuição da fé dos esquecidos na gaveta, que sabem que jogo é jogo e Deus não chuta seus desígnios.

(27-2-10)

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