terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sigilo de investigações e direito de informar

Um tema hoje hiper-dimensionado é a questão da censura “tópica” — imposta a um prestigiado jornal paulista, “O Estado de S. Paulo” — por um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Não se trata, frise-se, daquela usual “censura política”, em seu sentido mais abrangente, como ocorre em regimes ditatoriais, em que os opositores, em geral, do governo são silenciados à força.

A nossa imprensa goza, hoje, de ampla liberdade. Pode-se dizer, sem erro, que a liberdade de informação não está sendo reprimida por qualquer dos Três Poderes. Nem mesmo pelo Judiciário, pois este ainda não se pronunciou finalmente sobre o caso específico envolvendo o filho do presidente do Senado. A censura em questão é bem demarcada, ordenada por um único magistrado, em caráter liminar, sem ouvir a parte contrária, não se sabendo se sua decisão cautelar será ou não referendada pelos demais juízes que julgarão o caso. Não se pode dizer, insista-se, que é uma “decisão” coletiva do Poder Judiciário. É decisão de uma única cabeça. E o Judiciário brasileiro é composto de bem mais de 12.000 magistrados. Essa investigação tem como ponto saliente escutas telefônicas autorizadas pela justiça. Não há, portanto, “data vênia”, porque o jornal pedir solidariedade a entidades internacionais, como se estivesse sendo vítima do Poder Executivo, em época de ditadura. Mesmo que o Presidente da República quisesse interferir no caso, a favor do jornal, não poderia fazê-lo, tendo em vista a clássica separação dos três poderes. Por sinal, ele já pediu pressa na investigação, sendo censurado na imprensa por isso.

Do que se trata, afinal?

Tudo começou quando a Polícia Federal passou a investigar os negócios do filho do Presidente do Senado. Para obter provas, a PF pediu a um juiz, ou juíza, autorização para a escuta telefônica, o que foi concedido. Como filhos e pais costumam se comunicar por telefone, as gravações evoluíram para outros temas que, difundidos, abalariam a reputação política da família Sarney. Do tema central — os negócios de Fernando Sarney —, a escuta evoluiu para o nepotismo e nomeações secretas no Senado Federal. Obviamente, em escutas telefônicas não é possível segmentar as falas, cancelando o que foge do objeto inicial da investigação. O que foi gravado, se configura alguma quebra de norma legal, “fica”; não há como “apagar”. E o “grampo”, no caso, não é ilegal porque permitido por uma autoridade judiciária, como admite a Constituição Federal.

Ocorre que essa prova — as gravações — deveriam ser mantidas em sigilo, conforme manda o art.20 do Código de Processo Penal. Seriam sigilosas, embora provisoriamente, até serem apresentadas em um futuro processo criminal, normalmente público. E poderia, em tese, não haver processo criminal, se o Ministério Público entendesse não haver crime algum, pedindo o arquivamento do inquérito. Esse sigilo, no entanto, foi quebrado, “vazou”, como se costuma dizer, indo para a imprensa. No caso, o jornal censurado que, percebendo a relevância de tais fatos, ou por motivos também políticos, resolveu intensificar — merecida ou imerecidamente — a campanha contra o Presidente do Senado.

Quem “vazou”, não se sabe com certeza. Inúmeras pessoas têm contato com as fitas de gravações: policiais, técnicos, advogados, promotores. O certo é que o que era para ser um “segredo”, pelo menos provisório, para conhecimento de poucas autoridades, acabou se tornando um “segredo de Polichinelo” reverberando em jornais, televisão, internet, etc, chegando ao conhecimento de milhões de pessoas.

Um dos prejudicados com tal vazamento, o filho do presidente do Senado, pediu a um desembargador do Distrito Federal, Dácio Vieira, que proibisse ao jornal que liderava a campanha para que não publicasse notícias sobre aquela específica investigação. Invocou o direito ao sigilo, conforme a lei processual, obtendo liminar. Contra esta o jornal impetrou mandado de segurança, no mesmo Tribunal, pedindo que a específica censura fosse revogada liminarmente. O Des. Waldir Leôncio Cordeiro Lopes Júnior, a quem foi distribuído o mandado de segurança, achou prudente — antes de conceder, ou não, a liminar — ouvir o já referido Des. Dácio Vieira, autor da liminar de censura, bem como o Ministério Público. Uma providência usual e legal porque quando o Des. Dácio Vieira concedeu liminarmente a censura, não havia sequer espaço físico (no papel da petição) para fundamentar longamente sua decisão liminar de censura. Certamente, o Des. Dácio Vieira teria suas razões — pelo menos teóricas, jurídicas — para proibir, liminarmente, as reportagens do jornal. Certamente enfatizaria que tais investigações devem ser sigilosas Não há, portanto, o que censurar no prudente despacho do desembargador Waldir L. C. Lopes Júnior que levantará, ou não, a censura provisória ao referido jornal. Em suma, o mandado de segurança contra o despacho liminar do Des. Dácio Vieira não foi ainda julgado. Não há, ainda, nem mesmo uma decisão monocrática nesse mandado de segurança. Os prazos estão correndo normalmente, sem demora artificial visando beneficiar a família Sarney.

É natural que o jornal afetado pela decisão — o jornalismo é uma atividade tremendamente dinâmica — se revolte contra a demora, de muitos dias, para continuar com seu dever e interesse de informar. Há, porém, que concordar que certos assuntos não podem ser resolvidos com sofreguidão. O jornal não ficará fechado enquanto isso. Há dezenas e centenas de assuntos de grande relevância que estão sendo discutidos pela imprensa. Um fato inegável é que o sigilo das investigações criminais deve, por lei e pedido da parte, ser preservado e essa regra foi violada. Do contrário, baixe-se um lei abolindo o segredo das investigações e escutas telefônicas, permitindo-se que toda e qualquer investigação policial possa ir imediatamente para as manchetes.

No auge da operação Satiagraha, prestigiosas vozes do mundo jurídico mostravam-se indignadas contra a ausência de privacidade, excesso de “grampos” e difusão, na imprensa, de notícias que destruíam a reputação de qualquer figura de relevo do mundo econômico e social. Exigia-se, em nome da “cidadania” e “Estado de Direito”, moderação em tais notícias e, principalmente, respeito ao sigilo nas investigações. Agora, considerado o prestígio de um influente jornal, alega-se que o interesse público da informação deve ser absoluto, prevalecendo sobre o direito ao sigilo. Vasta mudança de opinião. A lei deve ser igual para todos?

Por que o art.20 do Código Processual Penal “inventou” essa história de sigilo do inquérito policial? O sigilo é um mero capricho do legislador? Não é. Protege tanto o interesse da sociedade quanto o interesse dos indivíduos. Da sociedade, porque se os criminosos souberem quais os futuros passos da polícia, é obvio que farão desaparecer as provas, ou criação evidências falsas. Intimidarão ou eliminarão testemunhas, etc. O sigilo também protege o interesse dos indivíduos porque a notícia de crimes pode ser, em tese — em tese —, falsa. Espalhada nos jornais e televisão, destruirá a reputação de qualquer pessoa. Se o dono de um jornal for acusado, erroneamente, de um crime grave, de prova complexa e demorada, e a notícia for difundida pela imprensa rival, certamente procurará os tribunais pedindo o que Fernando Sarney pediu.

O sigilo dos inquéritos policiais visa proteger a honra das pessoas contra acusações levianas. Não interessa, aqui, saber se, no caso, as acusações são ou não levianas. É questão abstrata, de direito. Pessoas podem ser vítimas de denunciações caluniosas. Na política esse perigo é constante. Recebida a notícia — de aparente verossimilhança e acompanhada de alguma “prova” — a autoridade policial é obrigada a investigar, sob pena de prevaricação. Se tais investigações, afetando pessoas de certa importância, chegam ao conhecimento da imprensa e esta difunde amplamente a notícia, mesmo que, depois de alguns meses de investigação, se chegue à conclusão de que o “suspeito” é inocente, o dano moral ocorreu.

Dias atrás, um ilustre jurista, entrevistado, argumentou que, quebrado, de fato, ilegalmente, o sigilo da escuta telefônica, os jornais estariam plenamente autorizados a difundir os dados na investigação. Os fatos já estariam automaticamente no domínio público.É como se dissesse: “Se houve violação da norma do sigilo, paciência. Águas passadas. Se o que era para ser segredo, de conhecimento de umas poucas autoridades, deixou de sê-lo e foi parar na imprensa, esta pode usar à-vontade tais informações obtidas sigilosamente”.

Essa interpretação não nos parece a mais correta. Uma coisa é cinco ou dez pessoas — juiz, técnico da polícia, delegado, promotor, etc. — ouvirem as gravações. Outra, levar a centenas de milhares de leitores de jornais o conteúdo de algo que, pela legislação em vigor, deveria ser secreto. Há uma enorme diferença. Quanto menos difusão, melhor para o interessado em manter o sigilo. A “mens legis”, a intenção da lei, estaria sendo desvirtuada caso se desse carta branca para a mídia difundir gravações obtidas sob sigilo violado. Dez reportagens sobre o mesmo assunto causam mais danos que uma ou duas reportagens.

Estou, por acaso, defendendo, aqui, a família Sarney? Não. Nunca votei no Sen. José Sarney. Nem poderia, porque sou eleitor de São Paulo. Não sei se o Maranhão estaria, ou não, melhor caso ele nunca tivesse sido político. Poucos anos atrás a mídia dizia que Sarney estava pensando em deixar a política para dedicar-se inteiramente à literatura. É o que deveria ter feito. Seria uma atividade compatível com seu temperamento sereno. Deve estar hoje arrependido. Teria tido uma velhice tranquila. É preciso saber quando sair de campo. Líderes velhos não têm o mesmo vigor de líderes novos. Os inúmeros e inegáveis casos de nepotismo, atuantes em todas as administrações — públicas e particulares, mas estas sem restrição legal —, quando viessem à tona, afetariam dezenas de parlamentares, sem foco especial em Sarney. Seria um “mal do sistema” que precisa ser corrigido. Nas democracias, os cabos eleitorais que realmente se esforçam para a eleição de seus candidatos, raramente fazem isso por idealismo. Querem algo em troca, uma nomeação, se conseguirem eleger seus “chefes”. Parentes, também, chegam em ondas pretendendo empregos. As próprias esposas dos eleitos têm familiares ou amigas íntimas que precisam, “urgente”, de um emprego público, porque estão numa “situação familiar dramática”. Se o eleito recusa essa “ajuda familiar” é considerado um “ingrato” que, depois de eleito, “vira as costas’ até a seus familiares. “Se outros polítricos fazem isso, porque não ajudar os parentes?”

É altamente meritória a campanha do “Estado de S. Paulo”, pretendendo acabar, ou reduzir ao máximo, essa política atrasada de transformar casas legislativas e poder executivo em cabides de emprego, para isso até fazendo nomeações secretas. De modo geral, aprovo a orientação do atual governo federal de ajudar os pobres e combater a depressão com estímulos à atividade econômica, mas reconheço uma enorme falha: o esquecimento da aplicação do princípio constitucional de que os cargos públicos devem ser preenchidos por concurso. O que interessa, hoje, é ter um “padrinho”, um “pistolão”. Um dia Lula, presumo, vai se arrepender dessa má-política, totalmente injusta para aqueles que querem ingressar no serviço público por mérito próprio. Mas isso é outro assunto.

Nomeações secretas no Senado, e em outros órgãos, precisam acabar e o jornal “O Estado de S. Paulo” tem muito mérito “pessoal” nisso, mas a quase paralisação do Congresso, por causa dessa discussão — no fundo “menor” —, acaba prejudicando o país, porque questões mais importantes ficam paralisadas, aguardam decisões. Quando, em um grande organismo, o sistema todo está “viciado” por más longas práticas, como é o caso do Senado, a melhor solução é “fazer uma faxina na estrebaria”, sem muita preocupação em mencionar nomes, começando-se uma nova era. Acredito, por exemplo, que quando o senador pelo Amazonas, Arthur Virgílio, decidiu usar dinheiro do Senado para pagar o estudo de um rapaz que queria fazer um importante curso no exterior, agiu com a mais nobre das intenções: a de possibilitar a um jovem, talentoso mas sem recurso, adquirir conhecimentos usualmente só acessíveis aos filhos da elite. Tenho a convicção que sua intenção foi nobre. Para mim, seu prestígio não ficou nem um pouco diminuído.

Quanto ao Des. Dácio Vieira, mesmo que ele se considere — com toda a sinceridade e verdade —, isento para julgar o caso envolvendo a família Sarney, a mera prudência deveria levá-lo a se dar por suspeito, saindo do caso. Não porque, no íntimo, se sinta como suspeito, mas porque as decisões judiciais devem ser encaradas, pelos jurisdicionados, como presumivelmente isentas. O que não é o caso. Não pelo fato, mínimo, de ter comparecido a determinado casamento, mas porque sua nomeação para o cargo de desembargador teve o apoio da família Sarney. Parodiando o velho adágio, não basta ser imparcial, é preciso assim parecer. Se ele não se der por impedido, que o Tribunal a que pertence assim o considere. Mera prudência e satisfação à opinião pública.

Espero que o jornal “O Estado de S. Paulo” não fique aborrecido comigo, pelo meu posicionamento irrelevante. Sou seu assinante, há vários anos, porque o considero de primeira linha na área internacional e por manter articulista de grande envergadura. É um jornal modelo. Só que não acho que esteja sendo “vítima da censura”, como vem insistindo. Se vítima for, será do próprio ímpeto com que busca a verdade, às vezes exagerando um pouco.

(8-9-09)

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