segunda-feira, 11 de maio de 2009

O poder da mídia

Recebi, ontem, um “newsletter” (boletim informativo) do site “Praça Virtual” dizendo que no dia 6 de maio, uma quarta-feira, à noite, cerca de 300 pessoas haviam se reunido em frente do Supremo Tribunal federal exigindo, aos gritos, inclusive com auto- falante, o impeachment do Min. Gilmar Mendes, presidente do STF e do CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Este, relembre-se, é o órgão encarregado de fiscalizar o Poder Judiciário, o que inclui, obviamente, a fiscalização do próprio ministro fiscalizador. Por outras palavras, existe, no caso específico de qualquer presidente do STF — seja ele quem for —, uma auto-fiscalização, só evitável quando o possível investigado se afastar, voluntariamente ou não, da sua função de presidente do CNJ. Algo difícil de ocorrer porque o instinto de defesa é inerente a todo ser vivo.

O “newsletter” veio acompanhado de filme demonstrando a presença inegável de uma multidão. Apenas assistindo o filme torna-se impossível fazer uma avaliação mais correta do número de pessoas participantes porque o operador, obviamente amador, filmava dentro da multidão, gritando contra o atual presidente do STF e elogiando o Min. Joaquim Barbosa. Diz, o mesmo boletim, que foram acesas 10.000 velas no local. Com ou sem exageros, justa ou injusta o manifestação, o fato é que ocorreu um protesto, inusitado em seu volume e finalidade.

As queixas, veementes, giravam em torno do temperamento dominador do magistrado visado; do seu gosto pela presença da mídia; da sua atuação mais para político do que para magistrado; da suposta ou real parcialidade em favor de um conhecido banqueiro, sob julgamentos, e dos criminosos do colarinho branco, em geral. O boletim em referência censurava, especialmente, o fato do controvertido magistrado ser “dono” de um centro de estudos jurídicos, em Brasília, que conta, entre seus professores remunerados, vários magistrados, inclusive do próprio tribunal. Circunstância que — segundo opinião de pessoas que acrescentaram comentários à notícia — poderia, em tese, abalar o grau de independência dos seus colegas de toga em relação às opiniões do referido jurista, nos julgamentos mais controversos.

Antes de prosseguir nesta narrativa deixo registrada minha convicção de que a mera circunstância de alguns ministros do STF darem aulas no centro de estudos do Min. Gilmar Mendes não terá influência na manifestação de seus votos. Juristas que chegaram ao cargo de ministro do tribunal mais alto do país não iriam vender suas almas por uns poucos mil reais a mais no seu ganho mensal. Seria verdadeiramente estúpido rebaixar-se, mormente por tão pouco. Se isso, por descabelada hipótese, ocorresse, seria assunto mais de interesse da Psiquiatria do que da Moral. No entanto, considerando o pouco conhecimento do que seja a função judicial, por parte da maioria de nossa população, mais cautelosos serão os magistrados que preferirem não dar aulas ou palestras remuneradas na escola jurídica do ministro. Dizendo isso estou sendo subserviente à desconfiança instintiva das “massas”? Estou, mas com fundamento, porque as “massas” compõem a maior parte da nação: trabalham, produzem riqueza, pagam tributos — diretos ou indiretos — e, conseqüentemente, têm o direito de ter alguns preconceitos de ordem moral. E não são apenas os componentes das “massas” que preferem ver seus magistrados máximos livres da mais remota hipótese de influência anômala. Magistrados devem ser influenciados, claro, mas pelas provas e argumentos da partes, dentro dos autos dos processos.

Agora, um detalhe que me intrigou e indica uma perigosa distorção do papel informativo da mídia brasileira, distorção aprofundadora da fenda que separa “ricos” e “pobres”. Tal brecha não deveria chegar a envolver a Justiça, concebida, pelo menos teoricamente, para proteger os direitos de todas as classes sociais.

Assinante, que sou, de um importante jornal paulista, não constatei, no dia seguinte, nem no outro, qualquer notícia a respeito da manifestação que, pelo filme, não era insignificante. E a televisão de canais principais também silenciou sobre o protesto, seja ele justo ou injusto. O que isso comprova? A perigosa convicção da mídia mais importante de que não é sua obrigação retratar o que ocorre. Escolhe e publica somente o que agrada aos interesses dos donos dos jornais. E parece ter havido, no caso, um acordo de omissão deliberada de notícia desagradável, a presunção de que o que não está na mídia — jornais e televisão — não existiu, é pura ilusão de ótica.

Argumentam os estudiosos das “sociedades secretas” que se um pequeno grupo de poderosos, realmente poderosos, quisesse tanger o gado — digo, a população mundial — em uma determinada direção, bastaria comprar ou convencer os donos dos principais jornais e televisões do mundo para direcionar a formação da opinião pública em um determinado sentido. Obviamente, nunca contrário aos interesses dessa pequena minoria. A voz de um ou outro discordante, “a besta excêntrica”, pouco poderia fazer para impedir isso. Algumas décadas atrás, quando se queria abafar uma voz inconveniente, embora verdadeira, uma artilharia de críticos bem remunerados fazia isso com alarde e eloqüência. O público, com pouco tempo para ler e meditar, ficaria desnorteado com tantos ataques bem redigidos e concluiria contra o discordante, assim pensando: — “Não é possível que só “ele” — o “espírito de porco” — esteja certo!”.

Hoje, essa técnica está superada: em lugar da crítica é melhor o silêncio. Nos jornais e televisões. Muito mais eficaz que a crítica expressada. É que, ao criticar os argumentos verdadeiros que incomodam, o crítico encomendado não pode deixar de apresentá-los, ainda que de maneira retorcida. Porém, torcida, a verdade reage — à semelhança do que ocorre com um pano molhado — fazendo pingar suas gotas de veracidade. Gotas com um poder de persuasão triplicado só pelo fato da tentativa de esmagamento. Melhor, portanto, hoje, o silêncio total da imprensa interessada em direcionar a opinião pública.

Um exemplo da força persuasiva da mídia – seja ela mentalmente honesta ou desonesta — está nas palavras de um chanceler (primeiro ministro) alemão, Otto Von Bismarck, o “Chanceler de Ferro”, falecido em 1898. Possuidor de uma forte personalidade, unificador da Alemanha, exerceu grande influência no século dezenove. Conhecia, íntima e pessoalmente, os embates de interesses subterrâneos que precedem os fatos que apareciam na imprensa de seu tempo. E o que disse Bismarck sobre a Guerra de Secessão dos Estados Unidos? Explicou que essa famosa carnificina entre o norte (anti-escravista) e o sul (escravocrata) foi, de certa forma, “fabricada”, ou altamente estimulada, por poderosos interesses econômicos europeus, preocupados com o crescimento econômico da América do Norte. Temendo a concorrência americana, no século XIX, esse grupo de altos financistas europeus decidiu enviar à América do Norte seus inteligentes formadores de opinião pública para enfraquecer o “perigoso concorrente”, dividindo-o em dois: norte e sul. Dois países, talvez com interesses conflitantes. Se Lincoln não tivesse reagido, impedindo a separação do sul, os EUA não teriam se tornado a grande potência que todos conhecemos. A técnica de “fatiar o inimigo”. Quem quiser saber melhor sobre o assunto, que consulte, mesmo na internet, as citações, ou pensamentos do arguto político alemão.

Meditando sobre a explicação de Bismarck, ela me parece de toda verossimilhança. Sempre considerei espantoso, desconfiável, que cidadãos americanos, os “ianques” do norte, grande maioria branca, fossem se oferecer para morrer ou ficar aleijados apenas para que os negros, do sul, fossem libertados da escravidão. Sentimentos de solidariedade contra injustiças sociais praticadas apenas contra terceiros — que não são nem nossos amigos nem parentes — dificilmente chegam ao ponto de colocarmos em risco nossas vidas e patrimônios. Ainda mais quando os injustiçados são diferentes de nós, até na cor. A “libertação dos escravos”, motivação oficial para o violento conflito que quase arruinou a “promissora” — na época — nação americana parece mesmo algo “armado” pelo grupo de financistas europeus, interessados apenas em proteger seus interesses comerciais, como nos explica Bismarck. Este não teria motivo para distorcer a realidade. Pronunciou-se como um historiador.

Voltando ao Brasil e ao protesto contra Gilmar Mendes, minha irrelevante opinião pessoal é a de que o referido jurista deveria, por sua própria iniciativa, e no momento próprio — não exatamente agora, porque pareceria ter sido forçado — deixar a magistratura e ingressar de corpo inteiro na política, espaço mais adequado a seu temperamento e às suas convicções. Será mais útil — e falo sem ironia — como político, porque como tal poderá mexer em um vespeiro — a evasão de divisas — que explica o atual conflito brasileiro entre prender ou não prender os “ricos”. Como magistrado ele não poderá, às claras, dizer que esse negócio de guardar dinheiro no exterior não é tão grave, considerando a pesadíssima carga tributária brasileira e o medo — justificado após o Plano Collor —, do governo congelar as reservas de pessoas que não são nem traficantes nem contrabandistas.

Como dublê — talvez não muito consciente disso — de magistrado e político, sugerindo, ou melhor, pressionando isso e aquilo, Gilmar Mendes acaba desfrutando de uma condição privilegiada no jogo político: ataca mas quase não pode ser atacado. Há o receio da crítica franca a um homem com tanto poder. É como acontecia com os padres que entravam na política, décadas atrás. A batina era uma proteção extra. Isso sem falar no medo do castigo divino por parte dos eleitores. Como magistrado, e justamente no cargo mais alto, Mendes dispõe de um escudo invisível, porém real. Advogados temem se pronunciar contra ele, na mídia, porque podem precisar de seu voto em um eventual futuro julgamento. Se a crítica, em um jornal, for pesada, embora talvez verdadeira, há o risco de prejudicar o interesse do cliente, que não tem nada com isso. E qual o jornalista absolutamente certo de que um dia não estará como réu em um crime de imprensa? Juízes também guardam para si opiniões desfavoráveis ao ministro porque, como é normal, querem crescer dentro da carreira. Manifestar-se contra um alto magistrado que ocupa o cargo máximo e, além disso, preside o órgão disciplinar dos juízes, é correr o risco de não ser promovido, mesmo merecendo. Isso, ainda, se o juiz, como “autoridade”, não for processado criminalmente por ter autorizado uma escuta telefônica que ao ministro parecer ter sido abusiva. O que é “abusivo”? A atuação do ilustre ministro tem sido quase toda no sentido de intimidar a repressão aos criminosos do colarinho branco.

Gilmar Mendes está certíssimo no proibir a invasão de escritórios de advocacia para apreensão de computadores documentos de clientes confiados a seus patronos. Certo, também, ao criticar um excesso de escuta telefônica. Errado, porém, quando sugere processo criminal contra qualquer vago “abuso” na escuta, mesmo autorizada por juiz. Receosos, os juízes tenderão a não permitir escuta alguma.

A crítica maior contra ele está na total falta de interesse, ou sugestão para modificar a presente legislação, ou jurisprudência, que assegura total impunidade dos criminosos do colarinho branco. Antes do derradeiro julgamento, no STF, o acusado poderoso aguardará, em prudente distância, o resultado, celular na mão, talvez com passaporte e passagem aérea no bolso. Se condenado à pena privativa de liberdade, sumirá. Se condenado a prisão domiciliar talvez não fuja. Para corrigir isso bastaria que a jurisprudência mudasse no sentido de que, confirmada, em apelação, a condenação, o réu aguardaria, preso, futuros julgamentos, seja no STJ, seja no STF. Do contrário, a fuga será sempre um fato. Quem seria tão tolo e passivo, deixando de fugir, dispondo de dinheiro para tanto?

Cumpre frisar, aqui, que “colarinho branco” não é sinônimo de desonestidade. A criminalidade é um fungo humano que pode brotar em qualquer camada social. Pode surgir nos pobres, nos ricos e na classe média. É uma espécie de fatalidade na imaginativa espécie humana. Talvez ocorra em menor proporção na classe média porque ela está mais livre das duas tentações extremas: a privação de quase tudo — como ocorre na pobreza —, e a ganância, força ou vício quase irresistível que atormenta as pessoas que já conseguiram muito mas acham, por vaidade, que não podem parar onde estão, em posição inferior aos concorrentes, “que só por isso se imaginam mais inteligentes do que eu”.

O “colarinho branco”, no geral, presumo, gostaria de viver em um país ordeiro e justo. Se alguns resolvem sair um tanto da linha o fazem mais na área tributária, porque se sentem um tanto “roubados” pelo governo. E quando o empresário vê os concorrentes se beneficiando com a impunidade — subornando fiscais e fazendo truques de contabilidade —, pergunta-se se não está sendo tolo cumprindo rigorosamente a lei. Daí o apelo quase irresistível para o Caixa 2. Mas onde guardar o dinheiro, senão no Exterior? Aí está, penso, o foco do tumor, cuja secreção purulenta acaba afetando a saúde funcional de um Paulo Lacerda, homem de valor. Gilmar Mendes, fora da magistratura — dentro, não teria condições —, poderia tentar convencer a comunidade de que as evasões de divisas e crimes assemelhados poderiam, com uma nova lei, ter conseqüência apenas econômica, com substancial fatia do dinheiro “devolvido” aos cofres públicos. Solução jurídica infinitamente melhor, para o país, no ângulo econômico, do que colocar — hipoteticamente apenas — na prisão um talentoso financista que poderia aplicar sua “expertise” gerando riqueza para a comunidade. Do jeito que está a jurisprudência hoje, o réu nem será preso nem o dinheiro devolvido.

O “povão” — a “rua”, no dizer do Min. Joaquim Barbosa — tem razão em seu grito de inconformidade. Isso porque, na prática, na realidade nua e crua, os poderosos autores de crimes financeiros não pagam pelos seus crimes, tecnicamente falando. A punição é moral — o abalo da reputação — e, claro, a saudável obrigação de remunerar muito bem seus competentes advogados, que acabam funcionando como peculiares e involuntários justiceiros, merecendo elogios isso. Essa é a realidade, percebida, sem panos quentes, pela comunidade brasileira. Daí o desejo de que Gilmar Mendes utilize sua energia e cultura na área própria, atacando e sendo atacado como um político igual aos outros. Impeachment, hoje, a meu ver, não tem possibilidade de sucesso, porque ele sempre poderá argumentar que agiu dentro de suas convicções estritamente jurídicas. E quem pode fotografar o que ocorre na intimidade do cérebro humano?

(8-5-09)

Nenhum comentário:

Postar um comentário