“Criônica”. Um livro original
Em 2005 publiquei um
romance que batizei com o título acima, um aportuguesamento da palavra inglesa
“cryonics”, inventada por norte-americanos. Ela significa a técnica de congelar
seres humanos imediatamente após a morte — antes que ocorram danos cerebrais
irreversíveis —, com a esperança de que possam ser descongelados, alguns anos
depois, quando as suas doenças, hoje incuráveis, já não mais o forem. A
presunção, inegável, é a de que a medicina do futuro será muito mais avançada
do que a do presente. Técnica, hoje, incipiente, tateando, mas quando der certo
iniciará uma nova era. Não existe nada mais revolucionário”, embora sem data
previsível para o sucesso.
Não confundir, por favor,
a palavra “cryonics” com “cryogenics”(criogenia), ramo mais abrangente da
física que estuda a produção de temperaturas extremamente baixas e seus efeitos na matéria em geral, inclusive nos seres vivos.
Reiterando, “cryonics”
refere-se unicamente ao congelamento de pessoas, com o fim de “acordá-las” anos
depois.
— “Como?!
Ressuscitá-las?!” — perguntam-se as pessoas mais apegadas ao pensamento
religioso. — “E o que acontece com a alma? Permanecerá congelada no “cadáver”
ou fica passeando até ser chamada de volta”? Caçoadas não faltam. Por enquanto
com alguma razão, mas o tempo mostrará que o futuro nos surpreenderá.
Obstáculos mais difíceis já foram superados pelo engenho humano.
O congelamento seria uma
espécie de “pause” do filme gravado em DVD. Querendo continuar a exibição basta
apertar o botão do controle remoto. O filme não se “deteriora” com a pausa.
Segundo li, os próprios átomos — normalmente tão irrequietos na temperatura
normal, filmados no microscópio eletrônico —, ficam quase imobilizados quando a
temperatura está em -196 C. Essa é a temperatura do nitrogênio líquido em que
estão encerrados os “mortos”, ou “pacientes”, na terminologia dos entusiastas
da criônica. Uma espécie de “coma” gelado.
O interesse prático por
tão ambiciosa façanha, “ressuscitar” uma pessoa “morta” — assim considerada,
legalmente, hoje, porque o coração e o pulmão pararam de funcionar — obviamente
surgiu em seres humanos que ainda esperavam viver muitos anos, mas foram informadas,
por médicos sinceros e competentes, que sua doença é mortal, incurável e com
desfecho próximo.
Mesmo o paciente sabendo
que os laboratórios esforçam-se para a cura de sua doença, o médico honesto e
realista informa ao angustiado cliente que, no seu caso, mesmo surgindo,
eventualmente, a notícia de uma grande descoberta científica, não haverá tempo
suficiente para a composição do remédio, rigorosos testes de eficácia e a
autorização para sua comercialização. Esperar por um “milagre científico” e
farmacêutico será morte garantida.
Quando a situação é essa,
o paciente, imaginativo e apegado à vida, pensa da seguinte forma: — “Já que
vou morrer daqui a algumas semanas, ou meses, por que não arriscar em me
congelar a -196° C e esperar por tempos melhores, quando minha moléstia for equivalente
a um resfriado? Não vou ser morto antes do tempo porque isso seria homicídio.
No momento que eu naturalmente morrer, em vez de meu corpo iniciar o processo
de decomposição, a técnica iniciará um “tratamento” impeditivo do
apodrecimento. Só quando meu coração espontaneamente parar de bater e eu
estiver inconsciente é que os paramédicos de prontidão extrairão, com rapidez,
meu sangue, substituindo-o por um líquido — uma espécie de glicerina —, que só
será substituído por sangue verdadeiro quando eu for descongelado”.
E o “condenado” prossegue
pensando: — “Quando eu sair do “coma gelado”, daqui a alguns anos, receberei
uma transfusão de sangue; meu coração será estimulado, eletricamente, a pulsar,
o oxigênio invadirá meus pulmões, e eu poderei, quem sabe, voltar a viver. Se o
processo, não der certo, eu continuarei morto, como o restante da humanidade,
totalmente inconsciente do fracasso. Apenas o velho e conhecido sono eterno.
Essa conjetura é mais reconfortante que saber — com absoluta certeza —, que
daqui a alguns dias, ou meses, morrerei mesmo, sendo enterrado ou reduzido a
cinzas. Congelando, terei alguma chance, acima de zero por cento, de “voltar”
—, porque a ciência e a tecnologia não param de evoluir. E o que tenho a perder
congelando-me? Apenas o dinheiro que dei para a empresa que me manteve
mergulhado em nitrogênio líquido. Qual a utilidade do dinheiro para qualquer
morto?
No meu romance “Criônica”
— que não é, de forma alguma, um livro de ficção científica —, eu coloquei dois
personagens: um arguto ex-banqueiro brasileiro, condenado por homicídio da
esposa, portador de câncer incurável, e seu irmão, um desembargador aposentado,
mais ajuizado, que tenta convencer o doente a não entrar numa provável arapuca
comercial. Considera impossível essa história de voltar a viver após anos ou
décadas, mas no decorrer das conversas com o irmão começa a admitir alguma
possibilidade. É emocionalmente estimulado, nessa tolerância científica, porque
vê nela uma solução para um segredo sentimental que nunca revelou a qualquer
pessoa.
O romance desenvolve-se
no dia-a-dia da espera da morte, o ex-banqueiro contando ao irmão o desenrolar
de sua vida, a lembrança das mulheres que “conheceu”, no sentido bíblico ou
platônico — o financista foi um mulherengo que realmente amava, embora provisoriamente,
cada uma delas — registrando os diálogos em gravador. Faz isso porque espera
que o irmão jurista, aproveite esse material escrevendo um livro que ele, o
doente, continuará escrevendo após seu retorno à vida. No “volume 2” poderá
contar com mais detalhes, o que viu, pessoalmente, no fim do tal “túnel de
luz”, assim descrito por pessoas que sofreram a experiência de “quase morte”,
ou morreram mesmo durante alguns minutos, sendo ressuscitadas por choques no
coração.
Para escrever esse
romance perdi um bocado de tempo, lendo os tópicos de ciência e filosofia
relacionáveis com tão peculiar situação. Aproveitei a oportunidade para trazer
à baila, nos diálogos, a experiência profissional do irmão aposentado, criando
um enredo paralelo ao aspecto científico, assim evitando a monotonia de
conversas girando em torno de um único assunto técnico.
Nossa vida é breve. De modo geral, os primeiros vinte anos servem
apenas para o desmame, a alfabetização e o conhecimento elementar do mundo que
nos cerca. Depois dos vinte vem a fase da luta pela vida, a disputa sexual, a
concorrência, a luta pelo status. Dos quarenta aos sessenta a luta do “camelo”
apenas útil continua. Depois dos sessenta, o “gás” vai sumindo. De modo geral,
nessa fase, a maioria, olhando para trás, não se considera “vencedora”. O
resumo disso é: “Nasceu, mamou, comeu, bebeu, fornicou, trabalhou — ou não teve
sempre essa oportunidade — e o foco da vida passou a ser o combate contra o
colesterol, o diabetes ou a fome, a pressão alta e preocupações assemelhadas.
Há, porém, alguns poucos
milhares de indivíduos — entre os sete bilhões de habitantes do planeta —
realmente interessados em conhecer verdadeiramente nosso habitat, nós mesmos e
o cosmo fascinante e misterioso. São pessoas, geralmente inteligentes — ou pelo
menos invulgarmente curiosas —, que anseiam por formar uma síntese do mundo
conhecido e avançar no desconhecido, procurando explicação para todos os
fenômenos.
Para aqueles realmente
interessados em penetrar a fundo na compreensão dos seres vivos, e não vivos, o
tempo de vida plenamente lúcida é decepcionante. É um desperdício que pessoas
como um Einstein, por exemplo, e centenas de outros cientistas — notáveis na
inteligência e no caráter — disponham de tão pouco tempo útil. Daí o interesse
em criar uma técnica adequada de congelamento que permita a cientistas e
pensadores, especialmente engenhosos, fazerem uma “pause” nas suas vidas,
quando o cérebro começa a declinar seriamente, sabendo que, depois de um “sono”
de dez ou vinte anos, poderão “acordar”, reparar seus cérebros, acrescentar
novos neurônios utilizando células-tronco, e prosseguir com suas pesquisas.
Além do mais, no decorrer
das futuras décadas, e séculos, o homem “precisará” enviar astronautas para a
exploração espacial muito além da lua. Tais viagens consumirão anos de vida.
Com a técnica do congelamento, até lá dominada, o astronauta poderá “dormir”
por dez, vinte, trinta ou cinquenta nos, voando talvez com velocidade próxima à
da luz, sem envelhecimento, só “despertando” quando o computador da nave
espacial disser que é hora de “acordar”.
Penso que está
justificada minha defesa esperançosa no conteúdo programático do livro
referido. Quero incentivar as pessoas mais inteligentes a pensar no tema.
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