sábado, 14 de janeiro de 2023

GENTILEZA ANTIDROGAS

                      

Foto divulgação 

O narcotraficante, grau médio na hierarquia criminosa, bem-vestido, envolvente, esperto, de regular instrução, procura convencer a velha senhora, uma mulher alta, magra, visivelmente angustiada.

— Vamos logo, dona Genoveva! Decida-se! A senhora nunca mais vai ter uma oportunidade igual a essa!

Ela reluta, torcendo as mãos:

— E se a polícia me pegar? Não aguentarei a vergonha! Eu tenho netos, meu senhor... 

— Que a senhora tem neto, eu sei. Conheço um deles. Por isso estou aqui, para ajudá-lo... Mas quem disse que a senhora pode ser presa? As apreensões da “mercadoria” são raríssimas! Um quilo por tonelada. E não vá em conversa de jornal. Se a senhora soubesse como são as redações! Ninhos de fungadores! Todos eles “cheiram” para ficar mais inteligentes, faiscantes, escrevendo com mais nervo, mas alguns nem assim conseguem... Agora, para efeito externo, posam de grandes moralistas. Fique sossegada. Será apenas um passeio.

— Mas comigo pode dar azar! Nunca tive sorte em coisa alguma. Em toda a minha vida, já devo ter comprado umas quarentas rifas e jamais ganhei nem mesmo o prêmio de consolação. Pedacinhos de loteria, então!... No máximo, o valor do próprio bilhete. Se tivesse economizado meu dinheiro, teria agora uma geladeira nova e um forno de micro-ondas.

— Olha... eu não devia contar isso... mas, vá, lá, em confiança... — Fez uma pausa, como que hesitando em tomar uma decisão difícil. — Até agora, nada aconteceu com aquela senhora da esquina. Aquela, da casa bonita, do lado esquerdo. Há tempos que ela trabalha para nós, discretamente. Quem a senhora pensa que paga as viagens dela?

Ele sacava as mentiras conforme surgiam as resistências. Inventava tudo na hora, porque cada pessoa tinha um medo ou tentação diferente. Basicamente, tudo se resumia em falta de dinheiro e medo da prisão; mas havia muita variação quanto ao envoltório desses dois sentimentos. As hesitantes “mulas” velhas nunca eram iguais. Algumas se convenciam com um argumento. Outras, com outro. E na escolha do veneno específico, ele tinha boas antenas, sendo muito persuasivo. Mentia com facilidade, até mesmo com certa graça. Sabia, por experiência, que a virtude apoia-se em algumas estacas morais que podem ser removidas, uma a uma, com golpes nos pontos certos. Removidos os apoios, bastava um piparote para derrubar todo o edifício.

A velha espantou-se com a referência à mulher da esquina: — O quê?! A dona Heloísa? Aquela orgulhosa, dona da verdade, que me olha de cima? Não acredito!

— Ela mesma... — Sorriu, tranquilo, com a falsa verdade no olhar franco, pois era um artista. — Mas o que estou dizendo agora é estritamente confidencial. Se a senhora abrir o bico, mesmo para contar à melhor amiga, não garanto pela vida da senhora. Não por mim, claro, mas meu chefe não perdoa. 

Ela balançou a cabeça, espantada com a informação sobre a vizinha, mas de certa forma sentindo uma pontinha de satisfação. Afinal, encontrara um “podre” na “ricona”, toda superior. Saberia como lhe devolver o olhar, na próxima vez em que se cruzassem na calçada. 

— Quem diria... A dona Heloísa... Minha filha disse que ela parece um bispo de peruca... Toda cheia de dignidade... 

— E sou capaz de apostar que a senhora conhece mais duas pessoas insuspeitas aqui no bairro que, de vez em quando, fazem alguns servicinhos para nós. Só que não posso revelar nomes. Por isso não vejo razão para tanto medo. A gente tem que reagir contra a própria covardia. Todos nós somos um pouco covardes, mas é nossa obrigação lutar contra sentimentos inferiores.

— Mas não é só medo... É saber que estou fazendo uma coisa errada, criminosa... 

Ele a interrompeu:

— Criminosa... Formalmente, pode ser, porque está na lei. Mas errada, não! A senhora já ouviu falar de Freud, Einstein, Salvador Dali, aquele pintor aloucado de bigodes retorcidos e outros homens famosos? Todos eles eram exímios cheiradores. Sem a coca não teriam brilhado, aparecido. Ao que dizem, o descobridor da penicilina também consumia. Moderadamente, como deve ser. O mal está no excesso, não no uso. Daqui a algumas décadas, os cientistas vão dizer que o uso do pó branco foi um grande avanço da humanidade. Um cientista já escreveu que, sem a coca, não existiriam os computadores.

— O senhor falou no Flemming, aquele que inventou a penicilina? Nunca soube disso!

— Fica sabendo agora. São coisas que os governos mantêm em segredo. Porque, infelizmente, muita gente exagera. E aí faz mal. Controlando, só estimula o cérebro. A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.  É o mesmo que comer, tomar remédio, etc. Coma muita feijoada e a senhora vai passar mal — sorriu. — Mas, como é, vai ou não vai fazer essa viagem pra gente?

— Ainda não sei... 

Ele fez um gesto de impaciência. Erguendo mais a voz, pressionou: — Sejamos práticos: teu neto, como a senhora sabe, vai ser preso, se não devolver o dinheiro do banco onde trabalhava. O banco está até fazendo um favor, não levando o caso à polícia. Se, na hora do desfalque, tinha ou não a intenção de devolver, isso não tem a mínima importância legal. Desfalque é desfalque. Apropriação indébita, um crime muito sério. Se não estou enganado, é crime hediondo. Vai ter que cumprir a pena inteirinha. E vocês não têm de onde tirar essa quantia. A pensão da senhora é uma piada. O governo está pouco ligando, tanto pra senhora quanto pro teu neto. Ele vai ser preso, preso! se não devolver a grana! E a senhora aí, indecisa, rejeitando ganhar uma bolada no mole, sem qualquer risco!

— Como sem qualquer risco? Posso ser presa!

Ele pareceu hesitar, como se novamente em dúvida se deveria revelar mais um segredo da organização. Após pequena pausa, decidiu largar a melhor mentira de seu estoque. Mas fez antes um pouco mais de teatrinho:

— ... Estou me desmoralizando — disse, balançando a cabeça. — Falo coisas que nunca deveria falar...Mas vá lá: no aeroporto onde a senhora vai desembarcar, todos os policiais são gente nossa... Eles não vão nem chegar perto da senhora. Já estão sabendo de tudo. Vão ficar de longe, até mesmo dando uma cobertura disfarçada. 

Ela ainda relutava:

— O senhor talvez não acredite, mas nunca fiz coisas erradas. Meu único defeito foi ser um pouco preguiçosa e, desorganizada. Mas nunca traí meu marido, nem mesmo em pensamento... Como é que, agora, com setenta e três anos, vou virar traficante de cocaína?! Vou ser “mula”! Até o nome é feio!

Ele já estava perdendo a paciência:

— Mulher burra, medrosa! Desculpe a franqueza! Este é um momento de emergência para a senhora, não para nós! Nós a procuramos porque soubemos da situação do seu neto e porque a senhora tem um porte e rosto distintos, respeitáveis. Mas não se esqueça que existem centenas, milhares de mulheres necessitadas e com boa aparência! Afinal, a senhora não liga pro rapaz? Que tipo de avó insensível é a senhora? Aqueles banqueiros pilantras, encharcados de uísque e amantes, ganhando rios de dinheiro sem risco — porque o Governo os garante nas crises —, bem que poderiam perdoar o pequeno desfalque. Mas isso nunca! O dinheiro deles é sagrado! Só o deles! Não passam de agiotas legalizados. Vão levar o caso à polícia, jogar teu neto numa cela cheia de tarados. A senhora já viu, já esteve dentro de uma cela? Aquilo é um viveiro de piranhas. Por acaso, não sabe o que um rapaz bonito como ele pode passar numa cela superlotada? Pretos, brancos, mulatos, todos avançando, excitados. Sairá no mínimo aidético!

A visão do neto sendo violentado na cela a fez decidir-se:

— Para! Cala a boca, por favor! Não me martirize... Está bem, aceito, mas com uma condição.

— Qual?

— Que seja uma única vez. Ouço falar que quem entra no tráfico não consegue sair. Faço uma única vez. Não quero morrer com esse peso na consciência.

— Quanto a isso, não tenha medo... A própria idade da senhora já é sua proteção. E nada vai conhecer sobre nossa organização. Sabe apenas que foi procurada por um homem, cujo verdadeiro nome nunca conhecerá. Assim, não nos oferece perigo. A senhora nem pode dizer que “saiu” da organização, porque sequer nela “entrou”. Entregue a mercadoria, a senhora receberá no ato o seu dinheiro, salva o neto e nunca mais nos veremos. E volta pro Brasil no dia seguinte porque a passagem é de ida e volta. Se, por acaso, um dia, me vir na rua, finja que não me conhece porque vou fazer o mesmo. Agora, preste atenção ao que vou dizer. Saindo do aeroporto, a senhora vai encontrar uma mulher de casaco verde segurando um papelão com o nome da senhora — E deu uma série de instruções. 

Alguns dias depois, munida de passaporte, a velha estava sentada dentro de um avião com destino a Portugal, suando frio em razão da tensão e quente em consequência da temperatura propriamente dita. Sentia-se abafada naquele casaco, que não podia tirar por causa dos inúmeros saquinhos de cocaína presos em volta do tronco. À aeromoça, que lhe sugeriu tirar o casaco, explicou que estava muito gripada. 

Logo após a decolagem, começou a orar em pensamento, alternando rezas e pedidos. Rogava duas coisas: primeiro, que o avião não caísse; segundo, que tudo desse certo. No meio de uma “Ave-Maria”, lembrou-se que o segundo pedido, se atendido, transformaria o Criador em cúmplice do narcotráfico. Aí parou a reza, explicando a seu Deus, mais uma vez, que fazia aquilo, não por egoísmo, mas por amor ao neto. Sua filha, a mãe do rapaz, era uma coitada, largada do marido, que mal conseguia arranjar comida para o dia seguinte. O pai estava sumido há anos. Deus, que tudo sabe, leria dentro de seu coração e a perdoaria por essa viagem horrível. Tinha certeza disso. Por que seria gravemente punida por um único erro, cometido para salvar um neto? Deus não seria jamais injusto. Via mais longe que qualquer juiz de carne e osso. Um pecado, sim, mas para salvar um corpo e uma alma. Na verdade, uma vida. 

Desceu do avião sem incidentes. — “Daqui a uma hora, estarei livre!”, pensava, quase aliviada. — “O homem garantiu que nenhum policial ia me abordar”.

Não gostou quando se deparou com uma grande fila à sua frente. As pessoas teriam que mostrar seus passaportes. Ao que presumia, seu documento, providenciado pelo traficante, deveria estar na mais perfeita ordem. Eles não seriam tão estúpidos de falhar no detalhe. O desagradável era a tensão da espera. Havia muitas pessoas à sua frente.

Nesse momento, dois policiais à paisana, mas com distintivos bem visíveis no paletó, conversavam a uma certa distância. Nada desconfiavam. Um deles acabara de contar uma anedota a respeito de sogras. O outro, mais velho, precocemente calvo, disse que não compreendia essa prevenção dos humoristas porque jamais conhecera mulher mais generosa e distinta que sua sogra, falecida uma semana antes.

Mal ele disse isso, seus olhos avistaram aquela senhora alta, pálida, de feições cansadas que, na fila dos passageiros chegados do Brasil, parecia sofrer mais que os outros pela demora.

— Está vendo aquela velha? Aquela meio barriguda, de casaco cinza, atrás do japonês? É parecidíssima com minha falecida sogra. Tem, como ela, a retidão no semblante... 

— Ela parece doente... 

— Deve estar exausta... Sabe de uma coisa? Vou resgatar, por via indireta, uma dívida moral que tenho com dona Lourdes — era o nome da falecida. — Fui um pouco impaciente com ela nos dias que antecederam o derrame que a matou. Vou fazer essa velha passar na frente de todo mundo. 

— O pessoal pode estrilar... Há outras velhas também esperando... 

— Eu disfarço... Pode vir comigo? — E os dois caminharam na direção da tensa senhora, que, vendo-os aproximar-se, sentiu crescer o medo.

— Somos da Polícia... — disse o agente calvo. — A senhora quer nos acompanhar?... — E, dizendo isso, segurou no braço da velha, uma forma de lhe dar apoio, retirando-a da fila. 

Mal deram uns dez passos, a velha, apavorada, tremendo, gaguejou:

— Olha, quem me mandou foi o senhor Oliveira... O senhor sabe... 

— Sei o quê?

— Ele me disse que... me disse que tinha uma mulher me esperando lá fora... Que nada aconteceria... Que estava tudo combinado... 

— Combinado?! A senhora vai contar essa estória direitinho... 

Aí, o salão todo, com pessoas, malas, poltronas e letreiros, começou a girar vertiginosamente na cabeça da pobre mulher. Ao turbilhão seguiu-se a perda da consciência.

Pouco depois ela acordou numa sala do próprio aeroporto. Estava sem o casaco. Os saquinhos de cocaína haviam sido agrupados em cima de uma mesa para serem fotografados. Agentes policiais tomavam notas e um médico recomendava algum cuidado com a angustiada porque havia o perigo de um infarto.

No fim do dia, a velha foi ouvida no flagrante. Narrou os fatos conforme descritos acima.

Os dois policiais que a retiraram da fila, ao se despedirem, porque findara o turno de trabalho, conversavam a respeito da apreensão da droga. O calvo, não obstante o casual sucesso funcional, parecia aborrecido:

— Eu deveria estar feliz porque peguei uma traficante... Mas não estou!... Acredito piamente no que ela disse... Foi a primeira vez... Uma mulher escolada não se denunciaria tão depressa. Eu só queria ajudar... Agora vão ser duas gerações em cana: a avó e o neto.

— Foi bancar o bom samaritano das velhinhas e se deu mal... — brincou, irônico, seu colega, policial bem mais endurecido.

— Não fosse a sua piada sobre sogras, eu não teria me lembrado da minha. Não teria pensado em ajudar... Para você ver o peso acidental das palavras em determinados momentos... Mas, eu me pergunto: se tudo tivesse dado certo, será que ela não faria isso de novo? Nunca vi ninguém chorando, arrependido, quando o crime foi bem-sucedido. 

Esse pensamento o tranquilizou, parcialmente. Afinal, os policiais são seres humanos. Precisam também de apoio para continuar nas suas funções, mas essa teorização não conseguia sossegar a sua alma. A seu julgamento, a velha era sincera, não voltaria a fazer esses transportes. Que pelo menos cumprisse prisão domiciliar. Se fosse intimado para depor, diria ao delegado e ao juiz que estava convencido da boa índole da idosa que apenas tentava salvar um neto.

          FIM

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br

Conheça meus livros - Amazon.com.br 

Nenhum comentário:

Postar um comentário