Sobre dois livros:
“Criônica” e “A morte da morte”.
Quando Alberto
Santos Dumont, em 23 de outubro de 1906, nos campos de Bagatelle, Paris,
conseguiu erguer no ar seu fantasmagórico e desajeitado "14–Bis", não
podia imaginar que naquele momento lançava as sementes de um futuro ramo do
Direito, o Aeronáutico, aceito como autônomo nas mais recentes constituições
brasileiras.
Espantoso é
saber, hoje, que no segundo voo, em 12 de novembro no mesmo ano, o aparelho
percorreu 220 metros, em 31 segundos, na "vertiginosa" altura de dois
metros. Foi o primeiro voo controlado do homem. Uma velocidade — 37,50 km/h — “ligeiramente”
inferior, claro, à do "tataraneto" do "14-Bis", o
supersônico Concorde.
A evolução,
como se vê, foi rápida. Já em maio de 1927 Charles Lindbergh realizava,
sozinho, a primeira travessia aérea do Atlântico, no sentido oeste - leste, a
comprovar a velocidade criativa do ser humano, pelo menos na área técnica.
Quem, eventualmente, assistiu algum filme documentário sobre a história
dos foguetes certamente terá se espantado com o desnorteamento desses primeiros
artefatos que, contrariando os cálculos dos engenheiros, mais pareciam
gigantescos busca–pés sem vara, destituídos da mais remota noção do lugar em
que poderiam cair.
Nesses antigos documentários é impossível deixar de rir —
não obstante o trágico da situação — quando se observa a velocidade de fuga das
pernas dos técnicos, engenheiros e operários — muito superior, no chão, à do
"14 – Bis", no ar. Filmados de certa distância, os homens parecem
formigas desesperadas, fugindo do provável local de impacto da máquina louca e
mortal, porque carregada de combustível.
Não obstante este difícil começo, em 1969 a "Apollo 11", nave
tripulada, pousava no Mar da Tranquilidade, Lua. Algo, inicialmente, para
muitos — mesmo com formação científica — inconcebível, porque os foguetes
espaciais não possuem aletas, que possam influir no seu direcionamento. No
vácuo as aletas são inúteis. Como já observou alguém, o ar é inimigo do foguete
e o vácuo é inimigo da aeronave.
Não esquecer que quando o foguete é acionado,
o nosso planeta não está imóvel. A velocidade de rotação da Terra sobre seu
próprio eixo é de quase 1.700 Km por hora. Só não somos centrifugamente
"cuspidos" para o espaço por causa da gravidade. Um mínimo erro de
cálculo no projeto de voo à Lua e a tripulação da espaçonave perder-se-ia no
imenso vazio, numa viagem sem volta. Como calcularam, sem erro, tal viagem?
Hoje, a tarefa é café pequeno, comparada ao projeto de enviar nave tripulada ao
planeta Marte.
Os
"malucos" do foguete — não esquecer o principal, o alemão Von Braun —
não estavam interessados, em plena guerra, nas potencialidades pacíficas do
artefato para exploração do universo, encarando-o apenas como um míssil para
matar e destruir alvos distantes. No entanto, passada a guerra, o invento —
como toda invenção — mostrou-se uma grande conquista da humanidade.
Von Braun era tão importante para os previdentes norte-americanos — que
pouco sabiam, então, da tecnologia dos foguetes — que as bases de lançamento
das "V-2" (foguetes que castigavam Londres na 2ª Guerra
Mundial) deveriam ser destruídas pela
aviação inglesa, mas poupados os dormitórios que abrigavam os cientistas, detalhe
que dificultava a tarefa dos pilotos britânicos, obrigando-os a se aproximar
perigosamente na seleção dos alvos. Mas os ingleses, embora contrariados com a
restrição, provaram ter boa pontaria. Von Braun e seus colegas não morreram nos
bombardeios e, finda a guerra, foram requisitados para trabalhar nos Estados
Unidos, apressando a conquista espacial.
Um outro avanço tecnológico que, suponho, ainda vai abalar nossa
civilização — talvez em escala muito mais profunda que a invenção do avião e do
foguete —, está na utilização do frio como forma de preservação de corpos
humanos, afetados por graves acidentes ou moléstias no momento incuráveis. Se
bem conservados, e depois bem ressuscitados, nada impediriam que voltassem a
viver e se tratar com uma tecnologia muito mais adiantada.
Se não nossos
filhos, pelo menos nossos netos bacharéis terão que coçar a cabeça e criar
normas jurídicas para disciplinar o espinhoso campo da criogenia, ou
criobiologia, no item de conservação de seres humanos em temperaturas extremamente
baixas, para descongelamento futuro. Haverá, consequentemente, no futuro, um
"Direito Criônico".
A conservação, pelo frio, de frutas, carnes, peixes, sêmen, ou óvulos
fertilizados é, hoje, rotineira. Tais atividades referem-se à criogenia.
Todavia, para a "ciência", ou técnica — ainda incipiente — de
conservação de seres humanos não foi ainda cunhado um específico termo, no
nosso idioma. E o caminho natural para esse "batismo" parece ser o
aportuguesamento da palavra inglesa "cryonics", adotada por Robert
Ettinger, professor de Física norte americano, no seu livro "The Prospect
of Immortality", publicado em 1964. O acesso a informações sobre esse
tema, na Internet, só era possível, quinze anos atrás, digitando-se a
palavra "cryonics".
"Criônica", portanto, será a
provável denominação dessa novíssima área de pesquisa. De qualquer forma, a
palavra é o que menos importa.
Mesmo o leitor
mais tolerante deve estar se perguntando: — O que leva o autor deste artigo a
procurar tão esdrúxula matéria? Não estaria o tema melhor localizado em uma
revista de Ficção Científica?
Realmente, o
assunto cabe em vários espaços. Inclusive no jornalismo, na religião, na
filosofia, na política, na psicologia, em tudo.
Vários meses atrás li, nas notícias
internacionais de um jornal paulistano, que uma senhora inglesa, portadora de
doença incurável — a notícia era muito sumária —, havia procurado uma firma
especializada em congelamento de seres vivos em nitrogênio líquido — 196 graus Celsius
negativos. Essa senhora pretendia manter-se congelada até o momento em que a
ciência estivesse em condições de, não só curar sua doença, como também de
reparar os danos causados pelo prolongado congelamento.
Dizia ainda o
jornal que o preço exigido para a conservação do corpo dessa senhora era
elevadíssimo. Não dispondo da quantia, ela — muito imaginativa e curiosa sobre
o futuro —, contratou a empresa para que conservasse apenas sua cabeça
("neurossuspensão"), o que implicaria na redução dos custos.
Confiava, certamente, na possibilidade, embora remota, de "transplante de
corpo", porque para ela o importante não era seu corpo, mas a cabeça, o
cérebro. Quem sabe, pensava, poderia, “ver”, pessoalmente, outros planetas, em
futuras décadas.
Aparentemente,
referida senhora pagou caro pelo seu impulso, porque alguns anos depois, no
Arizona, EUA, uma entidade denominada "Alcor Life Extension
Foundation" cobrava muito menos a conservação de um corpo inteiro. Redução
que parece ser um grande avanço, em termos de incentivo à difusão da ideia e
presumindo-se que se trate de entidade séria. O exótico da iniciativa, por si
só, não implica em desonestidade da empresa, que não sei se ainda existe,
porque frequentemente presenciamos novidades impensáveis poucas décadas atrás.
E pelo que tenho lido, um grande entusiasmo contagia os poucos interessados em
transformar a mera possibilidade em realidade.
Como se tratava de uma notícia sobre fato real, não uma brincadeira de
ficção científica, ou literatura de horror — a menos que se cuidasse de pouco
provável irresponsabilidade do jornal —
interessei-me pelo problema como tema para futura obra de ficção, sem
pensar em múltiplos desdobramentos.
Procurando material informativo, a primeira providência natural seria
dirigir-me às livrarias especializadas em Medicina, mas as funcionárias de plantão
nem mesmo sabiam do que se tratava. Desconheciam até as palavras criogenia e
criônica.
Através da "Livraria Cultura", que lida com livros importados,
fiquei ciente da existência de um livro, "The First Immortal"
("O Primeiro Imortal"), de James L. Halperin, editora Del Rey.
Trata-se de um romance, obra de ficção, mas que poderia trazer as primeiras
informações. Afinal, seria preciso começar a pesquisa por algum lugar. À míngua
de obras "sérias" — jurídicas, nem pensar! — a solução seria começar pelo
referido livro.
Ao iniciar a leitura
não esperava que o autor da obra fosse tão aberto, tão sinceramente entusiasta
de um tema cujo simples enunciado provoca imediata reação de incredulidade. O
autor mostrava-se absolutamente confiante quanto à real utilidade dessa nova
tecnologia, que mexerá com a profunda fome de eternidade que assola o homem
desde o momento em que começou a refletir sobre a inevitabilidade da própria
morte. Ao contrário de muitos autores que, se "fecham" quando
encontram um novo filão, James Halperin menciona, no livro, todas as fontes
informativas, possíveis e imagináveis, dando endereços completos e praticamente
oferecendo a casa dele para receber as visitas dos interessados no assunto.
Da leitura do
livro e de outras fontes, via Internet, conclui-se que as entidades que
iniciaram, efetivamente, essa atividade pioneira — ditas sem fim lucrativo, não
sei se todas, e que não relaciono aqui porque não visitei pessoalmente nenhuma
delas —, admitem que até agora não conseguiram a "vivificação",
digamos assim, de nenhum dos "pacientes" (eles utilizam essa palavra,
jamais "cadáveres", "defuntos", ou termos semelhantes).
Os adeptos da
revolucionária novidade apoiam-se na possibilidade teórica da preservação das
células, na temperatura do nitrogênio líquido — 196 graus Celsius negativo,
como disse — até o momento em que não só a doença do paciente for facilmente
curada como também revertidos os danos causados pelo esfriamento. E com o bônus
eventual de um indefinido prolongamento da vida se detido, ou parcialmente
revertido, o processo de envelhecimento, pois a longevidade tem aumentado, não
diminuído.
Que o frio
extremo paralisa a atividade das toxinas destruidoras das células, não é
novidade. Em regiões geladas, há casos de pessoas encontradas aparentemente
mortas, com grave hipotermia, congeladas por algumas horas, e que,
convenientemente aquecidas e com auxílio de medicamentos conseguem voltar ao
estado normal. E, como disse, o congelamento de esperma de bovinos e humanos
também é procedimento cientificamente banal, não havendo indícios de que
bezerros e pessoas concebidas com sêmen congelado sejam, de alguma forma,
inferiores àquelas concebidas normalmente.
O grande
problema técnico da criônica — adotemos, pelo menos por enquanto, essa
denominação — reside no fato de que a água representa 60% do nosso peso, quando
adulto, e 80% quando somos crianças. Essa agua toda está dentro de nossas
células. Ocorre que quando essa água celular se congela ela sofre uma dilatação
e toma a forma de cristais, dotados de arestas que perfuram a membrana celular.
Ao que deduzi, no processo de descongelamento
do paciente a água da célula vaza pelos “furinhos” ou “estouro” da membrana e,
sem água a célula morre. Morre não no início do congelamento, mas no fim do
processo. Lembre-se o leitor que com a conversão da água em gelo ocorre um
processo de dilatação de seu volume. Nos países frios é comum a ruptura dos
canos, nas residências, quando o inverno é especialmente rigoroso.
Tentando
minimizar danos celulares, as entidades que atualmente congelam seres humanos
retiram o sangue do indivíduo imediatamente após o seu falecimento, injetando
em suas artérias e veias uma substância chamada glicerol, que suavizaria o
problema da formação dos minúsculos cristais. A seguir impregnam os corpos com
anticongelantes, permitindo que a água permaneça em baixíssimas temperaturas, em
estado líquido (é, pelo menos, o que pretendiam). Tais anticongelantes
exerceriam função semelhante àquela exercida por seus equivalentes usados em
radiadores de veículos, nos climas gelados.
A meu ver, o
centro do problema, do fracasso — temporário — da criônica está na ausência de
uma substância que impeça o congelamento da água dentro das nossas células. Não
adianta colocar anticongelantes fora das células, isto é, nas artérias e veias.
Prosseguindo. Os
entusiastas da criônica apostam na invenção de uma técnica futura que resolva
esse problema dos cristais de gelo no interior das células. Problemas muito
maiores já foram solucionados pela humanidade. Por que apenas esse — relativamente
mínimo, se comparado à “colonização de Marte — seria insolúvel?
Outra
abordagem dos novos desbravadores está na utilização futura da nanotecnia, ou
nanotecnologia, isto é, a técnica de construção de "máquinas"
microscópicas que, injetadas imediatamente após o descongelamento, reparariam,
uma por uma, as células danificadas. Quem, ao que sei, mais desenvolveu as
especulações a respeito dessa ultra-revolucionária perspectiva — a nanotecnologia,
reconstrução das coisas em nível molecular — é um cientista de nome Eric
Drexler, que publicou um livro denominado "Engines of Creation", e um
trabalho mais técnico chamado "Nanosystems".
O uso da
nanotecnologia ("nano" vem de "anão") para reparação de
milhões de células danificadas pelo congelamento já é algo mais duro de "digerir".
A confecção de tais "máquinas" parece-me coisa para se pensar somente
em futuro remotíssimo, bem além de um século. É certo que a engenharia genética
já trabalha a nível molecular, alterando a posição dos genes dentro dos
cromossomos, mas é pedir demais acreditar que tão cedo se possam criar essas
microscópicas "máquinas" — ainda mais feitas com um material mole, as
proteínas! —, aptas a consertar, uma por uma, as células danificadas. Para ser
um consertador é preciso uma “formação profissional”, difícil até mesmo de se
imaginar.
Os defensores
dessa nova técnica, a nanotecnologia — que seria, na Biologia, e demais áreas,
mais revolucionária que o "chip" do computador — argumentam que
alguns seres microscópicos, os vírus, já fazem, “naturalmente”, tais operações
celulares, sem qualquer diploma de “formação” universitária. Esses minúsculos
seres grudam-se à membrana de uma bactéria, fazem nela um orifício, injetam
seus DNA dentro da bactéria e esta passa a gerar não novas bactérias mas novos
vírus. Tornam-se "fábricas", ou "úteros", de vírus
invasores.
Como a natureza consegue criar tais
engenhosidades é realmente um mistério. Pessoas religiosas têm um nome para
isso, Deus, enquanto os cientistas agnósticos ficam pensando, mudos, intrigados
com o fenômeno. Parece-nos demais — eu, inclusive — aceitar que nós, humanos,
possamos fabricar e instruir uma "maquininha", infinitamente pequena,
capaz de “reparar” células danificadas pelo frio, ou provocar a formação de
réplicas sãs dessas mesmas células, quando irreparavelmente destruídas.
Parece-nos
tarefa científica para um futuro remotíssimo, se é que chegaremos lá um dia.
Mas quem arriscaria todo o seu patrimônio na aposta de que tais “maquininhas”
não sejam construídas nos próximos cinquenta anos, com a nova técnica da
nanotecnologia? Estados Unidos e Japão investem pesado nessa área, o que basta
para o cético por suas barbas de molho e não arriscar demais em qualquer aposta
com base apenas no genérico bom senso, ou ceticismo.
Nada a opor,
entretanto, quanto a essa ambiciosa intenção de utilização da nanotecnologia
para o conserto de células danificadas. O mundo nada tem a perder, exceto tempo,
com tais projetos e tentativas. Particularmente, arrisco meu palpite mais na
possibilidade da ciência resolver o problema da danificação das células
congeladas de outro modo: impedindo a formação dos cristais de gelo.
Alguém, com
senso prático, poderá perguntar: Como é que existem pessoas, nos EUA. que
arriscam seu dinheiro nessa aventura quando os próprios técnicos confessam que
a ainda não "ressuscitaram" um só paciente? Nem mesmo um gato foi
“revivido”.
A explicação é
simples: o alto componente emocional do ser humano. Se o paciente sofre de
moléstia incurável — apenas aguardando a morte para breve, com enterro ou
cremação —, o percentual da chance de retorno à vida é zero. Se, entretanto,
for congelado, e "acordado" daqui a quinze, vinte, quarenta anos, a
chance será superior a zero, porque a evolução científica é rápida e
imprevisível. Em teoria, pelo menos, é perfeitamente concebível um demorado congelamento,
seguido da volta ao "status quo", desde que descoberta a técnica
adequada para consertar os danos causados pelo frio. Enquanto perdurar o
congelamento não há qualquer apodrecimento dos tecidos. É como um “pause” na
TV.
Em 1966 um
cientista japonês, Isamu Suda, congelou o cérebro de um gato após impregná-lo
com glicerol. Um mês depois, descongelou cuidadosamente o órgão. Submetido a um
eletroencefalograma o aparelho registrou “traços” de algumas funções cerebrais.
É pelo menos o que diz uma página da Internet, "A Short History of
Cryonics", de autoria de Charles Platt. A tese do japonês, segundo o mesmo
autor, teria sido publicada na revista "Nature", periódico de bom
conceito no campo da Biologia.
Há uma boa
justificativa, ou desculpa, para não se descongelar, hoje, pacientes mantidos
em refrigeração só para testar se o processo funciona. Trata-se de pessoas
portadoras de males incuráveis, quase sempre cancerosas, doença para a qual
ainda não existe tratamento seguro. Descongelar pacientes, no momento, a título
de demonstração de tese — matando o paciente —, seria irresponsabilidade e
quebra de contrato. O compromisso da entidade é de descongelar o “cliente”
apenas quando a sua doença for perfeitamente curável, quando será aplicada a
técnica capaz de reverter os danos causados pelo frio extremo. É preciso
lembrar que o frio extremo também pode provocar fraturas nos ossos.
Ao que dizem
os entusiastas da criônica, alguns cães foram descongelados, aparentemente sem
dano, mas somente poucas horas após o congelamento. Uma afirmação que se
precisaria conferir.
Um problema
que ainda amarra a difusão dessa inusitada — os espiritualistas diriam
“aberrante” — tentativa de sobrevivência física após a morte está no custo
financeiro. Não vou expor neste artigo os problemas financeiros relacionados
com o congelamento porque o assunto estende-se longamente no meu artigo de 2005,
fatigando demais um leitor já presumivelmente cansado. Não sendo o leitor um
financista pessoalmente interessado em investir nesse estranho “negócio”, será
previsível que, desesperado, deixe de ler o resto do artigo.
O mesmo ocorre com o ângulo jurídico civil e
penal. O que acontece com os bens do “falecido”, com a herança deixada por ele?
Os herdeiros terão que devolver? O paciente congelado estando legalmente
“morto”, a viúva pode casar novamente. Se o “falecido” for ressuscitado com sucesso,
cabe à viúva escolher com qual marido ficará? Se o “congelado” estava sendo
processado criminalmente mas ficar “morto” durante xis anos, seu crime estará
prescrito? E por aí vai, em bem mais de dez parágrafos longos e cansativos.
As religiões
se levantarão contra a ideia de um eventual “retorno”. Dirão: - " E a
alma, como fica? Nos anos de congelamento, por onde andará? Um budista dirá que
ela foi reencarnada. Assim, como trazê-la de volta? Abandonado o novo corpo,
este ficará sem alma, morto?"
Tudo isso soa
como divagação ociosa, um quase insulto à inteligência. Mas tenho certeza que a
humanidade — melhor, uns poucos obcecados — persistirão nesse caminho que ainda
vai conseguir “acordar” pessoas após longo congelamento. Se vai ser
recomendável, socialmente, não sei. Mesmo porque, dando certo, surgirão novos
problemas, inclusive de aumento populacional. O que pode frear o
desenvolvimento dessa atividade é a perspectiva, cada vez maior, de a
engenharia genética alterar o processo de envelhecimento, fazendo com que as
células se renovem como se integrassem um organismo jovem.
Uma coisa é
certa: o homem anseia pela imortalidade. Da forma que for possível. Espiritual
ou material. Atualmente, apenas espiritual — mesmo porque não há outra
alternativa. Agora, com este mero aceno de uma quase eternidade biológica,
centenas ou milhares de pessoas ricas tentarão embarcar nessa aventura, desde
que economicamente viável. Assumirão o risco, pura e simplesmente. Inclusive o
de "acordar" em um mundo totalmente diferente, o que para muitos é
algo excitante, não triste. Presumem que o "novo mundo" será menos
hostil que o atual, porque mais civilizado. Algo assim como homens e mulheres
da idade da pedra acordando em pleno centro refinado de Paris.
Sempre
existiram e existirão os aventureiros. Os vikings arriscavam-se pelos mares sem
grandes cautelas, até mesmo desconhecendo a bússola. Saindo de barco pelos
mares levavam um determinado pássaro dentro de uma gaiola. Quando longe demais
da costa, meio perdidos, utilizavam a “bússola biológica”: soltavam o pássaro.
Este voava, inicialmente também incerto, mas logo sentiam alguma coisa e voava,
confiante em direção à terra mais próxima, salvando a vida dos marinheiros.
Para muitos, a
vida é excessivamente curta. Mesmo agora, com uma expectativa média de setenta
e cinco anos. Até os vinte anos o "cavalinho" humano galopa
alegremente pelo mundo, relinchando e escoiceando de alegria — isso se tiver
tido sorte na "escolha" dos pais antes de nascer; ou, com a sorte de
nascer com ótima inteligência e energia. Depois, cai na dura luta pela
sobrevivência. Luta para sustentar a família, raramente trabalhando no que
realmente gosta. Entrando na aposentadoria, poderia fazer o que realmente
sempre quis, mas aí constata que suas forças estão em clima de fim de festa,
acenando adeusinho em despedida. E morre frustrado.
A criônica
será essencial para a conquista do espaço. Para o homem atingir outros sistemas
solares, mesmo da nossa galáxia, terá que tripular as naves espaciais com
pessoas de extrema longevidade, tendo em vista as enormes distâncias. E nenhum
cosmonauta espera dormir, “míseros” trezentos ou quatrocentos anos enquanto
espera chegar a outro corpo celeste.
"Ars
longa, vita brevis", foi sempre a queixa dos artistas. E não se argumente
que nossos filhos e netos terminarão as obras por nós iniciadas. Não! Eles
nascem com outros interesses. E têm direito a isso. O pai é, digamos, um grande
cientista, com longo projeto de trabalho pela frente. O filho, porém, prefere
passear de moto, escrever versos, construir prédios, desenhar carros, chutar
bola ou ser um prêmio Nobel.
Cada geração
que vem ao mundo é uma nova invasão de bárbaros, já disse alguém. O trabalho do
cientista será, talvez, terminado por um estranho. E muito depois da morte do
grande sábio, porque o sucessor não vinha tão "embalado" quanto o
falecido. Mesmo um médico, interessado apenas em sua profissão, dificilmente
poderá abarcar todo o conhecimento médico de nossa época. E essa limitação,
para alguns, "dói".
Se há quem repreenda essa excessiva curiosidade
intelectual, outros a defendem, dizendo que tais curiosos são o sal da
terra. Outros gostariam de dominar
várias línguas. Para gente tão curiosa nossa atual extensão de vida é
insatisfatória. Há quem goste de viver, aprender e produzir coisas do mundo do
espírito. Disposto a lutar por uma duração muito maior que a atual. Quem quiser
morrer, que morra logo; ele, não!
Até agora a
"eternidade" estava restrita à alma, ou memória. Deixar um bom nome
na face da terra. Escrever um grande livro, pintar um quadro famoso, compor
música inigualável, ser indicado para um "Oscar". Pelo menos uma
placa de rua, ou um banco de cimento, com seu nome, na pracinha do interior.
Ou, até mesmo, paradoxalmente — se não houver outra alternativa —, cometer um
crime que lhe dê notoriedade, mesmo negativa. Uma forma de continuar “vivendo”,
pelo menos na memória de alguém.
O homem não
aceita é a ideia do nada. Principalmente do “seu” nada. Revira-se como que
inquieto na tumba, meio descarnado, fedendo, rilhando os dentes, falsos ou
verdadeiros, só em pensar que ninguém se lembrará dele como uma pessoa
importante, de algum modo.
Assim é a
humanidade. E por isso não tenho dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, aqui
mesmo no Brasil, surgirão as entidades — honestas ou desonestas, como em tudo o
mais — que explorarão esse anseio jamais satisfeito por uma vida bem mais longa
e certamente mais promissora, em tempos desconhecidos. Se o “cliente” vai
acordar — se acordar — meio abobado, paciência. É o que possivelmente
acontecerá nas primeiras tentativas da criônica. E as companhias seguradoras
estarão de olho nesse novo mercado.
Faço aqui, encerando,
um acréscimo ao artigo que redigi e publiquei por volta de 2005. Esse acréscimo
relaciona-se com o problema da inexistência de uma técnica que impeça a
formação de gelo dentro das células do paciente congelado para ressuscitação anos
depois, quando sua doença estiver derrotada pela medicina futura.
Cerca de dois
anos atrás, a mídia revelou que rãs das regiões próximas do Polo Norte ficam
congeladas, praticamente mortas, no inverno, mas ao chegar a primavera, acordam
lampeiras, serelepes, procurando comida e sexo. O organismo delas produz uma
espécie de açúcar que impede que o frio intenso congele a água de suas células.
Se algum cientista, provavelmente um químico, conseguir sintetizar um produto
químico que faça o mesmo com a água de nossas células, talvez poderemos driblar
a morte, aguardando, no gelo, o nosso retorno à vida. E retornando, anos
depois, poderemos auferir muitos dos benefícios tecnológicos mencionados em um
livro importantíssimo publicado dias atrás.
O título desse
livro é “A morte da morte”, com o subtítulo “Como a medicina tecnológica vai
transformar profundamente a humanidade”, Edições Manole, escrito por um pensador
francês, Laurent Alexandre. Com sua leitura, nada fácil, fiquei bastante
estimulado ao saber dos rápidos avanços da nanotecnologia, biologia,
informática e ciências cognitivas (“a grande convergência” NBIC).
É um livro
especial, muito bem traduzido, mas que justamente por ser especial, exigirá
alguma autodisciplina do leitor que não seja médico, nem biólogo. Por mais que
o autor e sua tradutora tenham se esforçado para facilitar sua compreensão para
o leigo em biologia — com notas explicando os termos técnicos — a própria
complexidade dos temas exigirá alguma persistência. É, por isso, um livro
especial, a merecer particular atenção para quem quer realmente se inteirar de
um assunto especialíssimo.
Há nele não só
ciência. Há também uma mescla de filosofia, biopolítica e transhumanismo.
Por falta de
tempo — viajo amanhã bem cedo —, não posso fazer aqui um resumo do que li até
agora, cerca de 25% da tradução do “La mort de la mort”.
Caso o leitor
esteja curioso sobre os temas, leia também — de preferência antes do livro do
francês —, meu romance “Criônica – o primeiro romance brasileiro sobre o
congelamento humano”, EI- Edições Inteligentes, publicado em 2005
(ISBN:85-7615-132-4).
Sugiro a
leitura prévia de meu livro não por egoísmo, mas porque trata-se de um romance,
bastante dialogado, de fácil compreensão, como é próprio dos romances. Lendo-o,
ficará mais fácil entender o referido “A morte da morte”, um livro muito mais
técnico e especializado. Insisto, porém, que o livro do francês não pode deixar
de ser lido, antes ou depois do meu romance.
Quanto ao meu “Criônica”,
em ebook, poderá ser lido gratuitamente até o dia 10 de fevereiro de 2021. Está
disponível na Amazon.
Finalizo
dizendo que como os imensos benefícios mencionados no “A morte da morte” só
estarão disponíveis daqui a alguns anos, os interessados em não morrer proximamente
poderão — se corretamente congelados — aguardar, mais esperançosos, “dormindo”,
o momento de “acordarem’ com renovadas
esperanças de viverem mais de cem anos com energia, boa memória, boa aparência
e alegria de viver. Quem sabe, algum cientista brasileiro pode, lendo o livro,
estudar o segredo químico das rãs mencionado na parte final do presente artigo.
Se conseguir façanha igual à da natureza merecerá o Nobel de química. O Brasil
ainda não ganhou um Prêmio Nobel. Nem mesmo o mais fácil, o de Literatura.
Depois de ler
inteiramente o livro do francês, talvez faça algumas observações, com mais
tempo e espaço disponíveis.
Feliz Natal a
todos e perdão pelo abuso da paciência alheia. Agradeçam, porque, na primeira
redação era quase o dobro do tamanho. (22/12/2019)
EM TEMPO:
Retornando de minha curta viagem, mas ainda
sem condições para continuar a leitura do livro “A morte da morte”, li alguns
e-mails de pessoas discordando da mera ideia de controlar a morte depois de
cessados os batimentos cardíacos. Tais mensagens censuram a pretensão de uma
vida eterna, em um mundo tão cheio de maldades. Alegam que “Deus é amor”; “não
permite isso”; “a morte é o preço do pecado” e por aí vai.
Compreendo
essa revolta, sincera e direta, porque é realmente uma espécie de insulto ao
bom senso imaginar que o fenômeno natural e mundial da morte — presente em
todos os seres vivos — possa ser controlado pelo insignificante “bípede implume”,
que se comporta, às vezes, como uma
mescla de demônio e jumento, conforme revela a mídia diariamente.
Em defesa de
meu apoio à Criônica — congelamento de pessoas — tenho a dizer resumidamente o
seguinte: Não estou interessado, primordialmente, na imortalidade física,
embora reconheça que em distante futuro isso seja teórica e praticamente
possível, com a possibilidade de substituições periódicas de nossas células,
técnicas esboçadas no mencionadas no livro “Mort de la mort” e em outros livros
que abordam o mesmo tema.
Meu interesse
prático na Criônica está na possibilidade de salvar vidas em casos que hoje significam
“morte certa e próxima”. Quem sabe, congelando e, depois de alguns anos,
“acordando” pessoas doentes incuráveis ou gravemente acidentadas, elas possam
ser salvas e curadas, prosseguindo suas vidas.
Pergunto ao
inimigo da Criônica o seguinte: Se tua hipotética filha de dez anos está com um
câncer hoje incurável, ou com uma doença genética e deformante — ou foi
terrivelmente mutilada em um atropelamento, só esperando a morte na UTI —,
pudesse ser congelada e ressuscitada quando a medicina estiver em condições de
salvá-la, por dentro e por fora, recuperando sua aparência anterior, o senhor
preferiria vê-la morta, com isso mantendo intacta sua “humanidade”?
Se o senhor
disser “prefiro!”, isso mostraria que não gosta da filha. Gosta mais de teus
preconceitos. E, por coerência, deveria mandar retirar teu marca passo, teus
dentes postiços, teus óculos, tuas próteses, teu aparelho contra surdez, teu
coração ou rim transplantado, etc., porque você já é um ser parcialmente
híbrido com a tecnologia. E se disser que não permitiria o congelamento da
menina apenas porque não acredita na “ressuscitação”, aí trata-se apenas de
insatisfação com uma tecnologia que ainda poderá encontrar o caminho certo, por
tentativa e erro.
A respeito
disso, sugiro que algum empresário, ou governador ousado —, tipo João Dória, mero
exemplo — forme um pequeno grupo de químicos biólogos e médicos para estudar
como a “doutora natureza” inventou a substância que permite às já mencionadas
rãs, ou sapos, ficarem congeladas no inverno ártico e na primavera voltando à
vida. Conseguindo façanha equivalente nos seres humanos, um Nobel de Medicina
talvez venha, finalmente, para o Brasil. Esqueçam a faceta “vida eterna”.
Não sei qual o
limite atingível e recomendável do aperfeiçoamento do homem, pelo lado físico,
moral e mental, em décadas e séculos. Com o avanço, cada vez mais rápido da
ciência e da tecnologia, como seremos daqui a quinhentos ou mil anos? Talvez
não tenhamos religiões diferentes, mas uma mescla delas, eliminando rivalidades
que, atualmente, com armas nucleares e biológicas, vivemos à beira da
destruição global.
Moralistas,
escritores, educadores, juristas e religiosos devem, claro, continuar seus tradicionais
esforços para, usando apenas argumentos, palavras, corrigir as maldades,
mentiras, hipocrisias, egoísmo e tudo o mais que possam se identificar como
sendo resíduos de nossa resistente ancestralidade animal, feroz, egoísta, sem a
qual não poderíamos ter sobrevivido em ambientes hostis, rodeados de feras e
potenciais inimigos da mesma espécie, disputando comida e fêmeas. Principalmente
se o inimigo tem feições e cores diferentes.
Penso que os
preconceitos raciais têm um componente também biológico, enraizado no
subconsciente, só vencível com um persistente esforço educacional e legal.
Na batalha
contra os vários resíduos de animalidade que dormem dentro de nós, não podemos
fazer muito apenas falando, escrevendo ou mesmo dando exemplo com a própria
conduta. Essa técnica de modificação humana, por melhor que se aperfeiçoe, via
educação, não consegue sempre atingir a parte mais recôndita do ser humano. Que
tal melhorar o homem “por dentro”, literalmente, usando uma engenharia genética
até mesmo antes dele nascer?
Você pode
tratar um filho da melhor maneira possível mas existe, dentro de cada ser
humano, um ou alguns genes, até agora inextirpáveis, rebeldes e avessos a
qualquer influência educacional. Assim, parece factível que a engenharia
genética possa, em breve tempo, “pinçar” certos genes — os “maus” ou
“inconvenientes” — que explicam porque existem criminosos, e maus caracteres
irrecuperáveis mesmo quando tratados com bondade, bem alimentados, etc. É o
resíduo genético de um “animal especial”, que pode ser simultaneamente “louco”
e inteligente.
Com os avanços
da ciência será possível, provavelmente, alterar fisicamente “por dentro”,
literalmente, cerebralmente, as más tendências e o retardamento mental que
atormenta considerável parcela da humanidade. Se um sujeito nasce com um QI
muito baixo, que culpa ele tem por essa infelicidade? A injustiça biológica é
também uma forma de injustiça, causando sofrimentos físicos e morais, na forma
de pobreza e uma sensação de inferioridade.
Não há que se
condenar a Criônica pensando apenas em “vida eterna”. Esse é o lado apenas
“espetacular”, excêntrico, remoto, do tema, porque a imortalidade biológica não
estará acessível a toda a humanidade. Sem a morte, o planeta seria sufocado
pela superpopulação.
Isso sem falar
no robô superinteligente, que deve continuar como escravo, vigiado de perto,
porque senão, pobre de nós.
(02/01/2020)