Vivemos tempos confusos e perigosos na arena judiciária. Uma
sopa, de odor político suspeito, mesclando a sonora erudição jurídica com insultos
evidentes contra o bom senso. O mais grave é constatar a imprevisão, a “leveza”
despreocupada sobre o que poderá acontecer no Brasil, ainda este ano, caso o
STF “anule tudo” o que foi apurado e decidido sobre Lula, nos variados
processos da Lava Jato. Todos os condenados na mesma força-tarefa pedirão
tratamento igual, de anulação de seus processos, mesmo tendo confessado o
delito tintim por tintim, olho no olho, nos acordos de delação premiada.
Dirão, os condenados, com a cara mais lavada, que confessaram,
sem tortura física, mas fizeram isso constrangidos, sem alegria íntima. Sustentarão
que a confissão nunca pode ser “forçada”, ou induzida. Deve, sempre, para
valer, ser semelhante à confissão religiosa, vinda do fundo santo da alma do
infrator, num impulso de pureza: — “Se estivéssemos soltos, não teríamos confessado”,
dirão todos. E pedirão de volta tudo o que perderam nas condenações — bens,
dinheiro (muito) e cargos. E ainda, possivelmente, exigirão indenização
milionária, por “dano moral” porque sofreram “abuso” de dois dos poderes do
Estado, o Judiciário (Moro) e o Executivo (a Polícia Federal).
Refiro-me, claro, às condenações de Lula, após notícias baseadas
nas gravações ilegais das conversas de Moro com Dallagnoll pelo celular. A chamada
teoria da nulidade do “fruto da árvore envenenada — a prova nula de origem
ilícita, no caso as gravações da “The intercept” — é uma teoria com dupla face:
se é a nosso favor essa prova vale; se é contra nossos interesses, não vale. E
para complicar a confusão existe algo que até agora cria incertezas: o direito
de “preservar a fonte”, isto é, atacar a reputação de alguém — Moro —, com base
na informação de pessoa “que não sou obrigado a revelar”. Pergunta-se: e se for
mentira, não existindo fonte alguma?
À guisa de exemplo da atual “sopa” judicial, vejamos o que
aconteceu com o cidadão que tentou matar Jair Bolsonaro. Como ele não foi
julgado, porque seria “meio louco” ou “limítrofe” — isto é, incapaz de perceber
perfeitamente a ilicitude de suas facadas mortais —, a sentença determinou sua
internação, para tratamento, por “até” 20 anos. Assim, se os psiquiatras da
casa de tratamento, daqui a um ano afirmarem que ele já está “curado”, nada
impedirá que, liberado, eventualmente cometa nova tentativa de homicídio. Se
detido, argumentará que não pode ser preso porque sofreu apenas uma “recaída”
na sua “doença”, ou “insuficiência mental”, assim classificado seu ato pelos
peritos que o examinaram. E ainda, quem sabe, poderá pensar em mover, contra o
Estado, uma ação judicial por dano moral, pedindo indenização pela incompetência
técnica do estado no tratamento de sua condição mental após a tentativa de
matar Bolsonaro. Dirá: — “Não me curei. Em vez de me curar, no hospício, como seria
obrigação deles, os psiquiatras só fingiam me tratar, batendo papo de autoajuda
e me oferecendo pílulas que eu fingia engolir. Tenho o direito de ser indenizado!”.
Os críticos de Moro acusam-no de parcialidade, de
“suspeição”, quando atuava na vasta operação contra o crime do colarinho branco,
porque, em conversas particulares, no celular, com Dallagnoll, Moro teria lamentado,
sucintamente, que uma promotora, na audiência, não estava se saindo a contento
em uma audiência, talvez por timidez.
Isso ainda não ficou confirmado pelas análises de fidelidade
das gravações já publicadas, mas, se confirmadas como existentes, elas demostram
apenas uma elogiável coerência de Moro, preocupado com a valorização ou
desvalorização de determinada prova muito importante juntada aos autos. Em
qualquer audiência, a ousadia e a presença de espírito do acusador devem ser
pelo menos iguais às iguais qualidades do defensor. Do contrário a prova da
acusação fica deficitária, um tanto viciada, com repercussão na decisão final.
Há promotores que são ideais, muito preparados para trabalhos calmos, altamente
intelectualizados, porém inadequados para atuar em audiências tensas, quase
violentas, que exigem uma quase brutalidade, quando a parte contrária tenta
intimidar a testemunha, o promotor — se tímido —, ou até o próprio juiz.
Lembremos o estilo desrespeitoso do réu Lula quando em vez de se defender,
atacava o juiz que o interrogava.
A veracidade de tal suposta sugestão, en passant, ou eventuais outras frases preocupadas de Moro ainda
dependem de análise técnica das gravações, mas, a meu ver, mesmo que houvesse observações
de Moro em conversas reservadas, informais, ele teria merecido, no máximo, quando
ainda juiz, uma advertência funcional da Magistratura, por excesso de zelo na
mais alta e nobre missão de qualquer juiz: a busca da verdade real na luta —
perigosa e ingrata para qualquer juiz — contra a criminalidade mais lesiva,
mais escorregadia e bilionária: a do colarinho branco. Um tipo de crime que
costumava ficar impune — antes de Moro arriscar a própria pele —, porque o
dinheiro tem poder, influindo até no futuro dos magistrados que querem integrar
os tribunais superiores, ambição legítima. Além disso, existia uma longa
tradição de tolerância social quanto ao “caixa dois” porque o governo
brasileiro sempre se mostrou ganancioso demais estimulando, indiretamente, as
pessoas a se defenderem com seus próprios meios.
Que meios? Depositando suas reservas no Exterior, após o
confisco da poupança no Plano Collor. Note-se, em favor da severidade de Moro,
que mesmo hoje, com a locomotiva da Lava Jato soltando fumaça, a todo vapor,
diariamente aparecem na mídia novas formas de desonestidade, comprovando que
velhos hábitos são difíceis de serem desarraigados.
Como Moro não é nem teria condições de ser Ministro da
Fazenda, procurou fazer o que estava a seu alcance, como magistrado: dar um
“stop!” nos desvios da Petrobrás. Mas para que seu empenho desse resultado,
procurou colocar nos autos — sua área de trabalho — prova idônea, convincente,
capaz de permitir a manutenção de suas sentenças pelas instâncias superiores,
como realmente ocorreu. Essa prova, vinda de três fontes, da acusação, da
defesa e do próprio juiz — como permite a legislação —, sujeita ao
contraditório, em sentenças quilométricas, foi analisada, julgada e mantida por
vários desembargadores e ministros julgadores.
Como já frisei em artigos anteriores no meu blog francepiro.blogspot.com — “Sérgio Moro priorizou a verdade e
não violou a lei”, e “Sérgio Moro saiu-se bem no Senado” —, não é verdadeira essa
ficção, absurda e amoral, de que juízes devem sentir-se sempre, invariavelmente
neutros, desligados, frios, moralmente insensíveis sobre os fatos trazidos a
julgamento. Essa invariável frieza ou “neutralidade”, por sinal, seria até uma
aberração humana, em casos mais extremamente revoltantes.
Nestes — não é o caso dos julgamentos objeto da Lava Jato —,
após vários juízes se recusarem a julgar o caso, confessando sua suspeição ou “nojo”
do acusado, o Judiciário teria que procurar um magistrado do tipo “monstro
moral”, porque só ele teria capacidade de permanecer insensível, imparcial, em
todo o decorrer do processo, evitando acusações de “suspeição”. Provavelmente,
esse juiz totalmente isento de emoções, seria mais um robô de carne, incapaz de
bem interpretar e aplicar a lei, temperada pela equidade, esse tempero sempre
presente nos julgamentos da área penal.
O STF cometerá uma espécie de suicídio político se, agora,
com suspeita pressa, decidir anular a prisão de Lula, deixando para um remotíssimo
futuro o trânsito em julgado de sua condenação. Solto, “Lula, o carismático”
tentará fazer um governo paralelo, incendiando semanalmente o país, afastando
investidores, internos e principalmente externos, que preferem investir suas
riquezas em lugares menos arriscados, explosivos e imprevisíveis. Justamente
agora, quando o Brasil conseguiu, aliado com a Argentina, fazer um acordo
tarifário com a União Europeia.
Espera-se que o STF tenha a prudência de evitar conflitos de
rua, apedrejamento de edifícios públicos, tiros e possíveis insultos pesados a
magistrados de convicções opostas, todos merecedores de respeito. O próprio
Lula sairia lucrando, no longo prazo, se esperasse a sua vez para tentar voltar
ao poder, no momento mais certo para o país. Essa estória de “Fiat Justitia et pereat mundus”, faça-se
justiça ainda que o mundo pereça”, é frase de doido.
(01/07/2019)
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