Para início de
conversa, informo que discordo veementemente da política externa de Jair
Bolsonaro. Não sou seu seguidor mas espero que ele, homem bem-intencionado — no
estilo dele —, paulatinamente, melhor informado sobre a realidade mundial, mude
de orientação bem antes do término de seu governo. Se possível com outro
ministro das relações exteriores.
O que digo
abaixo não vem propriamente de um “bolsonarista”. Diria o mesmo, fosse qual
fosse o político esfaqueado por um homem de inteligência mediana que cometeu um
crime, sabendo perfeitamente o que fazia e que logo, logo, poderá estar totalmente
livre; “curado” e até paparicado como herói nacional pelos milhões de adversários
da vítima. Parabenizo, meio a contragosto, a habilidade técnica, a inteligência
profissional, de seus advogados conseguindo a façanha de uma quase impunidade,
livrando o cliente, preso em flagrante, da cadeia e concedendo-lhe muito mais
que os quinze minutos de fama.
Dito isto,
abordemos a decisão que me parece absurda, sob o prisma da sanidade mental.
Não é
aconselhável confiar plenamente em conclusões, mesmo unânimes, de psiquiatras e
outros profissionais que estudam a mente. Não digo isso contestando a honestidade e
especialização dos peritos e assistentes técnicos, indicados pela acusação e pela
defesa de Adélio Bispo de Oliveira, que o examinaram para saber se tinha plena
consciência do que fazia quando desferiu facadas no candidato, quase o matando.
Os peritos concluíram
que Adélio é inimputável, isto é, incapaz — por doença ou desenvolvimento
mental incompleto —, de entender a ilicitude de um ato, e por isso isento de
pena. Não conheço tais peritos, nem mesmo por referências, mas é de se presumir
que são profissionais bem qualificados nessa área de conhecimento já que
nomeados ou indicados para um caso de especial importância.
Essa decisão
judicial de primeira instância, que envia Adélio Bispo para tratamento
psiquiátrico “até vinte anos” — podendo sair muito antes, se já mentalmente “curado”
—, precisa ser revista, urgentemente, porque afronta o juízo comum que, mesmo
sendo comum, de “leigo”, não especializado, justamente por isso merece apoio,
considerando que certas especializações podem ensejar conclusões menos conforme
com a realidade. O cérebro é ainda uma caixa de surpresas, até mesmo para os
profissionais da área. Uma junta composta de psiquiatras diferentes poderia
concluir de maneira oposta sobre a sanidade mental de Adélio Bispo.
Enviado, à uma
confortável instituição, para ser tratado, ele terá avaliações periódicas, podendo
receber alta. Com a alta, será liberado retornando à sua vida como se não tivesse
acontecido nada. Isso poderá ocorrer pouco tempo depois da internação. Os
“vinte anos”, como já disse, é o tempo máximo possível de internação. Se daqui
a um ano ou dois, ou menos, ele estiver livre de sua “mania” — algo muito
subjetivo —, ele estará livre.
Qual a
“doença” de Adélio Bispo? Seu nome técnico é “transtorno delirante
persistente”. Isto é, ele não rasga dinheiro, não sai nu pelas ruas, tem
inteligência média, sabe usar celulares, planejar qualquer coisa — inclusive um
assassinato —, mas julga-se enviado por Deus — diz ele, impossível de provar — para
eliminar um ser maléfico, Bolsonaro. Por esse critério, todos os terroristas —
islâmicos e não islâmicos — não poderiam ser condenados à prisão porque também
seriam vítimas de um transtorno delirante, o mesmo acontecendo com os“serial
killers”, que matam prostitutas e pessoas assemelhadas, ou pessoas que desagradam
o matador.
A se pensar em
livrar da prisão qualquer “delirante persistente”, Hitler não precisaria cometer
suicídio porque seria absolvido liminarmente, tendo em vista que suas ideias
loucas — mentiras sistemáticas, domínio mundial, milênio do nazismo, etc. e
homicidas — eram muito mais persistentes e abrangentes — contra judeus,
ciganos, homossexuais, comunistas — que as ideias carregadas por Adélio Bispo,
que tentou matar apenas uma pessoa. Hitler mereceria, com essa desculpa
psiquiátrica, com muito mais razão, ser absolvido pela história, pouco
interessando que sua política tenha provocado uma guerra que custou cerca de 50
milhões de vida, arrasando inclusive sua amada Alemanha.
Stálin também
não poderia ser censurado por mandar matar milhões de russos — a tiros ou via frio
e fome no Gulag —, porque não obedeciam suas decisões. O mesmo se diga de
Mao-tsé Tung, com sua política de eliminação da velha ordem. Milhões de
chineses morreram por sua causa. Sérgio Cabral, ex-governador do Rio,
recentemente confessou que cometeu desvios milionários porque estava dominado
pela ganância, sem forças para dela se livrar. Poderia ele se livrar das suas
condenações usando um laudo psiquiátrico que o diagnosticava com um “transtorno
delirante persistente”, o “vício por dinheiro”, do qual poderia ser tratado
numa instituição psiquiátrica?
Vou anexar, linhas
abaixo, um caso verídico que fez parte de um artigo meu, já publicado, com o
título de “Crimes e soberania”. Para exemplificar a minha tese de que a
soberania ilimitada das nações, inclusive nas suas práticas judiciárias, tem o
seu lado negativo, contei um crime que ocorreu em Paris, em 1981, em que um jovem
japonês muito culto e inteligente, escritor, Issei Sagawa, matou, “estuprou” —
na verdade “violou o cadáver” — de uma bonita estudante holandesa, sua colega,
na Université Censier, de Paris. O japonês estava em Paris, custeado por
seu pai, para estudar e elaborar uma tese erudita sobre a influência japonesa na
literatura francesa.
Sagawa fez o
que fez porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio
dele — recusou suas propostas cheias de
paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido,
cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente muito menos
que a holandesa. A moça, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se
concentrasse no trabalho que estavam realizando. O japonês se levantou, pegou
um rifle calibre 0.22 que estava num armário atrás da moça, e disparou um tiro
na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus
lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira
para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele
tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é
descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V”
de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo
“Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida
para o português.
O réu, após
esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de
táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua,
dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês
pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os
volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio.
Com o passar das horas, o sangue das malas começou a vazar pelas frestas,
despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o
motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho
oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades.
Reunidas as
provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento,
principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado
irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente
em alemão e francês. O juiz determinou sua internação em uma instituição
psiquiátrica.
Como já disse,
Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio
seu pai conseguiu que o filho fosse extraditado para o Japão, sob condição de
ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família
seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi
dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada
pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?”
Após sua
liberação — diz Max Haines —, Issei
Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um
saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa —
cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa
opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa
pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada:
soberania.
Por outro
lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda
chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora
sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem
pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O
homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”
O caso acima
comprova que a fronteira entre o que é bizarro,
estranho e mau — o comportamento
de Adélio Bispo — e a doença mental diagnosticada pelos psiquiatras que
assinaram o laudo pericial — aceito pelo juiz — é muito tênue, recomendando uma
“segunda opinião” a ser feita por outra equipe de psiquiatras. De preferência
sem contatos pessoais entre as duas equipes, evitando possíveis influências
entre colegas da mesma profissão. Do contrário, a população brasileira mais atenta
ficará revoltada se Bispo sair — solto e ovacionado herói —, sair da clínica
daqui a menos de dois anos. Muitos, em busca de notoriedade, poderão pensar na
fama igual, tentando matar um político importante, talvez, de novo, o próprio
Bolsonaro, graças às vaguezas ou incertezas teóricas sobre qual o limite da
sanidade humana.
(4-12-2006)